A VALA
Trazei
mortos à vala; a hidra está com fome
E
deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhai
como ela mostra àqueles que a vão ver,
Inerte,
sem pudor, de fauce escancarada,
A
amargura cruel da boca desdentada
Que
pede de comer!
Lançai
ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe
carne humana; arremessai-lhe o povo,
Transido
pelo frio ou morto pelo sol!
E
visto haver na fera abismos insondáveis
Mandai-lhe
as legiões dos grandes miseráveis
Que
morrem sem lençol!
Eu
quero vê-la farta, a lúgubre pantera,
Que,
na sombra agachada, olhando em roda, espera
A
presa que lhe inveja a gula dos chacais.
Começa
a ouvir-se ao longe a marcha vagarosa
Da
triste procissão cruel e dolorosa
Que
vem dos hospitais.
Um
velho esquife chega: em duas tábuas toscas
Um
pobre seminu coberto já de moscas,
Num
riso deixa ver não sei que tons cruéis!
Enquanto
nos sorria a luz das noites belas,
Talvez
que ele varresse a lama das vielas
E
o lixo dos bordéis!
E
pôde, enfim, dormir no seio bom da morte!
Após,
como se fora a lívida consorte
Daquele
vil despojo, às mesmas horas vem,
Trazendo
por sudário os seus vestidos rotos,
Uma
triste mulher caída nos esgotos
Sem
bênçãos de ninguém!
Devora-os
ambos fera! Engole-os juntamente:
Reúne-os
em consórcio e dá-os de presente
À
larva que partilha as ânsias do teu ser!
Aguça
o teu desejo! — A garra infecta lança
Ao
corpo tenro e nu duma gentil criança
Que
a mãe te vem trazer!
Redobra
de apetite! Alonga-se a teu lado
A
fila tenebrosa! O espectro do soldado
A
par do que vergou cansado de cavar:
E
o mineiro sem luz, o mártir legendário;
E
amparando-se a custo ao velho proletário
A
flor do lupanar!
Mastiga
a turba vil e alonga essa goela!
Bem
vês que vem chegando um corpo de donzela
Que
pela candidez recorda uma vestal!
Voou-lhe,
num sorriso, o derradeiro arranco
E
traz viçoso ainda um grande lírio branco
No
seio virginal!
O
monstro sensual na sombra tripudia!
Celebra
no silêncio a tenebrosa orgia,
Que
as deusas vêm chegando ao lúbrico festim!
Num
beijo os lábios cola à frígida epiderme
E
o D. Juan da morte, o cavalheiro Verme,
Que
viva e goze enfim!
Eu
quero ver-te farta, em hálitos profundos,
Dormindo
o sono vil dos animais imundos,
De
ventre para o ar, serpente infecta e má!
E
amanhã, na estação dos cândidos amores,
Veremos
rebentar num tapete de flores
O
lixo que em ti há!
E
a santa mocidade; as lânguidas mulheres,
Virão
depois colher os gratos malmequeres,
Pisando-te
sem medo e cheias de desdém,
Em
danças sensuais; o fato em desalinho;
Compondo-te
canções; regando-te de vinho;
Sem
pena de ninguém!
E
tu que és monstruosa, infame, vil, medonha;
Que
não mostras pudor; que não sentes vergonha;
Que
és a campa-monturo e não podes ser mais;
Cingida
enfim, também, de rosas orvalhadas,
Terás
dado um perfume às almas namoradas,
E
pasto aos animais!
Ó VULTOS IDEAIS
Ó
vultos ideais, fantásticos e belos,
Que
às vezes revoais nas salas deslumbrantes,
Num
grande mar de tule, etéreas, flutuantes,
Aos
suspiros fatais dos meigos violoncelos;
Que
bom que era sonhar nos pálidos castelos,
À
noite, à beira-mar, nas solidões distantes,
Nos
tempos em que a flor dos tímidos amantes
À
lua confiava os íntimos anelos!...
Agora
sois gentis, dispépticas, vistosas;
Pagais
por alto preço as esquisitas rosas;
Nos
rápidos wagons correis o mundo em
roda;
Mas
prostradas do baile, amarrotando a luva,
Enquanto
cai na rua a sonolenta chuva,
Cismais
no Deus-Milhão — no Criador da moda!
EU VEJO EM TUA BOCA
Eu
vejo em tua boca as pétalas vermelhas
Duma
rosa de Logo aonde vão libar
O
mel das ilusões, quais tímidas abelhas,
Uns
velhos ideais que em vão tento expulsar.
Dizer-me
podes tu de que óvulo espontâneo,
Tocado
pelo sol, em mim pôde nascer
Este
bando cruel que dentro do meu crânio
Não
faz há muito já senão roer, roer?!
Às
vezes voa ao largo; às serras, às campinas;
Remonta
aos astros bons; torna a descer dos céus;
E
volta a demolir as trêmulas ruínas
Do
templo onde crepita a luz dos dias meus!
Ó
grande flor suave! E nisto se resume
A
constante batalha, o sempiterno afã!
Aspira
a minha essência ao teu grato perfume;
Soçobra
o dia de hoje ao dia de amanhã!
Oh,
volvamos à terra; aos plácidos lugares,
Aonde
os himeneus fecundos e reais
Produzem,
dia a dia, os fetos singulares
E
as sãs vegetações dos cândidos rosais!
E
o que há de etéreo em nós, que siga as breves fases
Dum
fluido transitório, erguendo-se nos céus,
Nas
grandes expansões dos fugitivos gases
Onde
em línguas de fogo às vezes fala Deus.
Forçoso
é separar os dois rivais antigos,
Na
batalha cruel que em nós se reproduz.
Sorria
o que é da terra aos vegetais amigos;
Rebrilhe
o que é do céu nas refrações da luz!
NOS CAMPOS
A
fragrância do trevo e das flores selvagens
Da
noite embalsamava as tépidas bafagens:
Ao
longe os astros bons olhavam-nos dos céus.
O
mundo era um altar; as serras grandes aras;
E
os cânticos da paz corriam nas searas
Em
honra do bom Deus.
No
solene silêncio imersa ia minha alma
Em
tranquila mudez; naquela doce calma
Que
sente germinar os frescos vegetais.
De
súbito uma voz deixou-me um pouco extático:
Detive-me
um momento; olhei: — era o viático!
De
noite a horas tais,
Que
andava Deus fazendo, assim, pela campina,
Trazido
pela mão dum padre sem batina
Roubado
às sensações dum longo ressonar?
Fui
seguindo o cortejo até que numa choça
O
Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se
a rezar.
Nos
restos duma enxerga, ali, no vil casebre,
Um
pobre cavador, mordido pela febre,
Torcia
as grossas mãos nas ânsias do estertor;
E
os filhos seminus sentindo a pena ignota
Tentavam-se
esconder na velha saia rota
Da
mãe louca de dor!
A
voz do sacerdote a custo ressoava.
A
palavra de amor que ali se precisava,
Não
posso dizer bem se acaso ele a soltou.
Falava
o Deus severo e forte dos castigos,
Ou
esse bom Jesus que aos pés dalguns mendigos
Um
dia ajoelhou?
Do
padre tinham medo os trêmulos pequenos.
Os
magros cães fiéis erguendo-se dos fenos
Latiam
tristemente em volta do casal:
E
o levita lançava àquela noite escura
A
bênção derradeira, erguendo a mão segura,
Num
gesto maquinal!
Depois
transpondo, à pressa, a porta da cabana,
Saía
sem deixar da sã verdade humana
O
bálsamo suave, o dom consolador!
Oh,
decerto o Jesus de que nos falam tanto
Não
era o que deixava ali, naquele canto
Sozinha
a mesma dor!
Sorria
Deus, no entanto, em toda a natureza!
Nas
florestas, no vaia, nas serras, na devesa,
Nas
moitas dos rosais, no movediço mar!
O
constelado azul dir-se-ia um santuário!
Havia
aquele albergue apenas solitário,
E
frio o pobre lar!
E
o rude agonizante, o triste moribundo
Que
em breve ia partir; abandonar o mundo;
Os
seus deixando sós, na terra, sem ninguém,
Talvez
ao pressentir o fim da insana lida
Soltasse
maldições, ainda, contra a vida
E
contra nós também!
E
eu lembrei-me então daqueles bons valentes
Que
lutam todo o dia e vão morrer contentes
À
noite, ao pé dos seus, depondo os vãos lauréis;
E
daqueles, também, de frontes requeimadas
Que
pela causa santa, em pé, nas barricadas,
Se
batem contra os reis!
Lembraram-me
os heróis, serenos, bons, austeros,
Que
sagram toda a vida aos ideais severos
Da
justiça e do bem; caindo com valor,
Sem
que a destra cruel dos déspotas os dome
Nas
batalhas da ideia; opressos pela fome,
Varados
pela dor!
Ó
pobres multidões! As grandes noites frias
Não
cessam de morder, famintas e sombrias,
Num
banquete nefando os Vossos corpos nus!
E
o lírio da justiça, a grande flor sagrada,
Nem
sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada,
As
pétalas de luz!
Eu
quando porém lanço as vistas ao futuro
E
vejo dia a dia a despontar mais puro
O
grande sol da ideia, em rúbidos clarões,
Recordo-me
que sois a produtiva leiva
Aonde
já circula uma opulenta seiva,
De
grandes criações!
O ÚLTIMO D. JUAN
Daquele
de quem falo, as sossegadas lousas
Podiam-vos
contar as violações brutais!
A
gula com que morde as mais sagradas coisas
De
horror faz recuar os trêmulos chacais.
Não
descanta à viola, à noite, os seus enleios:
Ele
vive na sombra e eu sei também que vós,
Gentis
belezas de hoje, à astros dos Passeios,
Lhe
não lançais, a furto, a escada de retrós.
Mas
sede muito embora as virgens sem desejos,
As
monjas virginais, uns pudicos dragões;
Fechai
o níveo colo aos vendavais dos beijos,
E
às noites de luar os vossos corações;
Um
dia há de chegar em que ele, informe, tosco,
Sem
garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil;
Nas
grandes solidões irá dormir convosco,
Mordendo
em cada seio o lírio mais gentil!
E
o que ele adora muito ó virgens romanescas
Não
é o que abrigais de etéreo e virginal:
Adora
os corpos nus; as belas carnes frescas;
Deixando
o resto a vós danados do ideal!
Não
vive como nós de cândidas mentiras:
Não
comunga do amor esse ilusório pão:
Devora
com fervor as pálidas Elviras
E
em muitos seios bons dá pasto ao coração!
Tem
palácios na sombra e fazem-lhe um tesouro
Maior
do que o dos reis; adora as solidões:
Não
usa de espadim; não traz esporas de ouro;
Mas
vive como os reis das grandes corrupções!
Flores
sentimentais! Treinei do paladino,
Do
velho D. Juan, feroz conquistador,
A
quem da vossa boca um hálito divino,
Em
vida, faz fugir talvez cheio de horror;
Mas
que um dia virá, na cândida epiderme,
Na
sagrada nudez dos colos virginais,
Em
hinos de triunfo — o grande César-Verme!
Colher
o que ficou de tantos ideais!
FORMOSURAS DO INVERNO!
Formosuras
do inverno! Ao sol das duas horas
A
aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis
aparições dos bailes e das missas,
Desliza
no fulgor das pompas sedutoras.
No
arfar da casimira há frases tentadoras
E
maciezas tais nas lânguidas peliças,
Que
as tristes comoções, decrépitas, mortiças,
Ressurgem
do letargo à pálidas senhoras!
E
muitos hão de ter uns êxtases divinos
Ouvindo
soluçar, à noite, aos violinos,
A
vaga introdução duma balada aérea;
Enquanto,
do futuro, ao toque da alvorada,
Se
escuta, a martelar na sua barricada,
Sinistra,
rota e fria, a lívida Miséria.
ANTIGO TEMA
Passai
larvas gentis na rua da cidade
Aonde
se atropela a turba folgazã;
A
noite é um tanto agreste e cheia de umidade
Mas
o tédio mortal precisa a claridade
Que
em vosso olhar trazeis, visões do macadam!
Estátuas
sem calor! Vós sois das grandes vasas
Dum
corrompido mar as deusas menos vis!
Se
à noite abandonais, voando, as pobres casas,
E
vindes pela rua enlamear as asas,
Quem
sabe a fome oculta, as sedes que sentis!
A
pálida Miséria em seu triste cortejo
Precisa
as contrações de muitos ombros nus:
E
vós ides sorrindo ao lúbrico desejo,
Do
carro da desgraça arremessando um beijo
Que
apenas é de lama em vez de ser de luz!
Embora!
Caminhai deixando um grande rastro
De
estranhas emoções, de aromas sensuais:
E
ao pobre que mendiga a palidez dum astro;
Ao
que sonha visões e arcanjos de alabastro
Fazei
por despenhar nos longos tremedais!
Do
velho idílio, a musa, há muito já que dorme,
E
o arroio em vão suspira e chora a nossos pés!
A
grande multidão — a vaga, a onda enorme,
Que
oscila sem cessar, e gira multiforme
Às
corridas, ao circo, ao templo e aos cafés,
Talvez
ao pressentir que tudo, enfim, declina,
Adore
a imensa luz, em vós, constelações,
Que
não baixais do céu; que vindes duma esquina,
Vagando
no rumor da aérea musselina,
Em
plena bacanal fingindo de visões?
Oh,
sois do nosso tempo! A lânguida existência
De
tédios se consome e sente febres más!
Aspira
ao que é bizarro: a uma esquisita essência
Que
exala aquela flor que vem na decadência
E
quando a toda a luz sucede a luz do gás!
Do
século a voz rude apenas diz — trabalha!
Ao
poste vil amarra o lúbrico ideal
Que
expira, enfim, talhando a fúnebre mortalha
Na
vossa trança gasta, ó musas da canalha
Que
apenas revoais do olimpo ao hospital!
A MÃE
Eu
canto-vos, mulher, porque vos tenho visto
Na
pálpebra vermelha a lágrima de amor,
Que
vem de Eva a Maria — a doce mãe de Cristo —
Formando
a estalactite imensa duma dor!
Oh,
quantas vezes já na aldeia miserável
Nas
tristezas do campo, às portas dos casais,
Vos
tenho surpreendido, em êxtase adorável,
Enquanto
os filhos nus ao peito conchegais!
A
fria noite chega. Os maus, de boca cheia,
Rebolam-se
na terra: ainda pedem pão!
Com
eles repartis a vossa parca ceia;
E
vendo-os a dormir podeis sorrir então.
De
inverno quase sempre as noites são mordentes.
Uivam
lobos na serra: o vento uiva também:
Mas
eles vão dormindo os longos sonos quentes,
Enquanto
a vil insônia oprime a pobre mãe!
Tendes
sustos cruéis. Temendo que lhes caia
A
roupa que os abafa, aos pobres acudis;
E
aninhando-os melhor nas vossas velhas saias
Podeis
então dormir um tanto mais feliz.
Mulher
quanto é suave e longo esse poema
Quanto
é preciso ó mãe, no trânsito cruel,
Que
vossa alma estremeça e o vosso peito gema
A
fim de que em vós brilhe o mais alto laurel!
Quem
é que nunca viu, na rua, a cada passo,
A
pálida mulher que rompe a multidão,
Trazendo
agasalhado, um filho no regaço,
E
aos tombos, muita vez, um outro pela mão?!
Nos
frios do lajedo, às vezes, pede esmola
Às
portas dos cafés: ninguém a quer ouvir:
E
a ela qualquer côdea a farta e a consola
Contanto
que sem fome os filhos vão dormir!
E
enquanto à luz do gás a turba prazenteira
No
fumo dos festins revoa em turbilhão,
Quantos
dramas cruéis nas úmidas trapeiras;
Nos
campos quantas mães sem roupas e sem pão?!
E
sempre a mesma lenda, a mesma história antiga:
Do
palácio à cabana o vosso doce olhar,
Nas
insônias cruéis, na fome ou na fadiga,
Dum
raio criador o berço a iluminar!
No
entanto à doce mãe, se aquele amor sem termo,
Da
moda traja agora os novos ouropéis,
E
o vosso coração já gasto e um pouco enfermo,
Sofrendo
se dilui nos ideais cruéis;
Nas
vagas pulsações dumas recentes ânsias,
Se
aquela santa flor das grandes comoções,
Apenas
tem lugar nas vossas elegâncias,
Como
um enfeite de mimo amado nos salões;
Na
corrente fatal que ao longe arrasta os povos,
Se
o vosso grande afeto intenta erguer-se mais,
Sonhando
a sagração dos heroísmos novos,
Resplendente
de luz; vistosa de metais:
Aos
reflexos do gás, ó mãe, abri passagem
Por
entre a saudação das alas cortesãs,
Levando
as seduções da vossa doce imagem
Aos
delírios da noite, às ceias das manhãs!
Surgi
do canto obscuro aonde o casto seio
Palpita
ingênuo e bom na paz da solidão,
E
o vosso amor levai à ópera e ao passeio
A
fim de que ele arranque um bravo à multidão!
E
eu hei de rir ao ver que o peito onde um tesouro
Maior
do que nenhum podemos encontrar,
Intenta
seduzir pela medalha de ouro
Que
aos pequenos heróis os reis costumam dar!
ARCANJO VAI-TE EMBORA
Arcanjo
vai-te embora: é tarde: em nossas casas
Talvez
alguém se aflija; é tão deserta a rua!...
Tu
deves sentir frio! Embuça-te nas asas:
Dá
saudades à lua.
Um
beijo em cada estrela!... Espera que eu sou louco!
Sonhei
devo pagar: perdão anjo dos céus!
Agora
tem cuidado; o céu escorrega um pouco:
Boas
noites adeus!
SANTA SIMPLICIDADE
Na
serena missão de paz que tu cumpriste
Ó
suave Jesus, ó doce galileu,
Que
santa singeleza e que perfume triste
Do
Teu casto perfil no mundo rescendeu!
Havia
no Teu verbo aquela unção divina
Que
a velha harpa de Jó soltou nas solidões,
E
o belo, o puro sol da antiga Palestina
Suave
contornou, de luz, Tuas feições!
Compunham-Te
o cortejo uns pobres pescadores
Almas
retas e sãs; marchavas por Teu pé,
E
sorrias falando aos rudes e aos pastores,
Sentado
nos portais da pobre Nazaré.
Da
Tua Galileia os vales percorrias
Levando
um bom quinhão de afeto a cada lar,
E
o grande olhar suave e terno das judias
Turbaste
muita vez, decerto, sem pensar!
E
mais simples na morte, apenas a Tua alma
Transpunha
as regiões puríssimas do sol,
Tu
que havias colhido a imorredoura palma
Não
tinhas para o corpo as galas dum lençol!
Consola-te
ó Jesus! Tu deves já ter visto
Que
sobre a Terra, agora, ao Teu nome fiéis,
Os
que se dizem ser apóstolos de Cristo
Não
precisam trajar os ínfimos buréis.
Não
maceram seus pés! Não vão pobres e rotos
Envoltos
na estamenha, apedrejados, sós,
Nos
desertos viver de mel e gafanhotos,
Convertendo
o gentio ao som da sua voz.
Ante
eles, ao contrário, alargam-se os batentes
Dos
palácios reais, nas grandes recepções,
E
formam-lhes cortejo os coches reluzentes
Atrás
dos quais se bate um trote de esquadrões!
Cobrindo-lhes,
depois, de insígnias as roupetas,
A
fim de honrar melhor a primitiva fé,
Redobram-se
ainda mais as velhas etiquetas;
Polvilham-se
melhor os homens da libré!
E
dão-se-lhes festins onde há grandes baixelas,
Fatais
cintilações de vinhos e rubins,
Gargantas
ideais, grandes espáduas belas,
Lampejo
de cristais, insídias de cetins!
Oh!
Temo bem Jesus que tantas pedrarias
Façam
peso demais na barca do Senhor,
Quando
é certo que as mãos de Pedro um pouco frias
Mal
podem segurar o leme salvador!
Por
isso quando avisto o espaço que negreja
E
o mar que se encapela, eu temo que amanhã
Do
fendido baixel da Tua velha Igreja
Apenas
reste, à proa, uma ficção pagã!
O VELHO OLIMPO
O velho Olimpo dorme o bom sono comprido
Que
prostra o lutador no fim duma batalha,
E
os deuses doutro tempo, em lívida mortalha,
Descansam
no torpor dum mundo corrompido.
No
puro céu cristão, de estrelas revestido,
No
entanto há muito já que chora e que trabalha,
Por
nós o Cristo bom sem que seu Pai lhe valha,
A
fim de ver, de todo, o mundo redimido!
Justiça,
traça o manto alvíssimo e estrelado
E
senta-te, mulher, no trono abandonado
Pelos
vultos gentis de tantos deuses velhos!
Depois
inda maior, mais pura e mais serena,
No
sangue de Jesus molhando a tua pena
Explica
a nova lei no fim dos evangelhos!
OS PALHAÇOS
Heróis
da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
Eu
gosto de vocês,
Porque
amo as expansões dos grandes risos francos
E
os gestos de entremez,
E
prezo, sobretudo, as grandes ironias
Das
farsas joviais.
Que
em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
À
turba arremessais!
Alegres
histriões dos circos e das praças,
Ah,
sim, gosto de vos ver
Nas
grandes contorções, a rir, a dizer graças
De
o povo enlouquecer,
Ungidos
pela luta heroica, descambada,
De
giz e de carmim,
Nas
mímicas sem par, heróis da bofetada,
Titãs
do trampolim!
Correi,
subi, voai num turbilhão fantástico
Por
entre as saudações
Da
turba que festeja o semideus elástico
Nas
grandes ascensões,
E
no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
Fazei
por disparar
Na
face trivial do mundo egoísta e sério
A
gargalhada alvar!
Depois,
mais perto ainda, a voltear no espaço,
Pregai-lhe,
se podeis,
Um
pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
Luzentes
como reis!
Eu
rio sempre, ao ver aquela majestade,
Os
trágicos desdéns
Com
que nos divertis, cobertos de alvaiade,
A
troco duns vinténs!
Mas
rio ainda mais dos histriões burgueses,
Cobertos
de ouropéis,
Que
tomam neste mundo, em longos entremezes,
A
sério os seus papéis.
São
eles, almas vãs, consciências rebocadas,
Que
enfim merecem mais
O
comentário atroz das rijas gargalhadas
Que
às vezes disparais!
Portanto,
é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
Nas
cômicas funções,
Até
fazer morrer, em desmanchados gestos,
De
riso as multidões!
E
eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
E
os gestos de entremez,
Deixai-me
dizer isto, ó nobres saltimbancos:
Eu
gosto de vocês!
A HIDRA
Há
muito que desceu das orientais montanhas
A
hidra singular que espalha nas ardências
Duma
luta febril cintilações estranhas!
Ela
galga, rugindo, às grandes eminências,
E
enquanto vai soltando o silvo pelo espaço
Engrossa
à luz do sol na seiva das consciências.
Tem
rijezas sem par, como de roscas de aço
E
corre descrevendo em giros caprichosos
Na
leiva popular um indefinido traço.
Prefere
aos antros vis os focos luminosos
E
em mil voltas cruéis aperta dia a dia,
Numa
longa espiral, os tronos carunchosos.
Passou
pelo país da cândida Utopia:
Nos
míticos rosais viveu dum vago aroma
Ao
pálido fulgor da aurora que rompia.
Mas
hoje com valor em toda a parte assoma,
E
sem temer sequer a lúgubre viseira
Há
muito que transpôs os pórticos de Roma.
E
os Papas mais os reis sentindo-a na carreira
Do
seu longo triunfo, um tanto apavorados,
Trataram
de acender a lívida fogueira.
E
ao galope lançando os esquadrões cerrados
Começaram
depois, na terra, a persegui-la,
A
cúmplice fatal dos lívidos Pecados!
Mas
ela sem temor, nos cérberos tranquila,
Derrama
cada vez mais belos e fecundos
Os
intensos clarões da lúcida pupila,
E
enquanto a imprecação de tantos moribundos,
Os
déspotas cruéis, acolhem com desdém,
A
hidra imensa — a Ideia — a farejar nos mundos
Ainda
a garra adunca afia contra alguém!
OS NOVOS LEVIATÃS
Dos
antigos Titãs, o mar — fera indomável,
Agora
verga o dorso ao peso colossal
Dos
novos leviatãs que em bando formidável,
Nas
grandes explosões da cólera insondável,
Já
levam de vencida o abismo e o vendaval!
Eles
seguem no mar, altivos no seu rumo,
Em
hálitos de fogo, à nossa voz fiéis,
E
como o combatente erguendo a lança a prumo,
Em
turbilhões rompendo, as flâmulas de fumo
Ostentam
sem cessar correndo entre os parcéis!
Que
sopro criador, que força onipotente
Os
fez surgir do nada, os monstros colossais?
Os
novos leviatãs provindes tão-somente
Do
fecundo himeneu, deste conúbio ardente
Do
Gênio e do Trabalho, amantes imortais!
Correis
de mar em mar, altivos, triunfantes,
Levando
a toda a parte a vida, a nova luz,
E
as sereias gentis não fazem como dantes,
Ao
som da sua voz, perder os navegantes;
O
dorso dos delfins, no mar, já não reluz!
Ó
alma antiga dorme inerte no regaço
Dos
velhos deuses vãos, que o homem criador
Agora
ri de ti, prostrada de cansaço,
Enquanto
vai soprando em mil gigantes de aço
Outra
alma inda mais larga — o novo Deus-Vapor!
SUA ALTEZA REAL
Sua
alteza real o pequenino infante
Matou,
dum tiro só, dois gamos na carreira:
Um
hino mais ao céu, pois era a vez primeira
Que
sua alteza vinha à diversão galante!
O
vergôntea gentil! Quando um tropel distante
De
súbito acordar os ecos da clareira
E
uma presa cansada, em rolos de poeira,
Varada,
a nossos pés, cair agonizante,
Acercai-vos
então da pobre fera exangue
Que
estrebucha de dor num mar de lama e sangue
Sem
que um grito de dó nos corações acorde!
No
entanto não fiqueis na doce glória absorto:
O
velho javali parece às vezes morto
Mas
surge da agonia e os seus algozes morde!
Eu
sou, mulher suave, aquele antigo louco,
O
triste sonhador que o teu olhar cantou,
E
que hoje vai sentindo, o sonho, a pouco e pouco,
Fugir
como o luar dum astro que expirou!
Que
morra, porque, enfim, bem longo ele tem sido
E
tempo é já, talvez, da morte desposar
O
sonho que em minha alma entrou como um bandido
E
só da vida sai depois de me roubar!
Eu
devera amarrá-lo à braga do forçado,
Como
a Justiça faz aos desprezíveis réus,
E
lançá-lo depois à vala do passado
Aonde
o fulminasse a cólera dos céus.
Mas
não; quero embalar-lhe os últimos momentos
Ao
som duma canção das quadras juvenis,
E
amortalhar depois — em doces pensamentos —
No
manto da saudade, os seus restos gentis.
E
quando ele seguir às regiões saudosas,
Aonde
todos nós iremos repousar,
Ao
esquife hei de atirar-lhe as derradeiras rosas
Que
dentro da minha alma houver por desfolhar!
Ninguém
profanará seus restos adorados,
Que
em paz irão dormir num fundo mausoléu;
E
quando alguma vez já hirtos, regelados,
Acordem,
porventura, à luz que vem do céu;
Em
vão tu baterás, ó sonho, à fria porta
Que
em breve hás de sentir fechada sobre ti,
Porque
a tua Memória, enfim, já estará morta,
E
não te escutarei... Porque também morri!
Ó POBRES VERSOS MEUS
Ó
pobres versos meus, lançai-vos pela estrada
Agreste
e pedregosa, aonde os companheiros
Da
luta, encontrareis, meus ínfimos guerreiros,
Formando
os batalhões da bélica avançada!
E
o trajo em desalinho, a face iluminada,
Transponde,
sem demora, os fossos derradeiros
Que
separam de nós os braços justiceiros
Da
serena Verdade, a deusa idolatrada.
Vencidos
no combate, ou pouco ou nada importa,
Ao
chão vergai sem pena a face semimorta,
Mordendo,
inda a lutar, o pó da enorme liça:
E
tudo, enfim, esquecendo: os ódios e os desprezos;
Que
de entre vós alguns, ao menos, fiquem presos
Como
fios de luz, ao manto da Justiça!
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