MOCIDADE E MORTE
Solevantado
o corpo, os olhos fitos,
As
magras mãos cruzadas sobre o peito,
Vede-o,
tão moço, velador de angústias,
Pela
alta noite em solitário leito.
Por
essas faces pálidas, cavadas,
Olhai,
em fio as lágrimas deslizam;
E
com o pulso, que apressado bate,
Do
coração os estos harmonizam.
É
que nas veias lhe circula a febre;
É
que a fronte lhe alaga o suor frio;
É
que lá dentro à dor, que o vai roendo,
Responde
horrível íntimo cicio.
Encostando
na mão o rosto aceso,
Fitou
os olhos úmidos de pranto
Na
lâmpada mortal ali pendente,
E
lá consigo modulou um canto.
É
um hino de amor e de esperança?
É
oração de angústia e de saudade?
Resignado
na dor, saúda a morte,
Ou
vibra aos céus blasfêmia d'impiedade?
É
isso tudo, tumultuando incerto
No
delírio febril daquela mente,
Que,
balouçada à borda do sepulcro,
Volve
após si a vista longamente.
É
a poesia a murmurar-lhe na alma
Última
nota de quebrada lira;
É
o gemido do tombar do cedro;
É
triste adeus do trovador que expira.
DESESPERANÇA
Meia-noite
bateu, volvendo ao nada
Um
dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te
bem, ó campa misteriosa...
Eu
vou, eu vou! Breve serei contigo!
Qual
tufão, que ao passar agita o pego,
Meu
plácido existir turvou a sorte:
Hálito
impuro de pulmões ralados
Me
diz que neles se assentou a morte:
Enquanto
mil e mil no largo mundo
Dormem
em paz sorrindo, eu velo e penso,
E
julgo ouvir as preces por finados,
E
ver a tumba e o fumegar do incenso.
Se
dormito um momento, acordo em sustos;
Pulos
me dá o coração no peito,
E
abraço e beijo de uma vida extinta
O
último sócio, o doloroso leito.
De
um abismo insondado às agras bordas
Insanável
doença me há guiado,
E
disse-me: “No fundo o esquecimento:
Desce;
mas desce com andar pausado.”
E
eu lento vou descendo, e sondo as trevas:
Busco
parar; parar um só instante!
Mas
a cruel, travando-me da destra,
Me
faz cair mais fundo, e grita: “Avante!”
Por
que escutar o trânsito das horas?
Alguma
delas trar-me-á conforto?
Não!
Esses golpes, que no bronze ferem,
São
para mim como dobrar por morto.
“Morto!
morto!” me clama a consciência:
Diz-mo
este respirar rouco e profundo.
Ai!
por que fremes, coração de fogo,
Dentro
de um seio corrompido e imundo?
Beber
um ar diáfano e suave,
Que
renovou da tarde o brando vento,
E
convertê-lo, no aspirar contínuo,
Em
bafo apodrecido e peçonhento!
Estender
para o amigo a mão mirrada,
E
ele negar a mão ao pobre amigo;
Querer
uni-lo ao seio descamado,
E
ele fugir, temendo o seu perigo!
E
ver após um dia ainda cem dias,
Nus
d'esperança, férteis de amargura;
Socorrer-me
ao porvir, e achá-lo um ermo,
E
só, bem lá no extremo, a sepultura!
Agora!...
quando a vida me sorria:
Agora!...
que meu estro se acendera;
Que
eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,
Como
se enlaça pelo choupo a hera,
Deixar
tudo, e partir, sozinho e mudo;
Varrer-me
o nome escuro esquecimento:
Não
ter um eco de louvor, que afague
Do
desgraçado o humilde monumento!
Ó
tu, sede de um nome glorioso,
Que
tão fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste,
e só me resta a pobre herança
De
ver a luz do sol mais alguns dias.
Vestem-se
os campos do verdor primeiro:
Já
das aves canções no bosque ecoam:
Não
para mim, que só escuto atento
Funéreos
dobres que no templo soam!
Eu
que existo, e que penso, e falo, e vivo,
Irei
tão cedo repousar na terra?!
Oh,
meu Deus, oh, meu Deus! um ano ao menos;
Um
louro só... e meu sepulcro cerra!
É
tão bom respirar, e a luz brilhante
Do
sol oriental saudar no outeiro!
Ai,
na manhã saudá-la posso ainda;
Mas
será este inverno o derradeiro!
Quando
de pomos o vergel for cheio;
Quando
ondear o trigo na planura;
Quando
pender com áureo fruto a vide
Eu
também penderei na sepultura.
Dos
que me cercam no turbado aspecto,
Na
voz que prende desusado enleio,
No
pranto a furto, no fingido riso
Fatal
sentença de morrer eu leio.
Vistes
vós criminoso, que hão lançado
Seus
juízes nos trances da agonia,
Em
oratório estreito, onde não entra
Suavíssima
luz do claro dia;
Diante
a cruz, ao lado o sacerdote,
O
cadafalso, o crime, o algoz na mente,
O
povo tumultuando, o extremo arranco,
E
céu, e inferno, e as maldições da gente?
Se
adormece, lá surge um pesadelo,
Com
os martírios da sua alma acorde;
Desperta
logo, e à terra se arremessa,
E
os punhos cerra, e delirante os morde.
Sobre
as lájeas do duro pavimento
De
vergões e de sangue o rosto cobre.
Ergue-se
e escuta com cabelos hirtos
Do
sino ao longe o compassado dobre.
Sem
esperança!...
Não!
Do cadafalso
Sobe
as escadas o perdão as vezes;
Porém
a mim... não me dirão: “És salvo!”
E
o meu suplício durara por meses.
Dizer
posso: “Existi: que a dor conheço!”
Do
gozo a taca só provei por horas:
E
serei teu, calado cemitério,
Que
engenho, glória, amor, tudo devoras.
Se
o furacão rugiu, e o débil tronco
De
árvore tenra espedaçou passando,
Quem
se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal
é o meu destino miserando!
Númen
de santo amor, mulher querida,
Anjo
do céu, encanto da existência,
Ora
por mim a Deus, que há de escutar-te.
Por
ti me salve a mão da Providência.
Vem:
aperta-me a destra... Oh, foge, foge!
Um
beijo ardente aos lábios teus voara:
E
neste beijo venenoso a morte
Talvez
este infeliz só te entregara!
Se
eu pudesse viver... como teus dias
Cercaria
de amor suave e puro!
Como
te fora plácido o presente;
Quanto
risonho o aspecto do futuro!
Porém,
medonho espectro ante meus olhos,
Como
sombra infernal perpétuo ondeia,
Bradando-me
que vai partir-se o fio
Com
que da minha vida se urde a teia.
Entregue
à sedução enquanto eu durmo,
No
turbilhão do mundo hei de deixar-te!
Quem
velará por ti, pomba inocente?
Quem
do perjúrio poderá salvar-te?
Quando
eu cerrar os olhos moribundos
Tu
verterás por mim pranto saudoso;
Mas
quem me diz que não virá o riso
Banhar
teu rosto triste e lacrimoso?
Ai,
o extinto só herda o esquecimento!
Um
novo amor te agitará o peito:
E
a dura lájea cobrirá meus ossos
Frios,
despidos sobre térreo leito!...
Ó
Deus, por que este cálix de agonia
Até
as bordas de amargor me encheste?
Se
eu devia acabar na juventude,
Por
que ao mundo e a seus sonhos me prendeste?
Virgem
do meu amor, por que perdê-la?
Por
que entre nós a campa há de assentar-se?
Tua
suprema paz com gozo ou dores
Do
mortal, que em ti crê, pode turbar-se?
Não
haver quem me salve! e vir um dia
Em
que de minha o nome ainda lhe desse!
Então,
Senhor, o umbral da eternidade,
Talvez
sem um queixume, transpusesse.
Mas,
qual flor em botão pendida e murcha,
Sem
de fragrâncias perfumar a brisa,
Eu
poeta, eu amante, it esconder-me
Sob
uma lousa desprezada e lisa!
Por
quê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?
Em
te adorar que fui, senão insano?...
O
teu fatal poder hoje maldigo!
O
que te chama pai, mente: és tirano.
E
se aos pés de teu trono os ais não chegam;
Se
os gemidos da terra os ares somem;
Se
a Providência a crença vã, mentida,
Por
que geraste a inteligência do homem?
Por
que da virgem no sorrir puseste
Santo
presságio de suprema dita,
E
apontaste ao poeta a imensidade
Na
ânsia de glória que em sua alma habita?
A
imensidade!... E que me importa herdá-la,
Se
na terra passei sem ser sentido?
Que
vale eterno vaguear no espaço,
Se
nosso nome se afundou no olvido?
O ANJO-DA-GUARDA
Ímpio,
silêncio! A tua voz blasfema
Da
noite a paz perturba.
Verme,
que te rebelas
Sob
a mão do Senhor,
Vês
os milhões d'estrelas
De
nítido fulgor,
Que,
em ordenada turba,
A
Deus entoam incessantes hinos?
Quantas
vezes apaga
Do
livro da existência
Um
orbe a mão do Eterno!
E
o belo astro que expira
Maldiz
a Providência,
Maldiz
a mão que o esmaga?
Acaso
para o cântico superno?
Ou
apenas suspira
O
moribundo,
Que
se chamava um mundo?
Quem
vai pôr uma campa sobre os restos
Desse
inerte planeta,
Que
o destrutor cometa
Incinerou
na rápida passagem?
E
tu, átomo obscuro,
Que
varre à tarde a aragem,
Soltas
do seio impuro
Maldição
insensata,
Por
que o teu Deus te evoca à eternidade?
Que
é o viver? O umbral, a que um momento
E
espírito, surgindo
Das
solidões do nada
À
voz do Criador, se encosta, e atento
Contempla
a luz e o céu; donde desata
Seu
voo à imensidade.
Geme
acaso o passarinho
De
saudade,
Quando
as asas expande, e deixa o ninho
A
vez primeira, a mergulhar nos ares?
Volve
olhos lacrimosos aos mares tormentosos
O
navegante, quando aproa às plagas
Da
pátria suspirada?
Por
que morres?! Pergunta à Providência
Por
que te fez nascer.
Qual
era o teu direito a ver o mundo
Teu
jus à existência?
Olha
no outono o ulmeiro
Que
o vendaval agita,
E
cujas tênues folhas
Aos
centos precipita.
São
a folha do ulmeiro o nome e a fama,
E
o amar dos humanos:
Ao
nada do que foi assim se atiram
No
vórtice dos anos.
Que
é a glória na terra? Um eco frouxo,
Que
somem mil ruídos.
E
a voz da terra o que é, na voz imensa
Dos
orbes reunidos?
Amor!
amor terreno!... Ai, se pudesses
Compreender
a amargura,
Com
que te choro, ó alma transviada!
Eu,
que te amei do berço, e qual doçura
Há
no afeto que liga o anjo ao homem,
Rindo
despiras esse corpo enfermo,
Para
te unir a mim, para aspirares
O
gozo celestial de amor sem termo!
Alma
triste, que mesquinha
Te
debruças sobre o inferno,
Ouve
o anjo, pobrezinha;
Vem
ao gozo sempiterno.
Resigna-te
e espera, e os dias de prova
Serão
para o crente quais breves instantes.
Tomar-te-ei
nos braços no trance da morte,
Fendendo
o infinito com as asas radiantes.
Depois,
das alturas teu térreo vestido
Sorrindo
veremos na terra guardar
E
ao hino de Hosana nos coros celestes
A
voz de um remido iremos juntar.
A GRAÇA
Que
harmonia suave
É
esta, que na mente
Eu
sinto murmurar,
Ora
profunda e grave,
Ora
meiga e cadente,
Ora
que faz chorar?
Por
que da morte a sombra,
Que
para mim em tudo
Negra
se reproduz,
Se
aclara, e desassombra
Seu
gesto carrancudo,
Banhada
em branda luz?
Por
que no coração
Não
sinto pesar tanto
O
férreo pé da dor,
E
o hino da oração,
Em
vez de irado canto,
Me
pede íntimo ardor?
És
tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem
consolar a solidão do enfermo,
E
a contemplar com placidez o ensina
De
curta vida o derradeiro termo?
Oh,
sim! és tu, que na infantil idade,
Da
aurora à frouxa luz,
Me
dizias: “Acorda, inocentinho,
Faze
o sinal da cruz.”
És
tu, que eu via em sonhos,
nesses
anos de inda puro sonhar,
Em
nuvem d'ouro e púrpura descendo
Com
as roupas a alvejar.
És
tu, és tu! que ao pôr do sol, na veiga,
Junto
ao bosque fremente,
Me
contavas mistérios, harmonias
Dos
céus, do mar dormente.
És
tu, és tu! que, lá, nesta alma absorta
Modulavas
o canto,
Que
de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao
Deus três vezes santo.
És
tu, que eu esqueci na idade ardente
Das
paixões juvenis,
E
que voltas a mim, sincero amigo,
Quando
sou infeliz.
Sinto
a tua voz de novo,
Que
me revoca a Deus:
Inspira-me
a esperança,
Que
te seguiu dos céus!...
RESIGNAÇÃO
No
teu seio, reclinado
Dormirei,
Senhor, um dia,
Quando
for na terra fria
Meu
repouso procurar;
Quando
a lousa do sepulcro
Sobre
mim tiver caído,
E
este espírito afligido
Vir
a tua luz brilhar!
No
teu seio, de pesares
O
existir não se entretece;
Lá
eterno o amor floresce;
Lá
floresce eterna paz:
Lá
bramir junto ao poeta
Não
irão paixões e dores,
Vãos
desejos, vãos temores
Do
desterro em que ele jaz.
Hora
extrema, eu te saúdo!
Salve,
ó trevas da jazida,
Donde
espera erguer-se à vida
Meu
espírito imortal!
Anjo
bom, não me abandones
Neste
trance dilatado;
Que
contrito, resignado,
Me
acharas na hora fatal.
E
depois... perdoa, ó anjo,
Ao
amor do moribundo,
Que
só deixa neste mundo
Pouco
pó, muito gemer.
Oh...
depois... dize à mesquinha
Um
segredo de doçura:
Que
na pátria o amor se apura,
Que
o desterro viu nascer.
Que
é o céu a pátria nossa;
Que
é o mundo exílio breve;
Que
o morrer a causa leve;
Que
é princípio, não é fim:
Que
duas almas que se amaram
Vão
lá ter nova existência,
Confundidas
numa essência,
A
de um novo querubim.
DEUS
Nas
horas do silêncio, à meia-noite,
Eu
louvarei o Eterno!
Ouçam-me
a terra, e os mares rugidores,
E
os abismos do inferno.
Pela
amplidão dos céus meus cantos soem,
E
a lua resplendente
Pare
em seu giro, ao ressoar nesta larpa
O
hino do Onipotente.
Antes
de tempo haver, quando o infinito
Media
a eternidade,
E
só do vácuo as solidões enchia
De
Deus a imensidade,
Ele
existia, em sua essência envolto,
E
fora dele o nada:
No
seio do Criador a vida do homem
Estava
ainda guardada:
Ainda
então do mundo os fundamentos
Na
mente se escondiam
De
Jeová, e os astros fulgurantes
Nos
céus não se volviam.
Eis
o Tempo, o Universo, o Movimento
Das
mãos solta o Senhor:
Surge
o sol, banha a terra, e desabrocha
Nesta
a primeira flor:
Sobre
o invisível eixo range o globo:
O
vento o bosque ondeia:
Retumba
ao longe o mar: da vida a forca
A
natureza anseia!
Quem,
dignamente, ó Deus, há de louvar-Te,
Ou
cantar teu poder?
Quem
dirá de teu braço as maravilhas,
Fonte
de todo o ser,
No
dia da criação; quando os tesouros
Da
neve amontoaste;
Quando
da terra nos mais fundos vales
As
águas encerraste?!
E
eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com
destra poderosa,
Fez,
por lei imutável, se librassem
Na
mole ponderosa?
Onde
existia então? No tipo imenso
Das
gerações futuras;
Na
mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na
terra e nas alturas!
Oh,
quanto é grande o rei das tempestades,
Do
raio, e do trovão!
Quão
grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da
tarde a viração!
Por
Sua providência nunca, embalde,
Zumbiu
mínimo inseto;
Nem
volveu o elefante, em campo estéril,
Os
olhos inquieto.
Não
deu Ele à avezinha o grão da espiga,
Que
ao ceifador esquece;
Do
norte ao urso o sol da primavera,
Que
o reanima e aquece?
Não
deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao
certo a amena selva,
Ao
flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No
prado ao touro a relva?
Não
mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação
e luz?
Acaso
em vão algum desventurado
Curvou-se
aos pés da cruz?
A
quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No
dia da aflição,
Quando
pesa sobre ele, por seus crimes,
Do
crime a punição.
Homem,
ente imortal, que és tu perante
A
face do Senhor?
És
a junta do brejo, harpa quebrada
Nas
mãos do trovador!
Olha
o velho pinheiro, campeando
Entre
as neves alpinas:
Quem
irá derribar o rei dos bosques
Do
trono das colinas?
Ninguém!
Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo
Deus mandou!
Lá
correu o aquilão: fundas raízes
Aos
aves lhe assoprou.
Soberbo,
sem temor, saiu na margem
Do
caudaloso Nilo,
O
corpo monstruoso ao sol voltando
Medonho
crocodilo.
De
seus dentes em roda o susto habita;
Vê-se
a morte assentada
Dentro
em sua garganta, se descerra
Aboca
afogueada:
Qual
duro arnês de intrépido guerreiro
É
seu dorso escamoso;
Como
os últimos ais de um moribundo
Seu
grito lamentoso:
Fumo
e fogo respira quando irado;
Porém,
se Deus mandou,
Qual
do norte impelida a nuvem passa,
Assim
ele passou!
Teu
nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa
ao teu cantor!
Dignos
de ti não são meus frouxos hinos
Mas
são hinos de amor.
Embora
vis hipócritas te pintem
Qual
bárbaro tirano:
Mentem,
por dominar com férreo cetro
O
vulgo cego e insano.
Quem
os crê é um ímpio! Recear-te
É
maldizer-te, ó Deus;
É
o trono dos déspotas da terra
Ir
colocar nos céus.
Eu,
por mim, passarei entre os abrolhos
Dos
males da existência
Tranquilo,
e sem terror, à sombra posto
Da
pua providência.
A TEMPESTADE
Sibila
o vento: os torreões de nuvens
Pesam
nos densos ares:
Ruge
ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela
extensão dos mares:
A
imensa vaga ao longe vem correndo,
Em
seu terror envolta;
E,
dentre as sombras, rápidas centelhas
A
tempestade solta.
Do
sol no ocaso um raio derradeiro,
Que,
apenas fulge, morre,
Escapa
à nuvem, que, apressada e espessa,
Para
apagá-lo corre.
Tal
nos afaga em sonhos a esperança,
Ao
despontar do dia,
Mas,
no acordar, lá vem a consciência
Dizer
que ela mentia!
As
ondas negro-azuis se conglobaram;
Serras
tornadas são,
Contra
as quais outras serras, que se arqueiam,
Bater,
partir-se vão.
Ó
tempestade! Eu te saúdo, ó nume,
Da
natureza acoite!
Tu
guias os bulcões, do mar princesa,
E
é teu vestido a noite!
Quando
pelos pinhais, entre o granizo,
Ao
sussurrar das ramas,
Vibrando
sustos, pavorosa ruges
E
assolação derramas,
Quem
porfiar contigo, então, ousara
De
glória e poderio;
Tu
que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se
o claro rio?
Quem
me dera ser tu, por balouçar-me
Das
nuvens nos castelos,
E
ver dos ferros meus, enfim, quebrados
Os
rebatidos elos.
Eu
rodeara, então, o globo inteiro;
Eu
sublevara as águas;
Eu
dos vulcões com raios acendera
Amortecidas
fráguas;
Do
robusto carvalho e sobro antigo
Acurvaria
as frontes;
Com
furacões, os areais da Líbia
Converteria
em montes;
Pelo
fulgor da lua, lá do Norte
No
Polo me assentara
E
vira prolongar-se o gelo eterno,
Que
o tempo amontoara.
Ali,
eu solitário, eu rei da morte,
Erguera
meu clamor,
E
dissera: “Sou livre, e tenho império;
Aqui,
sou eu senhor!”
Quem
se pudera erguer, como estas vagas
Em
turbilhões incertos,
E
correr, e correr, troando ao longe,
Nos
líquidos desertos!
Mas
entre membros de lodoso barro
A
mente presa esta!...
Ergue-se
em vão aos céus: precipitada,
Rápido,
em baixo dá.
Ó
morte, amiga morte! é sobre as vagas,
Entre
escarcéus erguidos,
Que
eu te invoco, pedindo-te feneçam
Meus
dias aborridos:
Quebra
duras prisões, que a natureza
Lançou
a esta alma ardente;
Que
ela possa voar, por entre os orbes,
Aos
pés do Onipotente.
Sobre
a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
Desça,
e estourando a esmague,
E
a grossa proa, dos tufões ludíbrio,
Solta,
sem rumo vague!
Porém,
não!... Dormir deixa os que me cercam
O
sono do existir;
Deixa-os,
vãos sonhadores de esperanças
Nas
trevas do porvir.
Doce
mãe do repouso, extremo abrigo
De
um coração opresso,
Que
ao ligeiro prazer, à dor cansada
Negas
no seio acesso,
Não
despertes, oh, não! os que abominam
Teu
amoroso aspeito;
Febricitantes,
que se abraçam, loucos,
Com
seu dorido leito!
Tu,
que ao mísero ris com rir tão meigo,
Caluniada
morte;
Tu,
que entre os bravos teus lhe dás asilo
Contra
o furor da sorte;
Tu,
que esperas às portas dos senhores,
Do
servo ao limiar,
E
eterna corres, peregrina, a terra
E
as solidões do mar,
Deixa,
deixa sonhar ventura os homens;
Já
filhos teus nasceram:
Um
dia acordarão desses delírios,
Que
tão gratos lhes eram.
E
eu que velo na vida, e já não sonho
Nem
glória, nem ventura;
Eu,
que esgotei tão cedo, até as fezes,
O
cálix da amargura:
Eu,
vagabundo e pobre, e aos pés calcado
De
quanto há vil no mundo,
Santas
inspirações morrer sentindo
Do
coração no fundo,
Sem
achar no desterro uma harmonia
De
alma, que a minha entenda,
Por
que seguir, curvado ante a desgraça,
Esta
espinhosa senda?
Torvo
o oceano vai! Qual dobre, soa
Fragor
da tempestade,
Salmo
de mortos, que retumba ao longe,
Grito
da eternidade!...
Pensamento
infernal! Fugir covarde
Ante
o destino iroso?
Lançar-me,
envolto em maldições celestes,
No
abismo tormentoso?
Nunca!
Deus pôs-me aqui para apurar-me
Nas
lágrimas da terra;
Guardarei
minha estância atribulada,
Com
meu desejo em guerra.
O
fiel guardador terá seu prêmio,
O
seu repouso, enfim,
E
atalaiar o sol de um dia extremo
Virá
outro após mim.
Herdarei
o morrer! Como é suave
Bênção
de pai querido.
Será
o despertar, ver meu cadáver,
Ver
o grilhão partido.
Um
consolo, entretanto, resta ainda
Ao
pobre velador:
Deus
lhe deixou, nas trevas da existência,
Doce
amizade e amor.
Tudo
o mais é sepulcro branqueado
Por
embusteira mão;
Tudo
o mais vãos prazeres que só trazem
Remorso
ao coração.
Passarei
minha noite a luz tão meiga,
Até
o amanhecer;
Até
que suba à pátria do repouso,
Onde
não há morrer.
O SOLDADO
I
Veia
tranquila e pura
Do
meu paterno rio,
Dos
campos, que ele rega,
Mansíssimo
armentio.
Rocio
matutino,
Prados
tão deleitosos,
Vales,
que assombravam selvas
De
sinceirais frondosos,
Terra
da minha infância,
Teto
de meus maiores,
Meu
breve jardinzinho,
Minhas
pendidas flores,
Harmonioso
e santo
Sino
do presbitério,
Cruzeiro
venerando
Do
humilde cemitério.
Onde
os avós dormiram,
E
dormirão os pais;
Onde
eu talvez não durma,
Nem
reze, talvez, mais,
Eu
vos saúdo! e o longo
Suspiro
amargurado
Vos
mando. É quanto pode
Mandar
pobre soldado.
Sobre
as cavadas ondas
Dos
mares procelosos,
Por
vós já fiz soar
Meus
cantos dolorosos.
Na
proa ressonante
Eu
me assentava mudo,
E
aspirava ansioso
O
vento frio e agudo;
Porque
em meu sangue ardia
A
febre da saudade,
Febre
que só minora
Sopro
de tempestade;
Mas
que se irrita, e dura
Quando
é tranquilo o mar;
Quando
da pátria o céu
Céu
puro vem lembrar;
Quando,
no extremo ocaso,
A
nuvem vaporosa,
À
frouxa luz da tarde
Na
cor imita a rosa;
Quando,
do sol vermelho
O
disco ardente cresce,
E
paira sobre as águas,
E
enfim desaparece;
Quando
no mar se estende
Manto
de negro dó;
Quando,
ao quebrar do vento,
Noite
e silêncio é só;
Quando
sussurram meigas
Ondas
que a nau separa,
E
a rápida ardentia
Em
torno a sombra aclara.
II
Eu
já ouvi, de noite,
Entre
o pinhal fechado,
Um
frêmito soturno
Passando
o vento irado:
Assim
o murmúrio
Do
mar, fervendo à proa,
Com
o gemer do aflito,
Sumido,
acorde soa;
E
o cintilar das águas
Gera
amargura e dor,
Qual
lâmpada, que pende
No
templo do Senhor,
Lá
pela madrugada,
Se
o óleo lhe escasseia,
E
a espaços expirando,
Afrouxa
e bruxuleia.
III
Bem
abundante messe
De
pranto e de saudade
O
foragido errante
Colhe
na soledade!
Para
o que a pátria perde
É
o universo mu do;
Nada
lhe ri na vida;
Mora
o fastio em tudo;
No
meio das procelas,
Na
calma do oceano,
No
sopro do galerno,
Que
enfuna o largo pano.
E
no entestar com a terra
Por
abrigado esteiro,
E
no pousar à sombra
Do
teto do estrangeiro.
IV
E
essas memórias tristes
Minha
alma laceraram,
E
a senda da existência
Bem
agra me tornaram:
Porém
nem sempre férreo
Foi
meu destino escuro;
Sulcou
de luz um raio
As
trevas do futuro.
Do
meu país querido
A
praia ainda beijei,
E
o velho e amigo cedro
No
vale ainda abracei!
Nesta
alma regelada
Surgiu
ainda o gozo,
E
um sonho lhe sorriu
Fugaz,
mas amoroso.
Oh,
foi sonho da infância
Desse
momento o sonho!
Paz
e esperança vinham
Ao
coração tristonho.
Mas
o sonhar que monta,
Se
passa, e não conforta?
Minh'alma
deu em terra,
Como
se fosse morta.
Foi
a esperança nuvem,
Que
o vento some à tarde:
Facho
de guerra aceso
Em
labaredas arde!
Do
fratricídio a luva
Irmão
a irmão lançara,
E
o grito: ai do vencido!
Nos
montes retumbara.
As
armas se hão cruzado:
O
pó mordeu o forte;
Caiu:
dorme tranquilo:
Deu-lhe
repouso a morte.
Ao
menos, nestes campos
Sepulcro
conquistou,
E
o adro dos estranhos
Seus
ossos não guardou.
Ele
herdará, ao menos,
Aos
seus honrado nome;
Paga
de curta vida
Ser-lhe-á
largo renome.
V
E
a bala sibilando,
E
o trom da artilharia,
E
a tuba clamorosa,
Que
os peitos acendia,
E
as ameaças torvas,
E
os gritos de furor,
E
desses que expiravam
Som
cavo de estertor,
E
as pragas do vencido,
Do
vencedor o insulto,
E
a palidez do morto,
Nu,
sanguento, insepulto,
Eram
um caos de dores
Em
convulsão horrível,
Sonho
de acesa febre,
Cena
tremenda e incrível!
E
suspirei: nos olhos
Me
borbulhava o pranto,
E
a dor, que trasbordava
Pediu-me
infernal canto.
Oh,
sim! maldisse o instante,
Em
que buscar viera,
Por
entre as tempestades,
A
terra em que nascera.
Que
é, em fraternas lides
Um
canto de vitória?
É
delirar maldito;
É
triunfar sem glória.
Maldito
era o triunfo,
Que
rodeava o horror,
Que
me tingia tudo
De
sanguinosa cor!
Então
olhei saudoso
Para
o sonoro mar;
Da
nau do vagabundo
Meigo
me riu o arfar.
De
desespero um brado
Soltou,
ímpio, o poeta,
Perdão!
Chegara o mísero
Da
desventura à meta.
VI
Terra
infame! —de servos aprisco,
Mais
chamar-me teu filho não sei;
Desterrado,
mendigo serei;
De
outra terra meus ossos serão!
Mas
a escravo, que pugna por ferros,
Que
herdará desonrada memória,
Renegando
da terra sem glória,
Nunca
mais darei nome de irmão!
Onde
é livre tem pátria o poeta,
Que
ao exílio condena ímpia sorte.
Sobre
os plainos gelados do norte
Luz
do sol também desce do céu;
Também
lá se erguem montes, e o prado
De
boninas, em maio, se veste;
Também
lá se meneia o cipreste
Sobre
o corpo que à terra desceu.
Que
me importa o loureiro da encosta?
Que
me importa da fonte o ruído?
Que
me importa o saudoso gemido
Da
rolinha sedenta de amor?
Que
me importam outeiros cobertos
Da
verdura da vinha, no estio?
Que
me importa o remanso do rio,
E,
na calma, da selva o frescor?
Que
me importa o perfume dos campos,
Quando
passa da tarde a bafagem,
Que
se embebe, na sua passagem,
Na
fragrância da rosa e aleli?
Que
me importa? Pergunta insensata!
É
meu berço: a minha alma esta lá...
Que
me importa... Esta boca o dirá?!
Minha
pátria, estou louco... menti!
Eia,
servos! O ferro se cruze,
Assobie
o pelouro nos ares;
Estes
campos convertam-se em mares,
Onde
o sangue se possa beber!
Larga
a vala! que, após a peleja,
Todos
nos dormiremos unidos!
Lá,
vingados, e do ódio esquecidos,
Paz
faremos... depois do morrer!
VII
Assim,
entre amarguras,
Me
delirava a mente;
E
o sol ia fugindo
No
termo do Ocidente.
E
os fortes lá jaziam
Com
a face ao céu voltada;
Sorria
a noite aos mortos,
Passando
sossegada.
Porém,
a noite deles
Não
era a que passava!
Na
eternidade a sua
Corria,
e não findava.
Contrários
ainda há pouco,
Irmãos,
enfim, lá eram!
O
seu tesouro de ódio,
Mordendo
o pó, cederam.
No
limiar da morte
Assim
tudo fenece:
Inimizades
calam,
E
até o amor esquece!
Meus
dias rodeados
Foram
de amor outrora;
E
nem um vão suspiro
Terei,
morrendo, agora,
Nem
o apertar da destra
Ao
desprender da vida,
Nem
lágrima fraterna
Sobre
a feral jazida!
Meu
derradeiro alento
Não
colherão os meus.
Por
minha alma aterrada
Quem
pedirá a Deus?
Ninguém!
Aos pés o servo
Meus
restos calcará,
E
o riso ímpio, odiento,
Mofando
soltará.
O
sino lutuoso
Não
lembrará meu fim:
Preces,
que o morto afagam,
Não
se erguerão por mim!
O
filho dos desertos,
O
lobo carniceiro,
Há
de escutar alegre
Meu
grito derradeiro!
Ó
morte, o sono teu
Só
é sono mais largo;
Porém,
na juventude,
É
o dormi-lo amargo;
Quando
na vida nasce
Essa
mimosa flor,
Como
a cecém suave,
Delicioso
amor;
Quando
a mente acendida
Crê
na ventura e glória;
Quando
o presente é tudo.
E
inda nada a memória!
Deixar
a cara vida,
Então
a doloroso,
E
o moribundo à terra
Lança
um olhar saudoso.
A
taça da existência
No
fundo fezes tem;
Mas
os primeiros tragos
Doces,
bem doces, vem.
E
eu morrerei agora
Sem
abraçar os meus,
Sem
jubiloso um hino
Alevantar
aos céus?
Morrer,
morrer, que importa?
Final
suspiro, ouvi-lo
Há
de a pátria. Na terra
Irei
dormir tranquilo.
Dormir?
Só dorme o frio
Cadáver,
que não sente;
A
alma voa a abrigar-se
Aos
pés do Onipotente.
Reclinar-me-ei
à sombra
Do
amplo perdão do Eterno;
Que
não conheço o crime,
E
erros não pune o inferno.
E
vós, entes queridos,
Entes
que tanto amei,
Dando-vos
liberdade
Contente
acabarei.
Por
mim livres chorar
Vós
podereis um dia,
E
às cinzas do soldado
Erguer
memória pia.
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