A aventura de Walter Schnaffs
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)
Desde o momento em que entrara na França com o exército invasor Walter Schnaffs considerava-se o mais infeliz dos mortais.
Ele era corpulento, caminhava a custo, arquejava, e doíam-lhe
horrivelmente os pés largos e chatos.
Era pacífico e bonacheirão, de modo nenhum belicoso e sanguinário,
pai de quatro filhos que adorava e marido de uma rapariga loura da qual todas
as noites recordava choroso os beijos, os carinhos, as ternuras.
Gostava de levantar-se tarde e deitar-se cedo, comer bem e
tomar cerveja no botequim.
Além do mais pensava que tudo quanto têm de suave a vida desaparece
com esta e no segredo de seu coração nutria um ódio intenso, profundo, contra
canhões, carabinas, revólveres e espadas, mas em especial contra as baionetas
sentindo-se incapaz de esgrimir com ligeireza aquela arma para defender seu grande
ventre.
E quando vinha a noite e ele estendia-se sobre o solo
enrolado no seu grosso capote junto dos camaradas que roncavam, pensava longamente
nos entes queridos que deixara além, e nos perigos de que estava coalhada a
estrada em que marchavam.
Se ele morresse que seria dos seus filhinhos? Quem lhes daria
de comer? Quem os criaria? Eles nada tinham apesar das dívidas que contraíra
para ao partir deixar-lhes algum dinheiro. E por vezes Walter Schnaffs
chorava...
No início de um combate ele sentia tal fraqueza nas pernas
que de bom grado deixar-se-ia cair ao chão se não fosse o temor de que sobre o
seu corpo passasse todo o exército. O silvo das balas punha-lhe hirtos todos os
pelos do corpo.
Meses e meses vivera ele assim mergulhado no terror e na angústia.
Seu corpo de exército avançava para a Normandia e um dia
Walter Schnaffs foi enviado com um pequeno destacamento para fazer uma
exploração em torno.
Tudo no vasto campo parecia tranquilo; nada fazia suspeitar
uma resistência preparada.
Os prussianos chegavam tranquilos a um pequeno vale cheio de
profundos socalcos quando foram surpreendidos por um violento fogo de fuzilaria
que fez tombar uma vintena deles; e logo um grupo de francos atiradores saindo
de um bosque pouco maior que uma mão aberta atirou-se sobre eles de baionetas
calada.
Walter Schnaffs a princípio imobilizou-se tão surpreso e
confuso que nem pensou em fugir. Depois veio-lhe um desejo enorme de correr;
mais pensando que tinha a velocidade de uma tartaruga ao passo que aqueles franceses
magricelas com três saltos apanhavam um rebanho de cabras, deixou-se cair em um
fosso cheio de folhas secas cujo fundo ele não podia observar tão escuro era.
Passou como uma bala através das lianas e espinheiros bravos
que cresciam nas bordas e que na passagem gratificaram-no com alguns arranhões,
indo cair sobre um leito alastrado de pedras miúdas que lhe magoaram os pés.
Olhando para o alto viu o céu através do espaço que abrira
com o seu corpo nutrido. Por aquele espaço poderia ele ser descoberto; arrastou-se
com infinitas precauções, de gatas, para um canto em que os ramos entrecruzados
nada deixavam ver, e começou de rastos mesmo a afastar-se do lugar do combate.
Depois deitou-se como um coelho medroso, enrodilhando-se,
procurando ocupar o menor espaço possível. Ouviu por algum tempo ainda, gritos,
detonações, lamentos. Depois os clamores enfraqueciam; cessavam por fim.
Voltaram a tranquilidade e a solidão.
De súbito sentiu ele que uma coisa qualquer movia-se perto dele.
Teve um sobressalto. Era um passarinho que numa árvore ao alto fazia caírem as
folhas secas. Por espaço de uma hora o coração de Walter Schnaffs bateu acelerado.
Chegava a noite enchendo o fosso de sombra. E o soldado pôs-se a pensar.
Que faria? Que deveria fazer?
Reunir-se ao exército?
De que maneira?
Por que lugar?
E recomeçaria aquela vida de terrores, de angústias, de
espanto, de fadiga, de sofrimentos que ele suportava desde o princípio da
guerra?
Nunca! Para tal ele não sentia coragem.
Faltar-lhe-ia a necessária coragem, a energia faltar-lhe-ia
para suportar a marcha e afrontar novos perigos.
Mas que fazer então?
Não podia permanecer naquele buraco, escondido até o fim das
hostilidades.
De certo que não podia.
Se não fosse a necessidade de alimentar-se aliás, a
perspectiva não o aterraria demasiado; mas precisava comer, e comer todos os
dias.
E encontrava-se ali, naquele lugar, solitário, armado, de
uniforme, em território inimigo longe daqueles que podiam defendê-lo.
Calafrios frequentes corriam-lhe pelo corpo.
De súbito pensou: E se ficasse prisioneiro? — O coração
tumultuou-lhe àquela ideia. Um desejo violento tomou-o, um desejo imoderado de
constituir-se prisioneiro dos franceses.
Prisioneiro?
Estaria salvo, teria casa, comida; estaria livre das balas e
das espadas, sem medo, em uma boa prisão bem guardada.
Prisioneiro! Que sonho!
E tomou logo uma resolução:
—Vou entregar-me à prisão.
Levantou-se decidido a executar aquele propósito, sem perda
de um momento.
De súbito mobilizou-se assaltado por uma lembrança que
provocou-lhe novos temores.
E a que lugar se dirigiria para entregar-se? De que maneira?
E terríveis imagens, imagens da morte atravessaram-lhe o espírito.
Correria decerto perigos imensos aventurando-se sozinho com o
seu capacete pontiagudo, pelo campo.
E se os camponeses o encontrassem?
Com certeza, vendo um prussiano perdido, um prussiano sem
defesa, trucidá-lo-iam como um cachorro vagabundo; fá-lo-iam em pedaços com os
seus forcados, com as suas foices, com os seus sachos! Reduzi-lo-iam a papas
com o furor próprio dos vencidos.
E se encontrasse os franco-atiradores?
Os franco-atiradores, aquele bando de celerados, sem lei nem
disciplina de certo fuzilá-lo-iam sem dó nem piedade só para passarem uma hora
divertida.
E ele via-se já encostado a um muro, diante de doze
espingardas cujas bocas negras e redondas pareciam mirá-lo fixamente.
E se encontrasse as tropas francesas?
Os soldados da vanguarda tomá-lo-iam por algum explorador,
por qualquer soldado corajoso e audaz que andasse só a fazer algum
reconhecimento, e atirariam contra ele. E chegava a ouvir os disparos dos tiros
dentre as ramas das árvores ao passo que ele cabia para a frente, o rosto no
pó, o corpo feito um crivo pelas balas.
Sentou-se de novo, desesperado.
A situação parecia-lhe gravemente embaraçosa.
A noite caíra de todo, a noite negra e silenciosa.
Ela já nem se movia estremecendo a cada rumor que lhe chegava
ao ouvidos, os rumores misteriosos e leões das trevas.
Um coelho esbarrando em uma silva quase fez fugir Walter Schnaffs.
O cricri dos grilos ecoava-lhe na alma, estridente;
imitando-o.
Ele arregalava o mais que podia seus olhos enormes, buscando
ver na treva, a todo instante imaginava sentir os passos de algum dirigindo-se
para ele.
Depois de algumas horas que lhe pareceram intermináveis e de terríveis
angústias sem fim percebeu através dos ramos que o céu aclarava-se.
Sentiu então um grande conforto; seus membros distenderam-se,
descansados por fim; seu coração pulsou tranquilo; seus olhos cerraram-se; adormeceu.
Quando despertou o sol estava quase no Zênite; devia ser meio-dia.
Nenhum rumor turbava a paz melancólica do campo; Walter Schnaffs
lembrou-se de que estava com uma fome terrível. Bocejava, com água na boca pensando
na salsicha, na magnífica salsicha dos soldados; e tinha terríveis câimbras no
estômago.
Levantou-se, deu alguns passos e sentiu que as suas pernas
fraquejavam. Sentou-se de novo para refletir.
Durante duas ou três horas esteve a pesar os prós e os contras, variando a cada instante de resolução, indecisamente.
Por fim uma ideia pareceu-lhe lógica e prática: aguardar a
passagem de um camponês que estivesse sozinho e sem armas, nem mesmo as de
lavoura, entregar-se entre suas mãos fazendo-lhe compreender que se entregava.
Tirou então o capacete cuja ponta poderia atraiçoá-lo e pôs,
com precauções infinitas a cabeça fora do buraco.
Ninguém no horizonte!
Além, à esquerda, uma aldeota deixa subir para o céu o fumo
de suas chaminés, o fumo de suas cozinhas. À direita viu um grande castelo
flanqueado de torrinhas.
Esperou assim até à noite sofrendo horrivelmente, só atento
aos surdos lamentos de suas vísceras vazias.
E de novo a noite caiu sobre ele.
Estendeu-se no fundo do seu refúgio, e adormeceu com um sono
febril, povoado de sonhos estranhos, o sono do homem esfomeado.
A aurora surgiu de novo sobre sua cabeça.
Pôs-se de novo em observação. O campo estava solitário como
na véspera. E um terror novo tomava-lhe o espírito — o terror de ter de morrer
de fome.
Via-se agora no fundo do buraco de costas, os olhos fechados.
Pouco a pouco animais de toda a sorte aproximavam-se de seu corpo para devorá-lo,
metendo-se por baixo de sua roupa para morder-lhe a pele frigida. E um corvo
enorme procurava furar-lhe os olhos, com o bico afiado.
Ficou quase louco então supondo que a sua fraqueza fá-lo-ia
desmaiar, não o deixaria caminhar.
E preparava-se já para lançar-se a caminho da aldeia,
resolvido a tentar tudo, a desafiar todos os perigos, quando percebeu três camponeses
que caminhavam em sua direção com os forcados às costas; deixou-se cair de novo
no buraco.
Mas quando a tarde começou a obscurecer a planície ele saiu
com lentidão do fosso e pôs-se a caminho curvado, amedrontado, com o coração
palpitante dirigindo-se para o longínquo castelo, preferindo ir para aquele
lado de preferência à aldeia que lhe parecia ao longe um covil de tigres.
As janelas do pavimento térreo do castelo estavam iluminadas.
Uma estava aberta. Um cheiro ativo de carne assada saía por ela, um perfume que
entrou violentamente pelas narinas de Walter Schnaffs que sentiu-se logo
animado por uma desusada coragem.
E imprevistamente, sem mesmo refletir no que fazia, surgiu
com o capacete na cabeça diante da janela iluminada.
Oito criados estavam sentados em torno a uma mesa. De repente
uma aia deu com os olhos nele e ficou de boca aberta, deixando cair o copo que
fez-se em cacos. Os outros espantados seguiram a direção dos olhos dela.
Viram o inimigo.
Grande Deus! Os prussianos assaltavam o castelo!
Foi um grito só, um grito horrível de espanto partido de oito
bocas, depois um tumulto. Levantaram-se todos e as carreiras, empurrando-se uns
aos outros dispararam pelos fundos da sala.
As cadeiras voaram pelos ares; os homens jogavam por terra as
mulheres e pisavam-nas na carreira.
Em menos de dois segundos estava a sala vazia, a mesa coberta
de pratos apetitosos abandonada; diante da janela Walter Schnaffs continuava imóvel,
estupefato...
Depois de alguns momentos de hesitação, saltou a janela e
encaminhou-se para a mesa. Sua fome exasperada fazia-o tremer como um
febricitante. Um receio entretanto paralisava-o ainda. Pôs-se à escuta. Toda a
casa parecia tremer. Portas batiam, passos rápidos faziam-se sentir pelos
corredores. O prussiano, confuso, prestava atenção a todos aqueles rumores.
Ouviu por fim baques surdos como de corpos que caem sobre terra mole ao pé dos
muros.
Cessaram todos os rumores, e o grande castelo ficou silencioso
como um túmulo.
Walter Schnaffs sentou-se diante de um prato que nem iniciado
fora e pôs-e a comer. Comia em grandes bocados como se temesse ser
interrompido, antes de ter podido encher-se bastante. Empurrava com os dedos os
pedaços para o fundo da goela, a boca aberta mostrando os largos dentes
vorazes. Os bocados desciam-lhe pelas goelas e iam sem interrupção ter ao estômago,
inchando o pescoço na passagem. Parava por vezes para não rebentar como um tubo
cheio em demasia. E tomava então a garrafa de cidra e despejava-a pelo esôfago
como para lavar um cano obstruído.
Esvaziou todos os pratos, esgotou todas as garrafas; depois
saturado de líquido fermentado e dos alimentos, embrutecido, preso de soluços, o espírito perturbado e a boca
engordurada, desabotoou o uniforme para respirar; incapaz de dar um só passo.
Os olhos cerravam-se-lhe, as suas ideias embaralhavam-se.
Apoiou a cabeça pesada nos braços cruzados sobre a mesa e suavemente perdeu a
noção das coisas e dos fatos.
***
O arco lunar aclarava vagamente as árvores do parque à altura
do horizonte. Era a hora fria que precede o levantar do dia.
Numerosas sombras esgueiravam-se silenciosa, por entre as árvores.
Por vezes um raio de luar fazia cintilar urra lâmina de aço.
O castelo, tranquilo, ostentava recortado entre o céu o
perfil enegrecido. Só duas Janelas no pavimento térreo continuavam iluminadas.
De súbito uma voz tonante trovejou:
— Avante! Ao assalto, rapazes!
Em um átomo as portas, as ancilas voaram feitas em pedaços diante
de uma onda humana que invadia a casa.
Cinquenta soldados, armados até os dentes, irromperam na cozinha
onde Walter Schnaffs dormia tranquilamente e apoiando-lhe ao peito cinquenta
carabinas carregadas, atiraram-no ao chão, agarraram-no de pés e mãos.
Ele arquejava aturdido, embrutecido, mal desperto pelas
pancadas, doido de pavor.
Um militar corpulento todo cheio de galões dourados pôs-lhe o
pé sobre a barriga gritando.
— És meu prisioneiro!
Rende-te!
O prussiano só compreendeu a palavra prisioneiro e gemeu: — ya, ya, ya!
Levantaram-no, amarraram-no a uma cadeira e foi então
examinado curiosamente pelos seus vencedores que resfolegavam corno baleias.
Muitos mesmos, devido a emoção e à fadiga, sentaram-se.
Ele sorria agora, certo de estar finalmente prisioneiro.
Entrou um outro oficial e disse:
— Coronel, os inimigos fugiram. Parece que muitos foram
feridos.
Ficamos senhores da posição. O gordo militar enxugou a fronte
suarenta e bradou:
— Vitória!
E escreveu sobre uma pequena agenda comercial que tirou da
algibeira: "Depois de uma luta encarniçada os prussianos foram obrigados a
bater em retirada levando consigo modos e feridos; calcula-se que cinquenta
homens ficaram fora de combate. Vários ficaram prisioneiros".
O oficial mais moço perguntou:
— Que devemos fazer agora, coronel?
O coronel respondeu:
— Agora devemos retirar-nos para evitar que o inimigo volte a
atacar-nos com artilharia e forças superiores.
E deu a ordem de partida.
A coluna formou de novo à sombra dos muros do castelo e pôs-se
em marcha levando ao centro Walter Schnaffs de mãos amarradas e contido em respeito
por seis guerreiros de revólveres engatilhados.
Adiante marchavam alguns soldados explorando o terreno.
Adiantaram-se com prudência, fazendo alto de quando em quando. Quando despontou
o dia chegou à comuna de La Roche Dysel cuja guarda nacional fora a autora do
brilhante feito de armas.
A população ansiosa e super-excitada esperava. Quando viram o
capacete do prisioneiro estalaram formidáveis clamores. As mulheres levantavam
os braços ao céu; as velhas choravam, um velho lançou um tamanco contra o
prisioneiro ferindo no nariz um dos guardas.
O coronel berrava:
— Cuidado com o prisioneiro!
Chegavam por fim à casa da câmara. Abriram a prisão e meteram
nela Walter Schnaffs tirando-lhe as cordas.
Duzentos homens armados montaram guarda em torno da prisão.
Então, apesar dos sintomas de indigestão que o atormentavam havia alguns
momentos o prussiano, doido de alegria pôs-se a dançar, a dançar perdidamente,
levantando os braços e as pernas, dando risadas frenéticas até cair esgotado ao
pé de Estava prisioneiro!
Estava salvo! uma parede.
Foi assim que o castelo de Champiquet foi retomado ao inimigo
depois de seis horas de ocupação.
O coronel Ratier, negociante de fazendas, que comandou aquela ação a frente da guarda nacional de La Roche Dysel foi condecorado.
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