1/06/2020

Guilherme de Azevedo - Poemas


A UM CERTO HOMEM

Agora és todo nosso: a rude voz da história
Já pode hoje falar
E dar-te um balancete às nódoas e à glória
Rei-Sol de boulevard.

Que dias de esplendor! Porém como começa
A noite e a podridão!
Foi Deus que te mandou também para a Lambessa
Da eterna punição!

Enfarda a tua glória e leva-a que é vergonha
Que vejam amanhã,
Que até lhe depenou as águias de Bolonha
O abutre de Sedan!

E visto que em redor nenhuma estrela brilha
E a noite é longa e má,
No caminho do opróbrio acende a cigarrilha
E, césar, ouve lá:

Que altiva e bela a França! Aquela Gália ardente
Que de Valmy levou,
Descalça, quase nua; a Marselhesa em frente;
Nossa alma até Moscou!

Seus filhos têm a foice: envergam rudes clâmides
Depois, caminham sós;
E enquanto ceifam reis acordam nas Pirâmides
A alma dos Faraós!

E vão cheios de fé, bandeira solta ao vento,
Na gleba das nações,
Convictos semeando o novo pensamento
No sulco dos canhões!

Mas tu chegas um dia: afogas-lhe a grandeza
E quando a tens aos pés,
Celebras a vitória aos hinos de Teresa,
A musa dos cafés!

Banquetes dás ao crime; e os teus heróis de esquina
Ainda a afrontam mais,
Tornando a Marselhesa em torpe Messalina
Dum circo de chacais!

E sobre alguns montões de mortos ainda quentes,
Enfim campeias, tu,
Que deste à sagração das coisas dissolventes um
Petrônio Sardou!

Porém, quando ao comer ainda um beijo à Fama,
Um dia avanças mais,
Teu carro triunfal trambolha-te na lama
E então como tu sais!

Revolves-te no horror das vis, infectas ondas
De lodo e podridão,
E vais de manto roto e vestes hediondas
Buscar a escuridão!

Em vez de reclinar a fronte ao sol ardente
Da luta que sorri,
Do fumo dos canhões fugiste, e de repente...
Matou-te um bisturi!...

Que entrada a tua, então, na fúnebre morada,
Pisando, incerto, o pó,
À luz duma lanterna, ao vir da encruzilhada,
Sinistro, sujo e só!

Das cinzas levantou-se um brado entre os jazigos
Dos bons e dos leais,
Apenas descobriste a marca dos castigos
Nas faces triviais!

E quando te assustava o olhar altivo de Hoche
E o gesto de Danton,
Sorria-te na sombra o amor da Rigolboche
Meu César-Benoiton!



À HORA DO SILÊNCIO

Eu quis ontem sonhar, sentir como um romântico
A doce embriaguez do pálido luar,
Ouvindo em pleno azul passar o imenso cântico
Dos astros no seu giro e em sua luta o mar!

A cidade dormia o sono dos devassos;
Aquele sono turvo, infecto e sensual:
E a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquila e sempre ingênua a fronte de vestal!

E sobre a quietação das coisas vis e exóticas
Sentiam-se as febris, cruéis respirações,
Dos tristes hospitais e das virgens cloróticas,
Dos amantes fatais da febre e das paixões!

A noite era em silêncio, a atmosfera doce
E ria a natureza aos beijos dum bom Deus.
De súbito escutei, ao longe, o quer que fosse
Dum canto que supus então baixar dos céus!

Atento ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti que era uma voz disforme e sensual,
Soltando uma canção naquele acento rouco
Da triste inspiração alcoólica e brutal!...

O terna vagabunda, enamorada lua!
Enquanto ias assim, diáfana e sem véu,
Uma triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo uma porção de infâmias para o céu!



EU QUISERA

Eu quisera depois das lutas acabadas,
Na paz dos vegetais adormecer um dia
E nunca mais volver da santa letargia,
Meu corpo dando em pasto às plantas delicadas!

Seria belo ouvir nas moitas perfumadas,
Enquanto a mesma seiva em mim também corria,
As sãs vegetações, em íntima harmonia,
Aos troncos enlaçando as lívidas ossadas!

Ó beleza fatal que há tanto tempo gabo:
Se eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo,
— gentil metamorfose em que nesta hora penso;

Tu, felina mulher com garras de veludo
Havias de trazer meu espírito, contudo,
Envolto muita vez nas dobras do teu lenço!


O VELHO CÃO

Soltava ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente dum palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado aos vendavais.

Fazia pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu triste chorar!
Era quase uma sombra: apenas pele e osso
E um vago, um doce olhar!...

Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos míseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra aparição!

Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quase voraz!
E o pobre não sabia, enfim, que há muita gente
Que adora a santa paz.

Ora perto vivia uma galante rosa,
Etérea, virginal,
Que tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,

Aquele uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois à rua impávidos lacaios
E foram dar no cão.

— Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— o povo sofredor,
Que às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Às portas dum senhor.

O resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que ela há de ter.
A Ordem, só de ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!


 
AS VELHITAS

Eu não professo muito o culto das ruínas.
Prefiro uma oficina às velhas barbacãs;
Das velhinhas, porém, mirradas, pequeninas,
No entanto nunca insulto as prateadas cãs.

Deixá-las caminhar, curvadas, vagarosas,
Com seu bento rosário, os seus fofos beitões,
A rirem-se de nós, cruéis, maliciosas,
Sagazes comentando as nossas ilusões!

Ah, velhitas sem cor! Cabeças regeladas,
Vulcões de que só resta a cinza e nada mais:
Já fostes as visões; talvez as brancas fadas;
Prendestes vossos pés nos úmidos rosais;

Tivestes já no olhar os bons reflexos mágicos
Dos lagos ideais cobertos de luar;
As curvas sensuais, os belos dedos trágicos;
As rosas más do inferno, os lírios bons do altar!

Prendestes já cismando as frontes melancólicas
Nas varandas à noite, amantes dos Titãs
Do belo amor antigo! Ó Márcias das bucólicas!
E agora apenas sois as mães de nossas mães!

Segui vosso caminho: as graciosas fadas,
As belas da cidade, anêmicas, gentis,
Sorriem-se, talvez, das fitas desbotadas,
Dos provectos chapéus, das galas que vestis!

Oh! Mostrando os troféus das vossas velhas rosas,
Dizei-lhes, a sorrir, das fúteis ilusões,
Que fostes já, também, galantes e nervosas
Mas destes isso tudo a vários corações!

Agora tendes pouco: apenas uns lamentos
Sentidos contra nós; queixumes sem valor!
E ao mundo importam muito os vossos testamentos
E importa muito pouco a vossa imensa dor!

Batei à grande porta: os belos dias vossos,
Velhitas, bem sabeis, não podem voltar mais!
A terra ide levar, enfim, nuns tristes ossos
O resíduo fatal das coisas virginais!



ÀS VISÕES

Pois que visões! Não cessa a rápida corrida
E seja noite ou dia,
Volteadoras cruéis! Vós sempre a toda a brida
Na minha fantasia!

Parti, quimeras vãs! Arcanjos ou madonas,
Parti, que o mando eu,
Como um bando fatal de velhas amazonas
Que o circo aborreceu!

Levai tudo convosco: as setas mais a aljava;
O angélico sorriso:
E as asas de escumilha em que eu voava
À noite, ao paraíso!

Eu quero, enfim, dormir; passar as noites gratas
Sentindo-me feliz,
No sono maquinal dos velhos acrobatas
Depois das farsas vis!

Mais tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quase,
Lembrando-me — é verdade!
Que onde eu supunha aurora havia apenas gaze
E uns traços de alvaiade.

Perdão se vos insulto! Oh, não, vós sois do empíreo,
Daquele meigo azul,
Que a todos tem sorrido: a Cristo no martírio,
Na dor, ao rei de mie;

E quando vos apraz, nas asas transparentes,
Mais alto ides por certo,
Do que as deusas gentis, aéreas, insolentes,
Que vemos voar tão perto!

No entanto podeis crer ó lúcidos fantasmas
Que o século, afinal,
Oculta no esplendor não sei que vis miasmas
Que fazem muito mal!

E quando vós passais, nas horas do mistério
De estrelas revestidas,
Bebemos nós, talvez, o aroma deletério
Das rosas corrompidas!

Oh sim! Parti depressa; erguei-vos deste abismo
Arcanjos ideais,
Deixando-nos colher a flor do realismo
Nas coisas triviais!



MELANCOLIAS DE OUTONO!

Melancolias de Outono! Eu quando além descubro,
Nas tristezas do campo, as filas mugidoras
Dos vagarosos bois que voltam das lavouras,
Compungem-me as cruéis desolações de Outubro!

Das orlas do poente, afogueado, rubro,
Ó moribundo sol! Com que poesia douras,
As formas triviais das cabecitas louras,
Que, às portas dos casais, de bênçãos também cubro!

Solta o canto final a orquestra da folhagem:
São horas de partir; apresta-se a viagem,
E as noites dos saraus hão de voltar mais belas!

Mas as vistas lançando às regiões saudosas,
Nos esforços cruéis das tosses dolorosas,
Em bandos vão partindo as tísicas donzelas!



O VELHO MUNDO

Eu vejo em toda a Terra um vasto cemitério,
A necrópole imensa, a campa dos colossos,
Aonde em paz descansa o velho megatério,
Por entre a fauna morta, os carcomidos ossos!

E os grandes leviatãs dos primitivos mares!
Os tremendos répteis, cruéis, descomunais,
Celebram no silêncio as núpcias singulares
Dos seus resíduos vis, com ricos minerais!

E os esqueletos nus dos lívidos gigantes
Abraçam-se melhor; conchegam-se na cova,
Deixando um lugar vago aos velhos elefantes
Que vão fugindo à luz da natureza nova!

Também no mundo interno as almas vão seguindo,
Na corrente da vida, em mil circulações;
E da consciência humana o largo abismo infindo
Oculta, há muito já, disformes criações!

Elas dormem na sombra imensa do passado
Aonde em breve hão de ir nos transes doloridos,
A velha Realeza e o trêmulo Papado
Sem forças descansar os corpos corrompidos.

Depois virão mais tarde as gerações futuras
E os dois espectros vãos da sombra hão de evocar,
Bem como a nossa voz, as grandes criaturas
Do mundo primitivo, obriga a despertar.

E as crianças terão seus nomes de memória,
Como exemplo, na vida, a todos os momentos;
E vê-los-eis de pé, nas páginas da história.
Grotescos, maquinais, pesados, sonolentos;

Fazendo-nos pensar; de espanto enchendo tudo;
Sofrendo o riso alvar do ingênuo e do plebeu,
Iguais ao mastodonte armado para estudo
E exposto às irrisões nas salas dum museu!



EIS A VELHA CIDADE!

Eis a velha cidade! A cortesã devassa,
A velha imperatriz da inércia e da cobiça,
Que da torpeza acorda e à pressa corre à missa!
Baixando o olhar incerto em frente de quem passa!

Ela estreita no seio a velha populaça,
Nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
E nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!

E pode receber o beijo e a bofetada
Sem que sinta o rubor da cólera sagrada
Acender-lhe na face as duas rosas belas!

Somente dum sorriso alvar e desonesto,
As vezes, acompanha o provocante gesto
Quando soa a guitarra, à noite, nas vielas!



À NOITE

Eu gosto de velar a percorrer os mundos
Ó noite dos bons cânticos,
Aos lívidos clarões dos astros vagabundos
Nos êxtases românticos,

Enquanto a vil cidade, a cortesã devassa
Dos falsos ouropéis,
Com seus famintos cães, a sua lua baça
E os seus negros bordéis,

Ressona torpemente aos beijos deletérios
Dalguns velhos amantes;
— os longos hospitais e os tristes cemitérios
Que a afagam delirantes!

Contudo eu também sei que existe muito instante
De gelos, em que tu,
Feroz, cravas o dente agudo e penetrante
No pobre seio nu!

Que há horas em que vens, nas úmidas cidades,
Nas choças, nos esgotos,
Cuspir cinicamente as frias tempestades
No seio vil dos rotos,

Sem ter pena, sequer, da pobre mãe que passa
Um dia sem ter pão,
Nem dessa esfarrapada e velha populaça
Que rosna como um cão!...

Mas em breve deixando as tenebrosas vestes,
O manto dos horrores,
E o gládio vingador das cóleras celestes
Ó noite dos amores,

Retomas o tom puro e santo do mistério
Da pálida mulher
Que vai colher, cismando, um lírio ao cemitério
E ao campo um malmequer!

Em horas de tormenta és a mulher colérica!
Até cospes na cruz!
E formam-te espirais na coma atmosférica
As víboras de luz!

Porém no teu regaço, altivo, casto, enorme,
Em doce e plena paz,
É que a virtude sonha e que a desgraça dorme
Depois das horas más,

E em lúcidos cristais há cintilantes vinhos;
Os casos mais galantes;
As lânguidas canções; os belos desalinhos
E os gestos provocantes!

Ó filha do silêncio! Aos puros alabastros
Dos ombros ideais,
Se Deus arremessasse a quantidade de astros
Que em ti brilham a mais,

As pálidas visões que passam doloridas,
E um tanto contristadas,
Haviam de surgir de estrelas revestidas
Em trajos de alvoradas!

Em ti cuida escutar uns sons inexprimíveis
De lânguidas canções,
O pobre sonhador de coisas impossíveis
Que adora as solidões!

E quando o resplendor de mundos luminosos
Na tua fronte cinges,
Os gatos sensuais, elétricos, nervosos
Repousam como esfinges;

Enquanto as combustões dos lívidos cometas,
Errantes e fatais,
Consomem lentamente as grandes borboletas
Dos nossos ideais!

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