11/08/2020

A aventura de Walter Schnaffs (Conto), de Guy de Maupassant

 


A aventura de Walter Schnaffs

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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Desde o momento em que entrara na França com o exército invasor Walter Schnaffs considerava-se o mais infeliz dos mortais.

Ele era corpulento, caminhava a custo, arquejava, e doíam-lhe horrivelmente os pés largos e chatos.

Era pacífico e bonacheirão, de modo nenhum belicoso e sanguinário, pai de quatro filhos que adorava e marido de uma rapariga loura da qual todas as noites recordava choroso os beijos, os carinhos, as ternuras.

Gostava de levantar-se tarde e deitar-se cedo, comer bem e tomar cerveja no botequim.

Além do mais pensava que tudo quanto têm de suave a vida desaparece com esta e no segredo de seu coração nutria um ódio intenso, profundo, contra canhões, carabinas, revólveres e espadas, mas em especial contra as baionetas sentindo-se incapaz de esgrimir com ligeireza aquela arma para defender seu grande ventre.

E quando vinha a noite e ele estendia-se sobre o solo enrolado no seu grosso capote junto dos camaradas que roncavam, pensava longamente nos entes queridos que deixara além, e nos perigos de que estava coalhada a estrada em que marchavam.

Se ele morresse que seria dos seus filhinhos? Quem lhes daria de comer? Quem os criaria? Eles nada tinham apesar das dívidas que contraíra para ao partir deixar-lhes algum dinheiro. E por vezes Walter Schnaffs chorava...

No início de um combate ele sentia tal fraqueza nas pernas que de bom grado deixar-se-ia cair ao chão se não fosse o temor de que sobre o seu corpo passasse todo o exército. O silvo das balas punha-lhe hirtos todos os pelos do corpo.

Meses e meses vivera ele assim mergulhado no terror e na angústia.

Seu corpo de exército avançava para a Normandia e um dia Walter Schnaffs foi enviado com um pequeno destacamento para fazer uma exploração em torno.

Tudo no vasto campo parecia tranquilo; nada fazia suspeitar uma resistência preparada.

Os prussianos chegavam tranquilos a um pequeno vale cheio de profundos socalcos quando foram surpreendidos por um violento fogo de fuzilaria que fez tombar uma vintena deles; e logo um grupo de francos atiradores saindo de um bosque pouco maior que uma mão aberta atirou-se sobre eles de baionetas calada.

Walter Schnaffs a princípio imobilizou-se tão surpreso e confuso que nem pensou em fugir. Depois veio-lhe um desejo enorme de correr; mais pensando que tinha a velocidade de uma tartaruga ao passo que aqueles franceses magricelas com três saltos apanhavam um rebanho de cabras, deixou-se cair em um fosso cheio de folhas secas cujo fundo ele não podia observar tão escuro era.

Passou como uma bala através das lianas e espinheiros bravos que cresciam nas bordas e que na passagem gratificaram-no com alguns arranhões, indo cair sobre um leito alastrado de pedras miúdas que lhe magoaram os pés.

Olhando para o alto viu o céu através do espaço que abrira com o seu corpo nutrido. Por aquele espaço poderia ele ser descoberto; arrastou-se com infinitas precauções, de gatas, para um canto em que os ramos entrecruzados nada deixavam ver, e começou de rastos mesmo a afastar-se do lugar do combate.

Depois deitou-se como um coelho medroso, enrodilhando-se, procurando ocupar o menor espaço possível. Ouviu por algum tempo ainda, gritos, detonações, lamentos. Depois os clamores enfraqueciam; cessavam por fim. Voltaram a tranquilidade e a solidão.

De súbito sentiu ele que uma coisa qualquer movia-se perto dele. Teve um sobressalto. Era um passarinho que numa árvore ao alto fazia caírem as folhas secas. Por espaço de uma hora o coração de Walter Schnaffs bateu acelerado. Chegava a noite enchendo o fosso de sombra. E o soldado pôs-se a pensar.

Que faria? Que deveria fazer?

Reunir-se ao exército?

De que maneira?

Por que lugar?

E recomeçaria aquela vida de terrores, de angústias, de espanto, de fadiga, de sofrimentos que ele suportava desde o princípio da guerra?

Nunca! Para tal ele não sentia coragem.

Faltar-lhe-ia a necessária coragem, a energia faltar-lhe-ia para suportar a marcha e afrontar novos perigos.

Mas que fazer então?

Não podia permanecer naquele buraco, escondido até o fim das hostilidades.

De certo que não podia.

Se não fosse a necessidade de alimentar-se aliás, a perspectiva não o aterraria demasiado; mas precisava comer, e comer todos os dias.

E encontrava-se ali, naquele lugar, solitário, armado, de uniforme, em território inimigo longe daqueles que podiam defendê-lo.

Calafrios frequentes corriam-lhe pelo corpo.

De súbito pensou: E se ficasse prisioneiro? — O coração tumultuou-lhe àquela ideia. Um desejo violento tomou-o, um desejo imoderado de constituir-se prisioneiro dos franceses.

Prisioneiro?

Estaria salvo, teria casa, comida; estaria livre das balas e das espadas, sem medo, em uma boa prisão bem guardada.

Prisioneiro! Que sonho!

E tomou logo uma resolução:

—Vou entregar-me à prisão.

Levantou-se decidido a executar aquele propósito, sem perda de um momento.

De súbito mobilizou-se assaltado por uma lembrança que provocou-lhe novos temores.

E a que lugar se dirigiria para entregar-se? De que maneira? E terríveis imagens, imagens da morte atravessaram-lhe o espírito.

Correria decerto perigos imensos aventurando-se sozinho com o seu capacete pontiagudo, pelo campo.

E se os camponeses o encontrassem?

Com certeza, vendo um prussiano perdido, um prussiano sem defesa, trucidá-lo-iam como um cachorro vagabundo; fá-lo-iam em pedaços com os seus forcados, com as suas foices, com os seus sachos! Reduzi-lo-iam a papas com o furor próprio dos vencidos.

E se encontrasse os franco-atiradores?

Os franco-atiradores, aquele bando de celerados, sem lei nem disciplina de certo fuzilá-lo-iam sem dó nem piedade só para passarem uma hora divertida.

E ele via-se já encostado a um muro, diante de doze espingardas cujas bocas negras e redondas pareciam mirá-lo fixamente.

E se encontrasse as tropas francesas?

Os soldados da vanguarda tomá-lo-iam por algum explorador, por qualquer soldado corajoso e audaz que andasse só a fazer algum reconhecimento, e atirariam contra ele. E chegava a ouvir os disparos dos tiros dentre as ramas das árvores ao passo que ele cabia para a frente, o rosto no pó, o corpo feito um crivo pelas balas.

Sentou-se de novo, desesperado.

A situação parecia-lhe gravemente embaraçosa.

A noite caíra de todo, a noite negra e silenciosa.

Ela já nem se movia estremecendo a cada rumor que lhe chegava ao ouvidos, os rumores misteriosos e leões das trevas.

Um coelho esbarrando em uma silva quase fez fugir Walter Schnaffs.

O cricri dos grilos ecoava-lhe na alma, estridente; imitando-o.

Ele arregalava o mais que podia seus olhos enormes, buscando ver na treva, a todo instante imaginava sentir os passos de algum dirigindo-se para ele.

Depois de algumas horas que lhe pareceram intermináveis e de terríveis angústias sem fim percebeu através dos ramos que o céu aclarava-se.

Sentiu então um grande conforto; seus membros distenderam-se, descansados por fim; seu coração pulsou tranquilo; seus olhos cerraram-se; adormeceu.

Quando despertou o sol estava quase no Zênite; devia ser meio-dia.

Nenhum rumor turbava a paz melancólica do campo; Walter Schnaffs lembrou-se de que estava com uma fome terrível. Bocejava, com água na boca pensando na salsicha, na magnífica salsicha dos soldados; e tinha terríveis câimbras no estômago.

Levantou-se, deu alguns passos e sentiu que as suas pernas fraquejavam. Sentou-se de novo para refletir.

Durante duas ou três horas esteve a pesar os prós e os contras, variando a cada instante de resolução, indecisamente.

Por fim uma ideia pareceu-lhe lógica e prática: aguardar a passagem de um camponês que estivesse sozinho e sem armas, nem mesmo as de lavoura, entregar-se entre suas mãos fazendo-lhe compreender que se entregava.

Tirou então o capacete cuja ponta poderia atraiçoá-lo e pôs, com precauções infinitas a cabeça fora do buraco.

Ninguém no horizonte!

Além, à esquerda, uma aldeota deixa subir para o céu o fumo de suas chaminés, o fumo de suas cozinhas. À direita viu um grande castelo flanqueado de torrinhas.

Esperou assim até à noite sofrendo horrivelmente, só atento aos surdos lamentos de suas vísceras vazias.

E de novo a noite caiu sobre ele.

Estendeu-se no fundo do seu refúgio, e adormeceu com um sono febril, povoado de sonhos estranhos, o sono do homem esfomeado.

A aurora surgiu de novo sobre sua cabeça.

Pôs-se de novo em observação. O campo estava solitário como na véspera. E um terror novo tomava-lhe o espírito — o terror de ter de morrer de fome.

Via-se agora no fundo do buraco de costas, os olhos fechados. Pouco a pouco animais de toda a sorte aproximavam-se de seu corpo para devorá-lo, metendo-se por baixo de sua roupa para morder-lhe a pele frigida. E um corvo enorme procurava furar-lhe os olhos, com o bico afiado.

Ficou quase louco então supondo que a sua fraqueza fá-lo-ia desmaiar, não o deixaria caminhar.

E preparava-se já para lançar-se a caminho da aldeia, resolvido a tentar tudo, a desafiar todos os perigos, quando percebeu três camponeses que caminhavam em sua direção com os forcados às costas; deixou-se cair de novo no buraco.

Mas quando a tarde começou a obscurecer a planície ele saiu com lentidão do fosso e pôs-se a caminho curvado, amedrontado, com o coração palpitante dirigindo-se para o longínquo castelo, preferindo ir para aquele lado de preferência à aldeia que lhe parecia ao longe um covil de tigres.

As janelas do pavimento térreo do castelo estavam iluminadas. Uma estava aberta. Um cheiro ativo de carne assada saía por ela, um perfume que entrou violentamente pelas narinas de Walter Schnaffs que sentiu-se logo animado por uma desusada coragem.

E imprevistamente, sem mesmo refletir no que fazia, surgiu com o capacete na cabeça diante da janela iluminada.

Oito criados estavam sentados em torno a uma mesa. De repente uma aia deu com os olhos nele e ficou de boca aberta, deixando cair o copo que fez-se em cacos. Os outros espantados seguiram a direção dos olhos dela.

Viram o inimigo.

Grande Deus! Os prussianos assaltavam o castelo!

Foi um grito só, um grito horrível de espanto partido de oito bocas, depois um tumulto. Levantaram-se todos e as carreiras, empurrando-se uns aos outros dispararam pelos fundos da sala.

As cadeiras voaram pelos ares; os homens jogavam por terra as mulheres e pisavam-nas na carreira.

Em menos de dois segundos estava a sala vazia, a mesa coberta de pratos apetitosos abandonada; diante da janela Walter Schnaffs continuava imóvel, estupefato...

Depois de alguns momentos de hesitação, saltou a janela e encaminhou-se para a mesa. Sua fome exasperada fazia-o tremer como um febricitante. Um receio entretanto paralisava-o ainda. Pôs-se à escuta. Toda a casa parecia tremer. Portas batiam, passos rápidos faziam-se sentir pelos corredores. O prussiano, confuso, prestava atenção a todos aqueles rumores. Ouviu por fim baques surdos como de corpos que caem sobre terra mole ao pé dos muros.

Cessaram todos os rumores, e o grande castelo ficou silencioso como um túmulo.

Walter Schnaffs sentou-se diante de um prato que nem iniciado fora e pôs-e a comer. Comia em grandes bocados como se temesse ser interrompido, antes de ter podido encher-se bastante. Empurrava com os dedos os pedaços para o fundo da goela, a boca aberta mostrando os largos dentes vorazes. Os bocados desciam-lhe pelas goelas e iam sem interrupção ter ao estômago, inchando o pescoço na passagem. Parava por vezes para não rebentar como um tubo cheio em demasia. E tomava então a garrafa de cidra e despejava-a pelo esôfago como para lavar um cano obstruído.

Esvaziou todos os pratos, esgotou todas as garrafas; depois saturado de líquido fermentado e dos alimentos, embrutecido, preso de soluços, o espírito perturbado e a boca engordurada, desabotoou o uniforme para respirar; incapaz de dar um só passo.

Os olhos cerravam-se-lhe, as suas ideias embaralhavam-se. Apoiou a cabeça pesada nos braços cruzados sobre a mesa e suavemente perdeu a noção das coisas e dos fatos.

***

O arco lunar aclarava vagamente as árvores do parque à altura do horizonte. Era a hora fria que precede o levantar do dia.

Numerosas sombras esgueiravam-se silenciosa, por entre as árvores.

Por vezes um raio de luar fazia cintilar urra lâmina de aço.

O castelo, tranquilo, ostentava recortado entre o céu o perfil enegrecido. Só duas Janelas no pavimento térreo continuavam iluminadas.

De súbito uma voz tonante trovejou:

— Avante! Ao assalto, rapazes!

Em um átomo as portas, as ancilas voaram feitas em pedaços diante de uma onda humana que invadia a casa.

Cinquenta soldados, armados até os dentes, irromperam na cozinha onde Walter Schnaffs dormia tranquilamente e apoiando-lhe ao peito cinquenta carabinas carregadas, atiraram-no ao chão, agarraram-no de pés e mãos.

Ele arquejava aturdido, embrutecido, mal desperto pelas pancadas, doido de pavor.

Um militar corpulento todo cheio de galões dourados pôs-lhe o pé sobre a barriga gritando.

 És meu prisioneiro! Rende-te!

O prussiano só compreendeu a palavra prisioneiro e gemeu: — ya, ya, ya!

Levantaram-no, amarraram-no a uma cadeira e foi então examinado curiosamente pelos seus vencedores que resfolegavam corno baleias. Muitos mesmos, devido a emoção e à fadiga, sentaram-se.

Ele sorria agora, certo de estar finalmente prisioneiro.

Entrou um outro oficial e disse:

— Coronel, os inimigos fugiram. Parece que muitos foram feridos.

Ficamos senhores da posição. O gordo militar enxugou a fronte suarenta e bradou:

 Vitória!

E escreveu sobre uma pequena agenda comercial que tirou da algibeira: "Depois de uma luta encarniçada os prussianos foram obrigados a bater em retirada levando consigo modos e feridos; calcula-se que cinquenta homens ficaram fora de combate. Vários ficaram prisioneiros".

O oficial mais moço perguntou:

— Que devemos fazer agora, coronel?

O coronel respondeu:

— Agora devemos retirar-nos para evitar que o inimigo volte a atacar-nos com artilharia e forças superiores.

E deu a ordem de partida.

A coluna formou de novo à sombra dos muros do castelo e pôs-se em marcha levando ao centro Walter Schnaffs de mãos amarradas e contido em respeito por seis guerreiros de revólveres engatilhados.

Adiante marchavam alguns soldados explorando o terreno. Adiantaram-se com prudência, fazendo alto de quando em quando. Quando despontou o dia chegou à comuna de La Roche Dysel cuja guarda nacional fora a autora do brilhante feito de armas.

A população ansiosa e super-excitada esperava. Quando viram o capacete do prisioneiro estalaram formidáveis clamores. As mulheres levantavam os braços ao céu; as velhas choravam, um velho lançou um tamanco contra o prisioneiro ferindo no nariz um dos guardas.

O coronel berrava:

— Cuidado com o prisioneiro!

Chegavam por fim à casa da câmara. Abriram a prisão e meteram nela Walter Schnaffs tirando-lhe as cordas.

Duzentos homens armados montaram guarda em torno da prisão. Então, apesar dos sintomas de indigestão que o atormentavam havia alguns momentos o prussiano, doido de alegria pôs-se a dançar, a dançar perdidamente, levantando os braços e as pernas, dando risadas frenéticas até cair esgotado ao pé de Estava prisioneiro!

Estava salvo! uma parede.

Foi assim que o castelo de Champiquet foi retomado ao inimigo depois de seis horas de ocupação.

O coronel Ratier, negociante de fazendas, que comandou aquela ação a frente da guarda nacional de La Roche Dysel foi condecorado.

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