O
grande romancista é bem o espelho da alma portuguesa, numa época atribulada da
sua vida e da sua história. Violento, impulsivo, arrebatado, cedendo abruptamente
a uma provocação, quer ela partisse de qualquer beócio escritor de parvônia,
quer ela proviesse de nomes literários já feitos e consagrados, Camilo, como o gênio
deste povo, arremetia furioso para o inimigo, esmiuçava-lhe a personalidade,
acachapava-lhe a figura, punha-lhe em foco o riso alvar, escancarava-lhe a boca
desdentada, e desfazia-o.
Nem
sempre era justo e o próprio escritor por mais de uma vez o reconheceu. Feria a
torto e a direito, muitas vezes irrefletidamente, para obedecer a uma
inclinação combativa do seu espírito.
Quem
o visse brandir a pena como um rijo montante a desbastar infiéis, julgaria que
o grande romancista era homem de má catadura, um traga mouros inacessível a
amizades e a carinhos, na obcecação doentia de exterminar tudo e todos.
Pela
sua correspondência e pelas notícias que até nós trazem os seus íntimos, vê-se
que Camilo para os seus amigos era afável, correto, obsequiador, até.
—
É que o leão não admitia que a fauna mais miúda zombasse dele. E realmente ele
foi o primeiro do seu tempo.
A
sua obra foi anarquicamente elaborada, como a sua vida foi anarquicamente
conduzida. Mas ela, arlequinando o riso e fazendo soluçar a dor, esmaltando
tipos ideais e atirando para a sarjeta do desprezo caracteres abomináveis ou
para o anfiteatro do circo histriões inconscientes, brilha em cada página, palpita
em cada período, porque e o povo português que ali esta fotografado, em suas
eminências e declives, em suas extravagâncias e loucuras.
Mas
Camilo, como todos os homens de gênio, como Camões, Shakespeare, e tantos
outros não foi compreendido no seu tempo. Então o burguês olhava-o com cólera e
o intelectual com desconfiança. E o povo, que ele tão bem descreveu em suas
paixões e desvarios, pouco se interessava por glórias literárias.
É
por isso Camilo viveu pobre, trabalhando como um escravo, amarrado à pena como
a um potro de tortura, no meio da indiferença da gente da sua terra e da
exploração de certos livreiros que muito se alimentaram do sangue do escritor.
E
a sua obra fecundíssima, extensíssima, como poucos escritores a terão feito tão
vasta, ressentiu-se por isso e pelo seu temperamento da falta de uniformidade
que tanto se lhe censura.
Mas
talvez se ela houvesse sido elaborada em pleno remanso, com os confortes da
abundância e da opulência a bafejaram-no com uma aragem acalentadora e mole, talvez
ganhasse em uniformidade, mas era provável que perdesse em qualidade.
A
tragédia da vida de Camilo está toda esculpida no mármore raro dos fólios dos
seus livros. Há o sopro da desgraça a fazer brotar dali as lágrimas, há o fel
do desespero a encher de agrura e revolta aqueles caracteres, há o rictus da
gargalhada a estridular naquelas letras e há muitas vezes o acicate da dor ou o
orvalho da resignação a erguer ao céu um hino de piedade.
A
alma portuguesa tem um intérprete maravilhoso naquelas páginas. Porque Camilo é
inteiramente nacional, sem mesclas de estrangeirismos. Educou-se com os nossos
clássicos e aprendeu com o nosso povo e com a natureza de Portugal. Nem sequer
foi ao estrangeiro.
Um
grande escritor é aquele que provoca a simpatia dos seus concidadãos. Podem
verdadeiras ou falsas elites repudiá-lo, que o povo ergue-o na apoteose do seu
louvor. No estrangeiro os sucessos contam-se pela venda nas livrarias. Dickens,
de simples repórter parlamentar, guindou-se à maior popularidade literária que
tem tido a Inglaterra. Ainda hoje os seus romances desafiam a concorrência do
passado e do presente. Assim sucede agora a Camilo, postumamente, pois que
Portugal só depois dos filhos mortos é que os homenageia, é que lhes levanta o
pedestal da sua admiração.
Interpretaste
uma geração, dominaste toda uma época literária, para só agora a 35 anos da tua
morte trágica, remate sangrento de uma epopeia de martírio, reconhecerem o
excelso valor da tua obra, a mais comentada e discutida em Portugal e pensarem
em te erigir um monumento numa terra que os têm dispensado de sobra aos
políticos que quase a têm perdido.
---
ANTÔNIO RUAS
Março de 1925.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).
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