1/07/2020

Poesias de Alexandre Herculano

 D. PEDRO

Pela encosta do Líbano, rugindo,
O noto furioso
Passou um dia, arremessando à terra
O cedro mais frondoso;
Assim te sacudiu da morte o sopro
Do carro da vitória,
Quando, ébrio de esperanças, tu sorrias,
Filho caro da glória.
Se, depois de procela em mar de escolhos,
A combatida nave
Vê terra e vento abranda, o porto aferra,
Com júbilo suave.
Também tu demandaste o céu sereno,
Depois de uma árdua lida:
Deus te chamou: o prêmio recebeste
Dos méritos da vida.
Que é esta? Um ermo de espinhais cortado,
Donde foge o prazer:
Para o justo ela existe além da campa:
Teme o ímpio o morrer.

Plante-se a acácia, o símbolo do livre,
Junto às cinzas do forte:
Ele foi rei — e combateu tiranos —
Chorai, chorai-lhe a morte!
Regada pelas lágrimas de um povo,
A planta crescerá;
E à sombra dela a fronte do guerreiro
Plácida pousará.
Essa fronte das balas respeitada,
Agora a traga o pó:
Do valente, do bom, do nosso amigo
Restam memórias só;
Mas estas, entre nós, com a saudade
Perenes viverão,
Enquanto, à voz de pátria e liberdade,
Ansiar um coração.
Nas orgias de Roma, a prostituta,
Folga, vil opressor:
Folga com os hipócritas do Tibre;
Morreu teu vencedor.
Envolto em maldições, em susto, em crimes
Fugiste, desgraçado:
Ele, subindo ao céu, ouviu só queixas,
E um choro não comprado:
Encostado na borda do sepulcro,
O olhar atrás volveu,
As suas obras contemplou passadas,
E em paz adormeceu:
Os teus dias também serão contados,
Covarde foragido:

Mas será de remorso tardo e inútil
Teu último gemido:
Do passamento o cálix lhe adoçaram
Uma filha, uma esposa:
Quem, tigre cru, te cercará o leito,
Nessa hora pavorosa?
Deus, te és bom: e o virtuoso em breve
Chamas ao gozo eterno,
E o ímpio deixas saciar de crimes,
Para o sumir no inferno?
Alma gentil, que assim nos hás deixado,
Entregues à alta dor,
Anjo das preces nos serás, perante
O trono do Senhor:
E quando, cá na terra, o poderoso
As leis aos pés calcar,
Junto do teu sepulcro irá o opresso
Seus males deplorar:
Assim, no Oriente, de Albuquerque às cinzas
O desvalido indiano
Mais de uma vez foi demandar vingança
De um déspota inumano.
Mas quem ousará à pátria tua e nossa
Curvar nobre cerviz?
Quem roubará ao lusitano povo
Um povo ser feliz?
Ninguém! Por tua glória os teus soldados
Juram livres viver.
Ai do tirano que primeiro ousasse
Do voto escarnecer!
Nesse abraço final, que nos legaste,
Legaste o gênio teu:
Aqui — no coração — nós o guardamos;
Teu gênio não morreu.
Jaz em paz: essa terra, que te esconde,
O monstro abominado
Só pisará ao baquear sobre ela
Teu último soldado.

Eu também combati: nas pátrias lides
Também colhi um louro:
O prantear o companheiro extinto
Não me será desdouro.
Para o sol do Oriente outros se voltem,
Calor e luz buscando:
Que eu pelo belo sol, que jaz no ocaso,
Cá ficarei chorando.


A VITÓRIA E A PIEDADE

I
Eu nunca fiz soar meus pobres cantos
Nos paços dos senhores!
Eu jamais consagrei hino mentido
Da terra aos opressores.
Mal haja o trovador que vai sentar-se
À porta do abastado,
O qual com ouro paga a própria infâmia,
Louvor que foi comprado.
Desonra àquele, que ao poder e ao ouro
Prostitui o alaúde!
Deus à poesia deu por alvo a pátria,
Deu a glória e a virtude.
Feliz ou infeliz, triste ou contente,
Livre o poeta seja,
E em hino isento a inspiração transforme
Que na sua alma adeja.

II
No despontar da vida, do infortúnio
Murchou-me o sopro ardente;
E saudades curti em longes terras
Da minha terra ausente.
O solo do desterro, ai, quanto ingrato
É para o foragido,
Enevoado o céu, árido o prado,
O rio adormecido!
E lá chorei, na idade da esperança,
Da pátria a dura sorte:
Esta alma encaneceu; e antes de tempo
Ergueu hinos à morte:
Que a morte é para o mísero risonha,
Santa da campa a imagem...
Ali é que se aferra o porto amigo,
Depois de árdua viagem.

III
Mas quando o pranto me sulcava as faces,
Pranto de atroz saudade,
Deus escutou do vagabundo as preces,
Dele teve piedade.
“Armas!” bradaram no desterro os fortes,
Como bradar de um só:
Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os
Indissolúvel nó.
Com seus irmãos as sacrossantas juras,
Beijando a cruz da espada,
Repetiu o poeta: “Eia, partamos!
Ao mar!” Partia a armada
Pelas ondas azuis correndo afoitos,
As praias demandamos
Do velho Portugal, e o balcão negro
Da guerra despregamos;
De guerra em que era infâmia o ser piedoso,
Nobreza o ser cruel,
E em que o golpe mortal descia envolto
Das maldições no fel.

IV
Fanatismo brutal, ódio fraterno,
De fogo céus toldados,
A fome, a peste, o mar avaro, as turbas
De inúmeros soldados;
Comprar com sangue o pão, com sangue o lume
Em regelado inverno;
Eis contra o que, por dias de amargura,
Nos fez lutar o inferno.
Mas de fera vitória, enfim, colhemos
A coroa de cipreste;
Que a fronte ao vencedor em ímpia luta
Só essa coroa veste.
Como ela torvo, soltarei um hino
Depois do triunfar.
Oh, meus irmãos, da embriaguez da guerra
Bem triste é o acordar!
Nessa alta encosta sobranceira aos campos,
De sangue ainda impuros,
Onde o canhão troou por mais de um ano
Contra invencíveis muros,
Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me,
Pedir inspirações
À noite queda, ao gênio que me ensina
Segredos das canções.

V
Reina em silêncio a lua; o mar não brame,
Os ventos nem bafejam:
Rasas com a terra, só noturna aves
Em giros mil adejam.
No plaino pardacento, junto ao marco
Tombado, ou rota sebe,
Aqui e ali, de ossadas insepultas
O alvejar se percebe.
É que essa veiga, tão festiva outrora,
Da paz tranquilo império,
Onde ao carvalho a vide se enlaçava,
E hoje um cemitério!

VI
Eis de esforçados mil inglórios restos,
Depois de brava lida:
De longo combater atroz memento
Em guerra fratricida.
Nenhum padrão recordará aos homens
Seus feitos derradeiros:
Nem dirá: “Aqui dormem portugueses;
Aqui dormem guerreiros.”
Nenhum padrão, que peça aos que passarem
Reza fervente e pia,
E junto ao qual entes queridos vertam
O pranto da agonia!
Nem hasteada cruz, consolo ao morto;
Nem lájea que os proteja
Do ardente sol, da noite úmida e fria,
Que passa e que roreja!
Não! lá hão de jazer no esquecimento
De desonrada morte,
Enquanto, pelo tempo em pó desfeitos,
Não os dispersa o norte.

VII
Quem, pois, consolará gementes sombras.
Que ondeiam junto a mim?
Quem seu perdão da pátria implorar ousa,
Seu perdão de Eloim?
Eu, o cristão, o trovador do exílio,
Contrário em guerra crua,
Mas que não sei verter o fel da afronta
Sobre uma ossada nua.

VIII
Lavradores, zagais, descem dos montes,
Deixando terras, gados,
Para as armas vestir, dos céus em nome,
Por fariseus chamados.
De um Deus de paz hipócritas ministros
Os tristes enganaram:
Foram eles, não nós, que estas caveiras
Aos vermes consagraram.
Maldito sejas tu, monstro do inferno,
Que do Senhor no templo,
Junto da eterna cruz, ao crime incitas,
Das do furor o exemplo!
Sobre as cinzas da pátria, ímpio, pensaste
Folgar de nosso mal,
E, entre as ruínas de cidade ilustre,
Soltar riso infernal.
Tu, no teu coração insipiente,
Disseste: Deus não há!
Ele existe, malvado; e nos vencemos:
Treme; que tempo é já!

IX
Mas esses, cujos ossos espalhados
No campo da peleja
Jazem, exoram a piedade nossa;
Piedoso o livre seja!
Eu pedirei a paz dos inimigos,
Mortos como valentes,
Ao Deus nosso juiz, ao que distingue
Culpados de inocentes.

X
Perdoou, expirando, o Filho do Homem
Aos seus perseguidores;
Perdão, também, às cinzas de infelizes;
Perdão, ó vencedores!
Não insulteis o morto. Ele há comprado
Bem caro o esquecimento,
Vencido adormecendo em morte ignóbil,
Sem dobre ou monumento.

É tempo d'olvidar ódios profundos
De guerra deplorável.
O forte é generoso, e deixa ao fraco
O ser inexorável.
Oh, perdão para aquele a quem a morte
No seio agasalhou!
Ele é mudo: pedi-lo já não pode;
O dá-lo a nós deixou.
Além do limiar da eternidade
O mundo não tem réus
O que legou a terra o pó da terra
Julgá-lo cabe a Deus.
E vós, meus companheiros, que não visites
Nossa triste vitória,
Não precisais do trovador o canto;
Vosso nome é da história.

XI
Assim, foi do infeliz sobre a jazida
Que um hino murmurei,
E, do vencido consolando a sombra,
Por vós eu perdoei



A CRUZ MUTILADA

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, o cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o sol se pôr,

Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando a luz que fenece
Se estira a tua sombra,

E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do sol, e ao elevar-se a lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao céu no extremo
Raio de sol, passando fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!

Foi da ciência incrédula o sectário,
Acaso, o cruz da serra, o que na face
Afrontas te gravou com mão profusa?
Não! Foi o homem do povo, a quem consolo
Na miséria e na dor constante hás sido
Por bem dezoito séculos: foi esse
Por cujo amor surgias qual remorso
Nos sonhos do abastado ou do tirano,
Bradando — esmola! a um; piedade! ao outro.

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras
Símbolo eterno de uma crença eterna;
Se a nossa fé em ti fosse mentida,
Dos opressos de outrora os livres netos
Por sua ingratidão dignos de opróbrio,
Se não te amassem, ainda assim seriam.
Mas és núncia do céu, e eles te insultam,
Esquecidos das lágrimas perenes
Por trinta gerações, que guarda a campa,
Vertidas a teus pés nos dias torvos
Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se
De que, se a paz doméstica, a pureza
Do leito conjugal bruta violência
Não vai contaminar, se a filha virgem
Do humilde camponês não é ludíbrio
Do opulento, do nobre, ó cruz, te devem;
Que por ti o cultor de férteis campos
Colhe tranquilo da fadiga o prêmio,
Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura
Lhe diga: “É meu, e és meu! A mim deleites,
Liberdade, abundância: a ti, escravo,
O trabalho, a miséria unido à terra,
Que o suor dessa fronte fertiliza,
Enquanto, em dia de furor ou tédio,
Não me apraz com teus restos fecundá-la.”

Quando calada a humanidade ouvia
Este atroz blasfemar, te elevaste
Lá do Oriente, ó cruz, envolta em glória,
E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:
“Mentira!”, e o servo alevantou os olhos,
Onde a esperança cintilava, a medo,
E viu as faces do senhor retintas
Em palidez mortal, e errar-lhe a vista
Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente
Da liberdade anunciara a vinda.

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência
Desgastou no volver de cem combates,
Ao ver que, enfim, o seu país querido
Já não ousam calçar os pés d'estranhos,
Vem assentar-se à luz meiga da tarde,
Na tarde do viver, junto do teixo
Da montanha natal. Na fronte calva,
Que o sol tostou e que enrugaram anos,
Há um como fulgor sereno e santo.
Da aldeia semideus, devem-lhe todos
O teto, a liberdade, e a honra e vida.
Ao perpassar do veterano, os velhos
A mão que os protegeu apertam gratos;
Com amorosa timidez os moços
Saúdam-no qual pai. Nas largas noites
Da gelada estação, sobre a lareira
Nunca lhe falta o cepo incendiado;
Sobre a mesa frugal nunca, no estio,
Refrigerante pomo. Assim do velho
Pelejador os derradeiros dias
Derivam para o túmulo suaves,
Rodeados de afeto, e quando à terra
A mão do tempo gastador o guia,
Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze
Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem
Do defensor do fraco as cinzas frias.

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,
Os gigantes combates dos tiranos,
E venceste. No solo libertado,
Que pediste? Um retiro no deserto,
Um píncaro granítico, açoitado
Pelas asas do vento e enegrecido
Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te
Este ar úmido e gélido a segure
Não foi ferir do bosque o rei. Do estio
No ardor canicular nunca disseste:
“Dai-me, sequer, do bravo medronheiro
O desprezado fruto!” O teu vestido
Era o musgo, que tece a mão do inverno
E Deus criou para trajar as rochas.
Filha do céu, o céu era o seu teto,
Teu escabelo o dorso da montanha.
Tempo houve em que esses bravos te adornava
Coroa viçosa de gentis boninas,
E o pedestal te rodeavam preces.
Ficaste em breve só, e a voz humana
Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.
Que te importava? As árvores da encosta
Curvavam-se a saudar-te, e revoando
As aves vinham circundar-te de hinos.
Afagava-te o raio derradeiro,
Frouxo do sol ao mergulhar nos mares,
E esperavas o túmulo. O teu túmulo
Devera ser o seio destas serras,
Quando, em gênesis novo, à voz do Eterno
Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,
Elas nas fauces dos vulcões descessem.
Então para essa campa flores, bênçãos
Ou é saudade lágrimas vertidas,
Qual do velho soldado a lousa pede,
Não pediras a ingrata raça humana,
Ao pé de ti no seu sudário envolta.

Este longo esperar do dia extremo
No esquecimento do ermo abandonada,
Foi duro de sofrer aos teus remidos,
Ó redentora cruz. Eras, acaso,
Como um remorso e acusação perene
No teu rochedo alpestre, onde te viam
Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,
Quando a procela no pinhal rugia,
Criam ouvir-te a voz acusadora
Sobrelevar à voz da tempestade?
Que lhes dizias tu? De Deus falavas,
E do seu Cristo, do divino mártir,
Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita
Ergueu, purificou, clamando ao servo,
No seu transe: “Ergue-te, escravo!
És livre, como é para a cruz da infâmia.
Ela vil e tu vil, santos, sublimes
Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!
Abraça tua irmã: segue-a sem susto
No caminho dos séculos. Da terra
Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo
Trará da tua liberdade o dia.”

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,
Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te
Nos rumores da noite, a antiga história
Recontando do Gólgota, lembrando-lhes
Que só ao Cristo a liberdade devem,
E que ímpio o povo ser é ser infame.
Mutilado por ele, a pouco e pouco,
Tu em fragmentos tombaras do cerro,
Símbolo sacrossanto. Hão de os humanos
Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.
Da gratidão a dívida não paga
Ficará, ó tremenda acusadora,
Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;
Sem que o remorso os corações lhes rasgue.
Do Cristo o nome passará na terra.

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina
Deixar de ser perene testemunho
Da avita crença, os montes, a espessura,
O mar, a lua, o murmurar da fonte,
Da natureza as vagas harmonias,
Da cruz em nome, falarão do Verbo.

Dela no pedestal, então deserto,
Do deserto no seio, ainda o poeta
Virá, talvez, ao por do sol sentar-se;
E a vez da selva lhe dirá que a santo
Este rochedo nu, e um hino pio
A solidão lhe ensinará e a noite.

Do cântico futuro uma toada
Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos
Da brisa do crepúsculo nas asas?
É o porvir que te proclama eterna;
É a voz do poeta a saudar-te.

Montanha do Oriente,
Que, sobre as nuvens elevando o cume,
Divisas logo o sol, surgindo a aurora,
E que, lá no Ocidente,
Última vez seu radioso lume,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Rochedo, que descansas
No promontório nu e solitário,
Como atalaia que o oceano explora,
Alheio às mil mudanças
Que o mundo agitam turbulento e vário,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Sobros, robles frondentes,
Cuja sombra procura o viandante,
Fugindo ao sol a prumo que o devora,
Nesses dias ardentes
Em que o Leão nos céus passa radiante,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mato variado,
De rosmaninho e murta entretecido,
De cujos tênues flores se evapora
Aroma delicado,
Quando és por leve aragem sacudido,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mar, que vais quebrando
Rolo após rolo pela praia fria,
E fremes som de paz consoladora,
Dormente murmurando
Na caverna marítima sombria,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó lua silenciosa,
Que em perpétuo volver, seguindo a terra,
Esparzes tua luz ameigadora
Pela serra formosa,
E pelos lagos que em seu seio encerra,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Debalde o servo ingrato
No pó te derribou
E os restos te insultou,
Ó veneranda cruz:

Embora eu te não veja
Neste ermo pedestal;
És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!

Nas almas generosas
Gravou-te a mão de Deus,
E, à noite, fez nos céus
Teu vulto cintilar.

Os raios das estrelas
Cruzam o seu fulgor;
Nas horas do furor
As vagas cruza o mar.

Os ramos enlaçados
Do roble, choupo e til
Cruzando em modos mil,
Se vão entretecer.

Ferido, abre o guerreiro
Os braços, solta um ai,
Para, vacila, e cai
Para não mais se erguer.

Cruzado aperta ao seio
A mãe o filho seu,
Que busca, mal nasceu,
Fontes da vida e amor.

Surges, símbolo eterno,
No céu, na terra e mar,
Do forte no expirar,
E do viver no alvor!

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