1/07/2020

Poemas de Almeida Garrett


MOCIDADE E MORTE

Solevantado o corpo, os olhos fitos,
As magras mãos cruzadas sobre o peito,
Vede-o, tão moço, velador de angústias,
Pela alta noite em solitário leito.

Por essas faces pálidas, cavadas,
Olhai, em fio as lágrimas deslizam;
E com o pulso, que apressado bate,
Do coração os estos harmonizam.

É que nas veias lhe circula a febre;
É que a fronte lhe alaga o suor frio;
É que lá dentro à dor, que o vai roendo,
Responde horrível íntimo cicio.

Encostando na mão o rosto aceso,
Fitou os olhos úmidos de pranto
Na lâmpada mortal ali pendente,
E lá consigo modulou um canto.

É um hino de amor e de esperança?
É oração de angústia e de saudade?
Resignado na dor, saúda a morte,
Ou vibra aos céus blasfêmia d'impiedade?

É isso tudo, tumultuando incerto
No delírio febril daquela mente,
Que, balouçada à borda do sepulcro,
Volve após si a vista longamente.

É a poesia a murmurar-lhe na alma
Última nota de quebrada lira;
É o gemido do tombar do cedro;
É triste adeus do trovador que expira.



DESESPERANÇA

Meia-noite bateu, volvendo ao nada
Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, ó campa misteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei contigo!

Qual tufão, que ao passar agita o pego,
Meu plácido existir turvou a sorte:
Hálito impuro de pulmões ralados
Me diz que neles se assentou a morte:

Enquanto mil e mil no largo mundo
Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso,
E julgo ouvir as preces por finados,
E ver a tumba e o fumegar do incenso.

Se dormito um momento, acordo em sustos;
Pulos me dá o coração no peito,
E abraço e beijo de uma vida extinta
O último sócio, o doloroso leito.

De um abismo insondado às agras bordas
Insanável doença me há guiado,
E disse-me: “No fundo o esquecimento:
Desce; mas desce com andar pausado.”

E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:
Busco parar; parar um só instante!
Mas a cruel, travando-me da destra,
Me faz cair mais fundo, e grita: “Avante!”

Por que escutar o trânsito das horas?
Alguma delas trar-me-á conforto?
Não! Esses golpes, que no bronze ferem,
São para mim como dobrar por morto.

“Morto! morto!” me clama a consciência:
Diz-mo este respirar rouco e profundo.
Ai! por que fremes, coração de fogo,
Dentro de um seio corrompido e imundo?

Beber um ar diáfano e suave,
Que renovou da tarde o brando vento,
E convertê-lo, no aspirar contínuo,
Em bafo apodrecido e peçonhento!

Estender para o amigo a mão mirrada,
E ele negar a mão ao pobre amigo;
Querer uni-lo ao seio descamado,
E ele fugir, temendo o seu perigo!

E ver após um dia ainda cem dias,
Nus d'esperança, férteis de amargura;
Socorrer-me ao porvir, e achá-lo um ermo,
E só, bem lá no extremo, a sepultura!

Agora!... quando a vida me sorria:
Agora!... que meu estro se acendera;
Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,
Como se enlaça pelo choupo a hera,

Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;
Varrer-me o nome escuro esquecimento:
Não ter um eco de louvor, que afague
Do desgraçado o humilde monumento!

Ó tu, sede de um nome glorioso,
Que tão fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste, e só me resta a pobre herança
De ver a luz do sol mais alguns dias.

Vestem-se os campos do verdor primeiro:
Já das aves canções no bosque ecoam:
Não para mim, que só escuto atento
Funéreos dobres que no templo soam!

Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo,
Irei tão cedo repousar na terra?!
Oh, meu Deus, oh, meu Deus! um ano ao menos;
Um louro só... e meu sepulcro cerra!

É tão bom respirar, e a luz brilhante
Do sol oriental saudar no outeiro!
Ai, na manhã saudá-la posso ainda;
Mas será este inverno o derradeiro!

Quando de pomos o vergel for cheio;
Quando ondear o trigo na planura;
Quando pender com áureo fruto a vide
Eu também penderei na sepultura.

Dos que me cercam no turbado aspecto,
Na voz que prende desusado enleio,
No pranto a furto, no fingido riso
Fatal sentença de morrer eu leio.

Vistes vós criminoso, que hão lançado
Seus juízes nos trances da agonia,
Em oratório estreito, onde não entra
Suavíssima luz do claro dia;

Diante a cruz, ao lado o sacerdote,
O cadafalso, o crime, o algoz na mente,
O povo tumultuando, o extremo arranco,
E céu, e inferno, e as maldições da gente?

Se adormece, lá surge um pesadelo,
Com os martírios da sua alma acorde;
Desperta logo, e à terra se arremessa,
E os punhos cerra, e delirante os morde.

Sobre as lájeas do duro pavimento
De vergões e de sangue o rosto cobre.
Ergue-se e escuta com cabelos hirtos
Do sino ao longe o compassado dobre.

Sem esperança!...
Não! Do cadafalso
Sobe as escadas o perdão as vezes;
Porém a mim... não me dirão: “És salvo!”
E o meu suplício durara por meses.

Dizer posso: “Existi: que a dor conheço!”
Do gozo a taca só provei por horas:
E serei teu, calado cemitério,
Que engenho, glória, amor, tudo devoras.

Se o furacão rugiu, e o débil tronco
De árvore tenra espedaçou passando,
Quem se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal é o meu destino miserando!

Númen de santo amor, mulher querida,
Anjo do céu, encanto da existência,
Ora por mim a Deus, que há de escutar-te.
Por ti me salve a mão da Providência.

Vem: aperta-me a destra... Oh, foge, foge!
Um beijo ardente aos lábios teus voara:
E neste beijo venenoso a morte
Talvez este infeliz só te entregara!

Se eu pudesse viver... como teus dias
Cercaria de amor suave e puro!
Como te fora plácido o presente;
Quanto risonho o aspecto do futuro!

Porém, medonho espectro ante meus olhos,
Como sombra infernal perpétuo ondeia,
Bradando-me que vai partir-se o fio
Com que da minha vida se urde a teia.

Entregue à sedução enquanto eu durmo,
No turbilhão do mundo hei de deixar-te!
Quem velará por ti, pomba inocente?
Quem do perjúrio poderá salvar-te?

Quando eu cerrar os olhos moribundos
Tu verterás por mim pranto saudoso;
Mas quem me diz que não virá o riso
Banhar teu rosto triste e lacrimoso?

Ai, o extinto só herda o esquecimento!
Um novo amor te agitará o peito:
E a dura lájea cobrirá meus ossos
Frios, despidos sobre térreo leito!...

Ó Deus, por que este cálix de agonia
Até as bordas de amargor me encheste?
Se eu devia acabar na juventude,
Por que ao mundo e a seus sonhos me prendeste?

Virgem do meu amor, por que perdê-la?
Por que entre nós a campa há de assentar-se?
Tua suprema paz com gozo ou dores
Do mortal, que em ti crê, pode turbar-se?

Não haver quem me salve! e vir um dia
Em que de minha o nome ainda lhe desse!
Então, Senhor, o umbral da eternidade,
Talvez sem um queixume, transpusesse.

Mas, qual flor em botão pendida e murcha,
Sem de fragrâncias perfumar a brisa,
Eu poeta, eu amante, it esconder-me
Sob uma lousa desprezada e lisa!

Por quê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?
Em te adorar que fui, senão insano?...
O teu fatal poder hoje maldigo!
O que te chama pai, mente: és tirano.

E se aos pés de teu trono os ais não chegam;
Se os gemidos da terra os ares somem;
Se a Providência a crença vã, mentida,
Por que geraste a inteligência do homem?

Por que da virgem no sorrir puseste
Santo presságio de suprema dita,
E apontaste ao poeta a imensidade
Na ânsia de glória que em sua alma habita?

A imensidade!... E que me importa herdá-la,
Se na terra passei sem ser sentido?
Que vale eterno vaguear no espaço,
Se nosso nome se afundou no olvido?


O ANJO-DA-GUARDA

Ímpio, silêncio! A tua voz blasfema
Da noite a paz perturba.
Verme, que te rebelas
Sob a mão do Senhor,
Vês os milhões d'estrelas
De nítido fulgor,
Que, em ordenada turba,
A Deus entoam incessantes hinos?
Quantas vezes apaga
Do livro da existência
Um orbe a mão do Eterno!
E o belo astro que expira
Maldiz a Providência,
Maldiz a mão que o esmaga?
Acaso para o cântico superno?
Ou apenas suspira
O moribundo,
Que se chamava um mundo?
Quem vai pôr uma campa sobre os restos
Desse inerte planeta,
Que o destrutor cometa
Incinerou na rápida passagem?
E tu, átomo obscuro,
Que varre à tarde a aragem,
Soltas do seio impuro
Maldição insensata,
Por que o teu Deus te evoca à eternidade?
Que é o viver? O umbral, a que um momento
E espírito, surgindo
Das solidões do nada
À voz do Criador, se encosta, e atento
Contempla a luz e o céu; donde desata
Seu voo à imensidade.
Geme acaso o passarinho
De saudade,
Quando as asas expande, e deixa o ninho
A vez primeira, a mergulhar nos ares?
Volve olhos lacrimosos aos mares tormentosos
O navegante, quando aproa às plagas
Da pátria suspirada?
Por que morres?! Pergunta à Providência
Por que te fez nascer.
Qual era o teu direito a ver o mundo
Teu jus à existência?
Olha no outono o ulmeiro
Que o vendaval agita,
E cujas tênues folhas
Aos centos precipita.
São a folha do ulmeiro o nome e a fama,
E o amar dos humanos:
Ao nada do que foi assim se atiram
No vórtice dos anos.
Que é a glória na terra? Um eco frouxo,
Que somem mil ruídos.
E a voz da terra o que é, na voz imensa
Dos orbes reunidos?
Amor! amor terreno!... Ai, se pudesses
Compreender a amargura,
Com que te choro, ó alma transviada!
Eu, que te amei do berço, e qual doçura
Há no afeto que liga o anjo ao homem,
Rindo despiras esse corpo enfermo,
Para te unir a mim, para aspirares
O gozo celestial de amor sem termo!
Alma triste, que mesquinha
Te debruças sobre o inferno,
Ouve o anjo, pobrezinha;
Vem ao gozo sempiterno.
Resigna-te e espera, e os dias de prova
Serão para o crente quais breves instantes.
Tomar-te-ei nos braços no trance da morte,
Fendendo o infinito com as asas radiantes.
Depois, das alturas teu térreo vestido
Sorrindo veremos na terra guardar
E ao hino de Hosana nos coros celestes
A voz de um remido iremos juntar.



A GRAÇA

Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Por que da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Por que no coração

Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim! és tu, que na infantil idade,
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: “Acorda, inocentinho,
Faze o sinal da cruz.”
És tu, que eu via em sonhos,
nesses anos de inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Com as roupas a alvejar.
És tu, és tu! que ao pôr do sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos céus, do mar dormente.
És tu, és tu! que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinto a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos céus!...



RESIGNAÇÃO

No teu seio, reclinado
Dormirei, Senhor, um dia,
Quando for na terra fria
Meu repouso procurar;

Quando a lousa do sepulcro
Sobre mim tiver caído,
E este espírito afligido
Vir a tua luz brilhar!

No teu seio, de pesares
O existir não se entretece;
Lá eterno o amor floresce;
Lá floresce eterna paz:

Lá bramir junto ao poeta
Não irão paixões e dores,
Vãos desejos, vãos temores
Do desterro em que ele jaz.

Hora extrema, eu te saúdo!
Salve, ó trevas da jazida,
Donde espera erguer-se à vida
Meu espírito imortal!

Anjo bom, não me abandones
Neste trance dilatado;
Que contrito, resignado,
Me acharas na hora fatal.

E depois... perdoa, ó anjo,
Ao amor do moribundo,
Que só deixa neste mundo
Pouco pó, muito gemer.

Oh... depois... dize à mesquinha
Um segredo de doçura:
Que na pátria o amor se apura,
Que o desterro viu nascer.

Que é o céu a pátria nossa;
Que é o mundo exílio breve;
Que o morrer a causa leve;
Que é princípio, não é fim:

Que duas almas que se amaram
Vão lá ter nova existência,
Confundidas numa essência,
A de um novo querubim.



DEUS

Nas horas do silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,
E os abismos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus cantos soem,
E a lua resplendente
Pare em seu giro, ao ressoar nesta larpa
O hino do Onipotente.

Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência envolto,
E fora dele o nada:

No seio do Criador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
De Jeová, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos solta o Senhor:
Surge o sol, banha a terra, e desabrocha
Nesta a primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida a forca
A natureza anseia!

Quem, dignamente, ó Deus, há de louvar-Te,
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da criação; quando os tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos vales
As águas encerraste?!

E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com destra poderosa,
Fez, por lei imutável, se librassem
Na mole ponderosa?
Onde existia então? No tipo imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na terra e nas alturas!

Oh, quanto é grande o rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a viração!
Por Sua providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo inseto;
Nem volveu o elefante, em campo estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao certo a amena selva,
Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e luz?
Acaso em vão algum desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus crimes,
Do crime a punição.

Homem, ente imortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junta do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as neves alpinas:
Quem irá derribar o rei dos bosques
Do trono das colinas?
Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raízes
Aos aves lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
Aboca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado;
Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa,
Assim ele passou!

Teu nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos hinos
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas te pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar com férreo cetro
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da terra
Ir colocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem terror, à sombra posto
Da pua providência.


A TEMPESTADE

Sibila o vento: os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo,
Em seu terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A tempestade solta.
Do sol no ocaso um raio derradeiro,
Que, apenas fulge, morre,
Escapa à nuvem, que, apressada e espessa,
Para apagá-lo corre.
Tal nos afaga em sonhos a esperança,
Ao despontar do dia,
Mas, no acordar, lá vem a consciência
Dizer que ela mentia!
As ondas negro-azuis se conglobaram;
Serras tornadas são,
Contra as quais outras serras, que se arqueiam,
Bater, partir-se vão.

Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume,
Da natureza acoite!
Tu guias os bulcões, do mar princesa,
E é teu vestido a noite!
Quando pelos pinhais, entre o granizo,
Ao sussurrar das ramas,
Vibrando sustos, pavorosa ruges
E assolação derramas,
Quem porfiar contigo, então, ousara
De glória e poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?

Quem me dera ser tu, por balouçar-me
Das nuvens nos castelos,
E ver dos ferros meus, enfim, quebrados
Os rebatidos elos.
Eu rodeara, então, o globo inteiro;
Eu sublevara as águas;
Eu dos vulcões com raios acendera
Amortecidas fráguas;
Do robusto carvalho e sobro antigo
Acurvaria as frontes;
Com furacões, os areais da Líbia
Converteria em montes;
Pelo fulgor da lua, lá do Norte
No Polo me assentara
E vira prolongar-se o gelo eterno,
Que o tempo amontoara.
Ali, eu solitário, eu rei da morte,
Erguera meu clamor,
E dissera: “Sou livre, e tenho império;
Aqui, sou eu senhor!”

Quem se pudera erguer, como estas vagas
Em turbilhões incertos,
E correr, e correr, troando ao longe,
Nos líquidos desertos!
Mas entre membros de lodoso barro
A mente presa esta!...
Ergue-se em vão aos céus: precipitada,
Rápido, em baixo dá.

Ó morte, amiga morte! é sobre as vagas,
Entre escarcéus erguidos,
Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
Meus dias aborridos:
Quebra duras prisões, que a natureza
Lançou a esta alma ardente;
Que ela possa voar, por entre os orbes,
Aos pés do Onipotente.
Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
Desça, e estourando a esmague,
E a grossa proa, dos tufões ludíbrio,
Solta, sem rumo vague!

Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam
O sono do existir;
Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças
Nas trevas do porvir.
Doce mãe do repouso, extremo abrigo
De um coração opresso,
Que ao ligeiro prazer, à dor cansada
Negas no seio acesso,
Não despertes, oh, não! os que abominam
Teu amoroso aspeito;
Febricitantes, que se abraçam, loucos,
Com seu dorido leito!
Tu, que ao mísero ris com rir tão meigo,
Caluniada morte;
Tu, que entre os bravos teus lhe dás asilo
Contra o furor da sorte;
Tu, que esperas às portas dos senhores,
Do servo ao limiar,
E eterna corres, peregrina, a terra
E as solidões do mar,
Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
Já filhos teus nasceram:
Um dia acordarão desses delírios,
Que tão gratos lhes eram.
E eu que velo na vida, e já não sonho
Nem glória, nem ventura;
Eu, que esgotei tão cedo, até as fezes,
O cálix da amargura:
Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
De quanto há vil no mundo,
Santas inspirações morrer sentindo
Do coração no fundo,
Sem achar no desterro uma harmonia
De alma, que a minha entenda,
Por que seguir, curvado ante a desgraça,
Esta espinhosa senda?

Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa
Fragor da tempestade,
Salmo de mortos, que retumba ao longe,
Grito da eternidade!...

Pensamento infernal! Fugir covarde
Ante o destino iroso?
Lançar-me, envolto em maldições celestes,
No abismo tormentoso?
Nunca! Deus pôs-me aqui para apurar-me
Nas lágrimas da terra;
Guardarei minha estância atribulada,
Com meu desejo em guerra.
O fiel guardador terá seu prêmio,
O seu repouso, enfim,
E atalaiar o sol de um dia extremo
Virá outro após mim.
Herdarei o morrer! Como é suave
Bênção de pai querido.
Será o despertar, ver meu cadáver,
Ver o grilhão partido.

Um consolo, entretanto, resta ainda
Ao pobre velador:
Deus lhe deixou, nas trevas da existência,
Doce amizade e amor.
Tudo o mais é sepulcro branqueado
Por embusteira mão;
Tudo o mais vãos prazeres que só trazem
Remorso ao coração.
Passarei minha noite a luz tão meiga,
Até o amanhecer;
Até que suba à pátria do repouso,
Onde não há morrer.



O SOLDADO

I
Veia tranquila e pura
Do meu paterno rio,
Dos campos, que ele rega,
Mansíssimo armentio.

Rocio matutino,
Prados tão deleitosos,
Vales, que assombravam selvas
De sinceirais frondosos,

Terra da minha infância,
Teto de meus maiores,
Meu breve jardinzinho,
Minhas pendidas flores,

Harmonioso e santo
Sino do presbitério,
Cruzeiro venerando
Do humilde cemitério.

Onde os avós dormiram,
E dormirão os pais;
Onde eu talvez não durma,
Nem reze, talvez, mais,

Eu vos saúdo! e o longo
Suspiro amargurado
Vos mando. É quanto pode
Mandar pobre soldado.

Sobre as cavadas ondas
Dos mares procelosos,
Por vós já fiz soar
Meus cantos dolorosos.

Na proa ressonante
Eu me assentava mudo,
E aspirava ansioso
O vento frio e agudo;

Porque em meu sangue ardia
A febre da saudade,
Febre que só minora
Sopro de tempestade;

Mas que se irrita, e dura
Quando é tranquilo o mar;
Quando da pátria o céu
Céu puro vem lembrar;

Quando, no extremo ocaso,
A nuvem vaporosa,
À frouxa luz da tarde
Na cor imita a rosa;

Quando, do sol vermelho
O disco ardente cresce,
E paira sobre as águas,
E enfim desaparece;

Quando no mar se estende
Manto de negro dó;
Quando, ao quebrar do vento,
Noite e silêncio é só;

Quando sussurram meigas
Ondas que a nau separa,
E a rápida ardentia
Em torno a sombra aclara.

II
Eu já ouvi, de noite,
Entre o pinhal fechado,
Um frêmito soturno
Passando o vento irado:

Assim o murmúrio
Do mar, fervendo à proa,
Com o gemer do aflito,
Sumido, acorde soa;

E o cintilar das águas
Gera amargura e dor,
Qual lâmpada, que pende
No templo do Senhor,

Lá pela madrugada,
Se o óleo lhe escasseia,
E a espaços expirando,
Afrouxa e bruxuleia.

III
Bem abundante messe
De pranto e de saudade
O foragido errante
Colhe na soledade!

Para o que a pátria perde
É o universo mu do;
Nada lhe ri na vida;
Mora o fastio em tudo;

No meio das procelas,
Na calma do oceano,
No sopro do galerno,
Que enfuna o largo pano.

E no entestar com a terra
Por abrigado esteiro,
E no pousar à sombra
Do teto do estrangeiro.

IV
E essas memórias tristes
Minha alma laceraram,
E a senda da existência
Bem agra me tornaram:

Porém nem sempre férreo
Foi meu destino escuro;
Sulcou de luz um raio
As trevas do futuro.

Do meu país querido
A praia ainda beijei,
E o velho e amigo cedro
No vale ainda abracei!

Nesta alma regelada
Surgiu ainda o gozo,
E um sonho lhe sorriu
Fugaz, mas amoroso.

Oh, foi sonho da infância
Desse momento o sonho!
Paz e esperança vinham
Ao coração tristonho.

Mas o sonhar que monta,
Se passa, e não conforta?
Minh'alma deu em terra,
Como se fosse morta.

Foi a esperança nuvem,
Que o vento some à tarde:
Facho de guerra aceso
Em labaredas arde!

Do fratricídio a luva
Irmão a irmão lançara,
E o grito: ai do vencido!
Nos montes retumbara.

As armas se hão cruzado:
O pó mordeu o forte;
Caiu: dorme tranquilo:
Deu-lhe repouso a morte.

Ao menos, nestes campos
Sepulcro conquistou,
E o adro dos estranhos
Seus ossos não guardou.

Ele herdará, ao menos,
Aos seus honrado nome;
Paga de curta vida
Ser-lhe-á largo renome.

V
E a bala sibilando,
E o trom da artilharia,
E a tuba clamorosa,
Que os peitos acendia,

E as ameaças torvas,
E os gritos de furor,
E desses que expiravam
Som cavo de estertor,

E as pragas do vencido,
Do vencedor o insulto,
E a palidez do morto,
Nu, sanguento, insepulto,

Eram um caos de dores
Em convulsão horrível,
Sonho de acesa febre,
Cena tremenda e incrível!

E suspirei: nos olhos
Me borbulhava o pranto,
E a dor, que trasbordava
Pediu-me infernal canto.

Oh, sim! maldisse o instante,
Em que buscar viera,
Por entre as tempestades,
A terra em que nascera.

Que é, em fraternas lides
Um canto de vitória?
É delirar maldito;
É triunfar sem glória.

Maldito era o triunfo,
Que rodeava o horror,
Que me tingia tudo
De sanguinosa cor!

Então olhei saudoso
Para o sonoro mar;
Da nau do vagabundo
Meigo me riu o arfar.

De desespero um brado
Soltou, ímpio, o poeta,
Perdão! Chegara o mísero
Da desventura à meta.

VI
Terra infame! —de servos aprisco,
Mais chamar-me teu filho não sei;
Desterrado, mendigo serei;
De outra terra meus ossos serão!

Mas a escravo, que pugna por ferros,
Que herdará desonrada memória,
Renegando da terra sem glória,
Nunca mais darei nome de irmão!

Onde é livre tem pátria o poeta,
Que ao exílio condena ímpia sorte.
Sobre os plainos gelados do norte
Luz do sol também desce do céu;

Também lá se erguem montes, e o prado
De boninas, em maio, se veste;
Também lá se meneia o cipreste
Sobre o corpo que à terra desceu.

Que me importa o loureiro da encosta?
Que me importa da fonte o ruído?
Que me importa o saudoso gemido
Da rolinha sedenta de amor?

Que me importam outeiros cobertos
Da verdura da vinha, no estio?
Que me importa o remanso do rio,
E, na calma, da selva o frescor?

Que me importa o perfume dos campos,
Quando passa da tarde a bafagem,
Que se embebe, na sua passagem,
Na fragrância da rosa e aleli?

Que me importa? Pergunta insensata!
É meu berço: a minha alma esta lá...
Que me importa... Esta boca o dirá?!
Minha pátria, estou louco... menti!

Eia, servos! O ferro se cruze,
Assobie o pelouro nos ares;
Estes campos convertam-se em mares,
Onde o sangue se possa beber!

Larga a vala! que, após a peleja,
Todos nos dormiremos unidos!
Lá, vingados, e do ódio esquecidos,
Paz faremos... depois do morrer!

VII
Assim, entre amarguras,
Me delirava a mente;
E o sol ia fugindo
No termo do Ocidente.

E os fortes lá jaziam
Com a face ao céu voltada;
Sorria a noite aos mortos,
Passando sossegada.

Porém, a noite deles
Não era a que passava!
Na eternidade a sua
Corria, e não findava.

Contrários ainda há pouco,
Irmãos, enfim, lá eram!
O seu tesouro de ódio,
Mordendo o pó, cederam.

No limiar da morte
Assim tudo fenece:
Inimizades calam,
E até o amor esquece!

Meus dias rodeados
Foram de amor outrora;
E nem um vão suspiro
Terei, morrendo, agora,

Nem o apertar da destra
Ao desprender da vida,
Nem lágrima fraterna
Sobre a feral jazida!

Meu derradeiro alento
Não colherão os meus.
Por minha alma aterrada
Quem pedirá a Deus?

Ninguém! Aos pés o servo
Meus restos calcará,
E o riso ímpio, odiento,
Mofando soltará.

O sino lutuoso
Não lembrará meu fim:
Preces, que o morto afagam,
Não se erguerão por mim!

O filho dos desertos,
O lobo carniceiro,
Há de escutar alegre
Meu grito derradeiro!

Ó morte, o sono teu
Só é sono mais largo;
Porém, na juventude,
É o dormi-lo amargo;

Quando na vida nasce
Essa mimosa flor,
Como a cecém suave,
Delicioso amor;

Quando a mente acendida
Crê na ventura e glória;
Quando o presente é tudo.
E inda nada a memória!

Deixar a cara vida,
Então a doloroso,
E o moribundo à terra
Lança um olhar saudoso.

A taça da existência
No fundo fezes tem;
Mas os primeiros tragos
Doces, bem doces, vem.

E eu morrerei agora
Sem abraçar os meus,
Sem jubiloso um hino
Alevantar aos céus?

Morrer, morrer, que importa?
Final suspiro, ouvi-lo
Há de a pátria. Na terra
Irei dormir tranquilo.

Dormir? Só dorme o frio
Cadáver, que não sente;
A alma voa a abrigar-se
Aos pés do Onipotente.

Reclinar-me-ei à sombra
Do amplo perdão do Eterno;
Que não conheço o crime,
E erros não pune o inferno.

E vós, entes queridos,
Entes que tanto amei,
Dando-vos liberdade
Contente acabarei.

Por mim livres chorar
Vós podereis um dia,
E às cinzas do soldado
Erguer memória pia.

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