1/06/2020

Guilherme de Azevedo - Poesias


A VALA

Trazei mortos à vala; a hidra está com fome
E deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhai como ela mostra àqueles que a vão ver,
Inerte, sem pudor, de fauce escancarada,
A amargura cruel da boca desdentada
Que pede de comer!

Lançai ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe carne humana; arremessai-lhe o povo,
Transido pelo frio ou morto pelo sol!
E visto haver na fera abismos insondáveis
Mandai-lhe as legiões dos grandes miseráveis
Que morrem sem lençol!

Eu quero vê-la farta, a lúgubre pantera,
Que, na sombra agachada, olhando em roda, espera
A presa que lhe inveja a gula dos chacais.
Começa a ouvir-se ao longe a marcha vagarosa
Da triste procissão cruel e dolorosa
Que vem dos hospitais.

Um velho esquife chega: em duas tábuas toscas
Um pobre seminu coberto já de moscas,
Num riso deixa ver não sei que tons cruéis!
Enquanto nos sorria a luz das noites belas,
Talvez que ele varresse a lama das vielas
E o lixo dos bordéis!

E pôde, enfim, dormir no seio bom da morte!
Após, como se fora a lívida consorte
Daquele vil despojo, às mesmas horas vem,
Trazendo por sudário os seus vestidos rotos,
Uma triste mulher caída nos esgotos
Sem bênçãos de ninguém!

Devora-os ambos fera! Engole-os juntamente:
Reúne-os em consórcio e dá-os de presente
À larva que partilha as ânsias do teu ser!
Aguça o teu desejo! — A garra infecta lança
Ao corpo tenro e nu duma gentil criança
Que a mãe te vem trazer!

Redobra de apetite! Alonga-se a teu lado
A fila tenebrosa! O espectro do soldado
A par do que vergou cansado de cavar:
E o mineiro sem luz, o mártir legendário;
E amparando-se a custo ao velho proletário
A flor do lupanar!

Mastiga a turba vil e alonga essa goela!
Bem vês que vem chegando um corpo de donzela
Que pela candidez recorda uma vestal!
Voou-lhe, num sorriso, o derradeiro arranco
E traz viçoso ainda um grande lírio branco
No seio virginal!

O monstro sensual na sombra tripudia!
Celebra no silêncio a tenebrosa orgia,
Que as deusas vêm chegando ao lúbrico festim!
Num beijo os lábios cola à frígida epiderme
E o D. Juan da morte, o cavalheiro Verme,
Que viva e goze enfim!

Eu quero ver-te farta, em hálitos profundos,
Dormindo o sono vil dos animais imundos,
De ventre para o ar, serpente infecta e má!
E amanhã, na estação dos cândidos amores,
Veremos rebentar num tapete de flores
O lixo que em ti há!

E a santa mocidade; as lânguidas mulheres,
Virão depois colher os gratos malmequeres,
Pisando-te sem medo e cheias de desdém,
Em danças sensuais; o fato em desalinho;
Compondo-te canções; regando-te de vinho;
Sem pena de ninguém!

E tu que és monstruosa, infame, vil, medonha;
Que não mostras pudor; que não sentes vergonha;
Que és a campa-monturo e não podes ser mais;
Cingida enfim, também, de rosas orvalhadas,
Terás dado um perfume às almas namoradas,
E pasto aos animais!



Ó VULTOS IDEAIS

Ó vultos ideais, fantásticos e belos,
Que às vezes revoais nas salas deslumbrantes,
Num grande mar de tule, etéreas, flutuantes,
Aos suspiros fatais dos meigos violoncelos;

Que bom que era sonhar nos pálidos castelos,
À noite, à beira-mar, nas solidões distantes,
Nos tempos em que a flor dos tímidos amantes
À lua confiava os íntimos anelos!...

Agora sois gentis, dispépticas, vistosas;
Pagais por alto preço as esquisitas rosas;
Nos rápidos wagons correis o mundo em roda;

Mas prostradas do baile, amarrotando a luva,
Enquanto cai na rua a sonolenta chuva,
Cismais no Deus-Milhão — no Criador da moda!



EU VEJO EM TUA BOCA

Eu vejo em tua boca as pétalas vermelhas
Duma rosa de Logo aonde vão libar
O mel das ilusões, quais tímidas abelhas,
Uns velhos ideais que em vão tento expulsar.

Dizer-me podes tu de que óvulo espontâneo,
Tocado pelo sol, em mim pôde nascer
Este bando cruel que dentro do meu crânio
Não faz há muito já senão roer, roer?!

Às vezes voa ao largo; às serras, às campinas;
Remonta aos astros bons; torna a descer dos céus;
E volta a demolir as trêmulas ruínas
Do templo onde crepita a luz dos dias meus!

Ó grande flor suave! E nisto se resume
A constante batalha, o sempiterno afã!
Aspira a minha essência ao teu grato perfume;
Soçobra o dia de hoje ao dia de amanhã!

Oh, volvamos à terra; aos plácidos lugares,
Aonde os himeneus fecundos e reais
Produzem, dia a dia, os fetos singulares
E as sãs vegetações dos cândidos rosais!

E o que há de etéreo em nós, que siga as breves fases
Dum fluido transitório, erguendo-se nos céus,
Nas grandes expansões dos fugitivos gases
Onde em línguas de fogo às vezes fala Deus.

Forçoso é separar os dois rivais antigos,
Na batalha cruel que em nós se reproduz.
Sorria o que é da terra aos vegetais amigos;
Rebrilhe o que é do céu nas refrações da luz!



NOS CAMPOS

A fragrância do trevo e das flores selvagens
Da noite embalsamava as tépidas bafagens:
Ao longe os astros bons olhavam-nos dos céus.
O mundo era um altar; as serras grandes aras;
E os cânticos da paz corriam nas searas
Em honra do bom Deus.

No solene silêncio imersa ia minha alma
Em tranquila mudez; naquela doce calma
Que sente germinar os frescos vegetais.
De súbito uma voz deixou-me um pouco extático:
Detive-me um momento; olhei: — era o viático!
De noite a horas tais,

Que andava Deus fazendo, assim, pela campina,
Trazido pela mão dum padre sem batina
Roubado às sensações dum longo ressonar?
Fui seguindo o cortejo até que numa choça
O Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se a rezar.

Nos restos duma enxerga, ali, no vil casebre,
Um pobre cavador, mordido pela febre,
Torcia as grossas mãos nas ânsias do estertor;
E os filhos seminus sentindo a pena ignota
Tentavam-se esconder na velha saia rota
Da mãe louca de dor!

A voz do sacerdote a custo ressoava.
A palavra de amor que ali se precisava,
Não posso dizer bem se acaso ele a soltou.
Falava o Deus severo e forte dos castigos,
Ou esse bom Jesus que aos pés dalguns mendigos
Um dia ajoelhou?

Do padre tinham medo os trêmulos pequenos.
Os magros cães fiéis erguendo-se dos fenos
Latiam tristemente em volta do casal:
E o levita lançava àquela noite escura
A bênção derradeira, erguendo a mão segura,
Num gesto maquinal!

Depois transpondo, à pressa, a porta da cabana,
Saía sem deixar da sã verdade humana
O bálsamo suave, o dom consolador!
Oh, decerto o Jesus de que nos falam tanto
Não era o que deixava ali, naquele canto
Sozinha a mesma dor!

Sorria Deus, no entanto, em toda a natureza!
Nas florestas, no vaia, nas serras, na devesa,
Nas moitas dos rosais, no movediço mar!
O constelado azul dir-se-ia um santuário!
Havia aquele albergue apenas solitário,
E frio o pobre lar!

E o rude agonizante, o triste moribundo
Que em breve ia partir; abandonar o mundo;
Os seus deixando sós, na terra, sem ninguém,
Talvez ao pressentir o fim da insana lida
Soltasse maldições, ainda, contra a vida
E contra nós também!

E eu lembrei-me então daqueles bons valentes
Que lutam todo o dia e vão morrer contentes
À noite, ao pé dos seus, depondo os vãos lauréis;
E daqueles, também, de frontes requeimadas
Que pela causa santa, em pé, nas barricadas,
Se batem contra os reis!

Lembraram-me os heróis, serenos, bons, austeros,
Que sagram toda a vida aos ideais severos
Da justiça e do bem; caindo com valor,
Sem que a destra cruel dos déspotas os dome
Nas batalhas da ideia; opressos pela fome,
Varados pela dor!

Ó pobres multidões! As grandes noites frias
Não cessam de morder, famintas e sombrias,
Num banquete nefando os Vossos corpos nus!
E o lírio da justiça, a grande flor sagrada,
Nem sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada,
As pétalas de luz!

Eu quando porém lanço as vistas ao futuro
E vejo dia a dia a despontar mais puro
O grande sol da ideia, em rúbidos clarões,
Recordo-me que sois a produtiva leiva
Aonde já circula uma opulenta seiva,
De grandes criações!



O ÚLTIMO D. JUAN

Daquele de quem falo, as sossegadas lousas
Podiam-vos contar as violações brutais!
A gula com que morde as mais sagradas coisas
De horror faz recuar os trêmulos chacais.

Não descanta à viola, à noite, os seus enleios:
Ele vive na sombra e eu sei também que vós,
Gentis belezas de hoje, à astros dos Passeios,
Lhe não lançais, a furto, a escada de retrós.

Mas sede muito embora as virgens sem desejos,
As monjas virginais, uns pudicos dragões;
Fechai o níveo colo aos vendavais dos beijos,
E às noites de luar os vossos corações;

Um dia há de chegar em que ele, informe, tosco,
Sem garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil;
Nas grandes solidões irá dormir convosco,
Mordendo em cada seio o lírio mais gentil!

E o que ele adora muito ó virgens romanescas
Não é o que abrigais de etéreo e virginal:
Adora os corpos nus; as belas carnes frescas;
Deixando o resto a vós danados do ideal!

Não vive como nós de cândidas mentiras:
Não comunga do amor esse ilusório pão:
Devora com fervor as pálidas Elviras
E em muitos seios bons dá pasto ao coração!

Tem palácios na sombra e fazem-lhe um tesouro
Maior do que o dos reis; adora as solidões:
Não usa de espadim; não traz esporas de ouro;
Mas vive como os reis das grandes corrupções!

Flores sentimentais! Treinei do paladino,
Do velho D. Juan, feroz conquistador,
A quem da vossa boca um hálito divino,
Em vida, faz fugir talvez cheio de horror;

Mas que um dia virá, na cândida epiderme,
Na sagrada nudez dos colos virginais,
Em hinos de triunfo — o grande César-Verme!
Colher o que ficou de tantos ideais!



FORMOSURAS DO INVERNO!

Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
A aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis aparições dos bailes e das missas,
Desliza no fulgor das pompas sedutoras.

No arfar da casimira há frases tentadoras
E maciezas tais nas lânguidas peliças,
Que as tristes comoções, decrépitas, mortiças,
Ressurgem do letargo à pálidas senhoras!

E muitos hão de ter uns êxtases divinos
Ouvindo soluçar, à noite, aos violinos,
A vaga introdução duma balada aérea;

Enquanto, do futuro, ao toque da alvorada,
Se escuta, a martelar na sua barricada,
Sinistra, rota e fria, a lívida Miséria.



ANTIGO TEMA

Passai larvas gentis na rua da cidade
Aonde se atropela a turba folgazã;
A noite é um tanto agreste e cheia de umidade
Mas o tédio mortal precisa a claridade
Que em vosso olhar trazeis, visões do macadam!

Estátuas sem calor! Vós sois das grandes vasas
Dum corrompido mar as deusas menos vis!
Se à noite abandonais, voando, as pobres casas,
E vindes pela rua enlamear as asas,
Quem sabe a fome oculta, as sedes que sentis!

A pálida Miséria em seu triste cortejo
Precisa as contrações de muitos ombros nus:
E vós ides sorrindo ao lúbrico desejo,
Do carro da desgraça arremessando um beijo
Que apenas é de lama em vez de ser de luz!

Embora! Caminhai deixando um grande rastro
De estranhas emoções, de aromas sensuais:
E ao pobre que mendiga a palidez dum astro;
Ao que sonha visões e arcanjos de alabastro
Fazei por despenhar nos longos tremedais!

Do velho idílio, a musa, há muito já que dorme,
E o arroio em vão suspira e chora a nossos pés!
A grande multidão — a vaga, a onda enorme,
Que oscila sem cessar, e gira multiforme
Às corridas, ao circo, ao templo e aos cafés,

Talvez ao pressentir que tudo, enfim, declina,
Adore a imensa luz, em vós, constelações,
Que não baixais do céu; que vindes duma esquina,
Vagando no rumor da aérea musselina,
Em plena bacanal fingindo de visões?

Oh, sois do nosso tempo! A lânguida existência
De tédios se consome e sente febres más!
Aspira ao que é bizarro: a uma esquisita essência
Que exala aquela flor que vem na decadência
E quando a toda a luz sucede a luz do gás!

Do século a voz rude apenas diz — trabalha!
Ao poste vil amarra o lúbrico ideal
Que expira, enfim, talhando a fúnebre mortalha
Na vossa trança gasta, ó musas da canalha
Que apenas revoais do olimpo ao hospital!


A MÃE

Eu canto-vos, mulher, porque vos tenho visto
Na pálpebra vermelha a lágrima de amor,
Que vem de Eva a Maria — a doce mãe de Cristo —
Formando a estalactite imensa duma dor!

Oh, quantas vezes já na aldeia miserável
Nas tristezas do campo, às portas dos casais,
Vos tenho surpreendido, em êxtase adorável,
Enquanto os filhos nus ao peito conchegais!

A fria noite chega. Os maus, de boca cheia,
Rebolam-se na terra: ainda pedem pão!
Com eles repartis a vossa parca ceia;
E vendo-os a dormir podeis sorrir então.

De inverno quase sempre as noites são mordentes.
Uivam lobos na serra: o vento uiva também:
Mas eles vão dormindo os longos sonos quentes,
Enquanto a vil insônia oprime a pobre mãe!

Tendes sustos cruéis. Temendo que lhes caia
A roupa que os abafa, aos pobres acudis;
E aninhando-os melhor nas vossas velhas saias
Podeis então dormir um tanto mais feliz.

Mulher quanto é suave e longo esse poema
Quanto é preciso ó mãe, no trânsito cruel,
Que vossa alma estremeça e o vosso peito gema
A fim de que em vós brilhe o mais alto laurel!

Quem é que nunca viu, na rua, a cada passo,
A pálida mulher que rompe a multidão,
Trazendo agasalhado, um filho no regaço,
E aos tombos, muita vez, um outro pela mão?!

Nos frios do lajedo, às vezes, pede esmola
Às portas dos cafés: ninguém a quer ouvir:
E a ela qualquer côdea a farta e a consola
Contanto que sem fome os filhos vão dormir!

E enquanto à luz do gás a turba prazenteira
No fumo dos festins revoa em turbilhão,
Quantos dramas cruéis nas úmidas trapeiras;
Nos campos quantas mães sem roupas e sem pão?!

E sempre a mesma lenda, a mesma história antiga:
Do palácio à cabana o vosso doce olhar,
Nas insônias cruéis, na fome ou na fadiga,
Dum raio criador o berço a iluminar!

No entanto à doce mãe, se aquele amor sem termo,
Da moda traja agora os novos ouropéis,
E o vosso coração já gasto e um pouco enfermo,
Sofrendo se dilui nos ideais cruéis;

Nas vagas pulsações dumas recentes ânsias,
Se aquela santa flor das grandes comoções,
Apenas tem lugar nas vossas elegâncias,
Como um enfeite de mimo amado nos salões;

Na corrente fatal que ao longe arrasta os povos,
Se o vosso grande afeto intenta erguer-se mais,
Sonhando a sagração dos heroísmos novos,
Resplendente de luz; vistosa de metais:

Aos reflexos do gás, ó mãe, abri passagem
Por entre a saudação das alas cortesãs,
Levando as seduções da vossa doce imagem
Aos delírios da noite, às ceias das manhãs!

Surgi do canto obscuro aonde o casto seio
Palpita ingênuo e bom na paz da solidão,
E o vosso amor levai à ópera e ao passeio
A fim de que ele arranque um bravo à multidão!

E eu hei de rir ao ver que o peito onde um tesouro
Maior do que nenhum podemos encontrar,
Intenta seduzir pela medalha de ouro
Que aos pequenos heróis os reis costumam dar!



ARCANJO VAI-TE EMBORA

Arcanjo vai-te embora: é tarde: em nossas casas
Talvez alguém se aflija; é tão deserta a rua!...
Tu deves sentir frio! Embuça-te nas asas:
Dá saudades à lua.

Um beijo em cada estrela!... Espera que eu sou louco!
Sonhei devo pagar: perdão anjo dos céus!
Agora tem cuidado; o céu escorrega um pouco:
Boas noites adeus!



SANTA SIMPLICIDADE

Na serena missão de paz que tu cumpriste
Ó suave Jesus, ó doce galileu,
Que santa singeleza e que perfume triste
Do Teu casto perfil no mundo rescendeu!

Havia no Teu verbo aquela unção divina
Que a velha harpa de Jó soltou nas solidões,
E o belo, o puro sol da antiga Palestina
Suave contornou, de luz, Tuas feições!

Compunham-Te o cortejo uns pobres pescadores
Almas retas e sãs; marchavas por Teu pé,
E sorrias falando aos rudes e aos pastores,
Sentado nos portais da pobre Nazaré.

Da Tua Galileia os vales percorrias
Levando um bom quinhão de afeto a cada lar,
E o grande olhar suave e terno das judias
Turbaste muita vez, decerto, sem pensar!

E mais simples na morte, apenas a Tua alma
Transpunha as regiões puríssimas do sol,
Tu que havias colhido a imorredoura palma
Não tinhas para o corpo as galas dum lençol!

Consola-te ó Jesus! Tu deves já ter visto
Que sobre a Terra, agora, ao Teu nome fiéis,
Os que se dizem ser apóstolos de Cristo
Não precisam trajar os ínfimos buréis.

Não maceram seus pés! Não vão pobres e rotos
Envoltos na estamenha, apedrejados, sós,
Nos desertos viver de mel e gafanhotos,
Convertendo o gentio ao som da sua voz.

Ante eles, ao contrário, alargam-se os batentes
Dos palácios reais, nas grandes recepções,
E formam-lhes cortejo os coches reluzentes
Atrás dos quais se bate um trote de esquadrões!

Cobrindo-lhes, depois, de insígnias as roupetas,
A fim de honrar melhor a primitiva fé,
Redobram-se ainda mais as velhas etiquetas;
Polvilham-se melhor os homens da libré!

E dão-se-lhes festins onde há grandes baixelas,
Fatais cintilações de vinhos e rubins,
Gargantas ideais, grandes espáduas belas,
Lampejo de cristais, insídias de cetins!

Oh! Temo bem Jesus que tantas pedrarias
Façam peso demais na barca do Senhor,
Quando é certo que as mãos de Pedro um pouco frias
Mal podem segurar o leme salvador!

Por isso quando avisto o espaço que negreja
E o mar que se encapela, eu temo que amanhã
Do fendido baixel da Tua velha Igreja
Apenas reste, à proa, uma ficção pagã!



O VELHO OLIMPO

O velho Olimpo dorme o bom sono comprido
Que prostra o lutador no fim duma batalha,
E os deuses doutro tempo, em lívida mortalha,
Descansam no torpor dum mundo corrompido.

No puro céu cristão, de estrelas revestido,
No entanto há muito já que chora e que trabalha,
Por nós o Cristo bom sem que seu Pai lhe valha,
A fim de ver, de todo, o mundo redimido!

Justiça, traça o manto alvíssimo e estrelado
E senta-te, mulher, no trono abandonado
Pelos vultos gentis de tantos deuses velhos!

Depois inda maior, mais pura e mais serena,
No sangue de Jesus molhando a tua pena
Explica a nova lei no fim dos evangelhos!


OS PALHAÇOS

Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
Eu gosto de vocês,
Porque amo as expansões dos grandes risos francos
E os gestos de entremez,

E prezo, sobretudo, as grandes ironias
Das farsas joviais.
Que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
À turba arremessais!

Alegres histriões dos circos e das praças,
Ah, sim, gosto de vos ver
Nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
De o povo enlouquecer,

Ungidos pela luta heroica, descambada,
De giz e de carmim,
Nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
Titãs do trampolim!

Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
Por entre as saudações
Da turba que festeja o semideus elástico
Nas grandes ascensões,

E no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
Fazei por disparar
Na face trivial do mundo egoísta e sério
A gargalhada alvar!

Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
Pregai-lhe, se podeis,
Um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
Luzentes como reis!

Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
Os trágicos desdéns
Com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
A troco duns vinténs!

Mas rio ainda mais dos histriões burgueses,
Cobertos de ouropéis,
Que tomam neste mundo, em longos entremezes,
A sério os seus papéis.

São eles, almas vãs, consciências rebocadas,
Que enfim merecem mais
O comentário atroz das rijas gargalhadas
Que às vezes disparais!

Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
Nas cômicas funções,
Até fazer morrer, em desmanchados gestos,
De riso as multidões!

E eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
E os gestos de entremez,
Deixai-me dizer isto, ó nobres saltimbancos:
Eu gosto de vocês!



A HIDRA

Há muito que desceu das orientais montanhas
A hidra singular que espalha nas ardências
Duma luta febril cintilações estranhas!

Ela galga, rugindo, às grandes eminências,
E enquanto vai soltando o silvo pelo espaço
Engrossa à luz do sol na seiva das consciências.

Tem rijezas sem par, como de roscas de aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.

Prefere aos antros vis os focos luminosos
E em mil voltas cruéis aperta dia a dia,
Numa longa espiral, os tronos carunchosos.

Passou pelo país da cândida Utopia:
Nos míticos rosais viveu dum vago aroma
Ao pálido fulgor da aurora que rompia.

Mas hoje com valor em toda a parte assoma,
E sem temer sequer a lúgubre viseira
Há muito que transpôs os pórticos de Roma.

E os Papas mais os reis sentindo-a na carreira
Do seu longo triunfo, um tanto apavorados,
Trataram de acender a lívida fogueira.

E ao galope lançando os esquadrões cerrados
Começaram depois, na terra, a persegui-la,
A cúmplice fatal dos lívidos Pecados!

Mas ela sem temor, nos cérberos tranquila,
Derrama cada vez mais belos e fecundos
Os intensos clarões da lúcida pupila,

E enquanto a imprecação de tantos moribundos,
Os déspotas cruéis, acolhem com desdém,
A hidra imensa — a Ideia — a farejar nos mundos
Ainda a garra adunca afia contra alguém!



OS NOVOS LEVIATÃS

Dos antigos Titãs, o mar — fera indomável,
Agora verga o dorso ao peso colossal
Dos novos leviatãs que em bando formidável,
Nas grandes explosões da cólera insondável,
Já levam de vencida o abismo e o vendaval!

Eles seguem no mar, altivos no seu rumo,
Em hálitos de fogo, à nossa voz fiéis,
E como o combatente erguendo a lança a prumo,
Em turbilhões rompendo, as flâmulas de fumo
Ostentam sem cessar correndo entre os parcéis!

Que sopro criador, que força onipotente
Os fez surgir do nada, os monstros colossais?
Os novos leviatãs provindes tão-somente
Do fecundo himeneu, deste conúbio ardente
Do Gênio e do Trabalho, amantes imortais!

Correis de mar em mar, altivos, triunfantes,
Levando a toda a parte a vida, a nova luz,
E as sereias gentis não fazem como dantes,
Ao som da sua voz, perder os navegantes;
O dorso dos delfins, no mar, já não reluz!

Ó alma antiga dorme inerte no regaço
Dos velhos deuses vãos, que o homem criador
Agora ri de ti, prostrada de cansaço,
Enquanto vai soprando em mil gigantes de aço
Outra alma inda mais larga — o novo Deus-Vapor!



SUA ALTEZA REAL

Sua alteza real o pequenino infante
Matou, dum tiro só, dois gamos na carreira:
Um hino mais ao céu, pois era a vez primeira
Que sua alteza vinha à diversão galante!

O vergôntea gentil! Quando um tropel distante
De súbito acordar os ecos da clareira
E uma presa cansada, em rolos de poeira,
Varada, a nossos pés, cair agonizante,

Acercai-vos então da pobre fera exangue
Que estrebucha de dor num mar de lama e sangue
Sem que um grito de dó nos corações acorde!

No entanto não fiqueis na doce glória absorto:
O velho javali parece às vezes morto
Mas surge da agonia e os seus algozes morde!


VERSOS A*

Eu sou, mulher suave, aquele antigo louco,
O triste sonhador que o teu olhar cantou,
E que hoje vai sentindo, o sonho, a pouco e pouco,
Fugir como o luar dum astro que expirou!

Que morra, porque, enfim, bem longo ele tem sido
E tempo é já, talvez, da morte desposar
O sonho que em minha alma entrou como um bandido
E só da vida sai depois de me roubar!

Eu devera amarrá-lo à braga do forçado,
Como a Justiça faz aos desprezíveis réus,
E lançá-lo depois à vala do passado
Aonde o fulminasse a cólera dos céus.

Mas não; quero embalar-lhe os últimos momentos
Ao som duma canção das quadras juvenis,
E amortalhar depois — em doces pensamentos —
No manto da saudade, os seus restos gentis.

E quando ele seguir às regiões saudosas,
Aonde todos nós iremos repousar,
Ao esquife hei de atirar-lhe as derradeiras rosas
Que dentro da minha alma houver por desfolhar!

Ninguém profanará seus restos adorados,
Que em paz irão dormir num fundo mausoléu;
E quando alguma vez já hirtos, regelados,
Acordem, porventura, à luz que vem do céu;

Em vão tu baterás, ó sonho, à fria porta
Que em breve hás de sentir fechada sobre ti,
Porque a tua Memória, enfim, já estará morta,
E não te escutarei... Porque também morri!



Ó POBRES VERSOS MEUS

Ó pobres versos meus, lançai-vos pela estrada
Agreste e pedregosa, aonde os companheiros
Da luta, encontrareis, meus ínfimos guerreiros,
Formando os batalhões da bélica avançada!

E o trajo em desalinho, a face iluminada,
Transponde, sem demora, os fossos derradeiros
Que separam de nós os braços justiceiros
Da serena Verdade, a deusa idolatrada.

Vencidos no combate, ou pouco ou nada importa,
Ao chão vergai sem pena a face semimorta,
Mordendo, inda a lutar, o pó da enorme liça:

E tudo, enfim, esquecendo: os ódios e os desprezos;
Que de entre vós alguns, ao menos, fiquem presos
Como fios de luz, ao manto da Justiça!

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