11/07/2020

A felicidade (Conto), de Guy de Maupassant

 

A felicidade

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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 Era à hora do chá, antes do acender das luzes.

A cidade dominava o mar; o sol, que desaparecera, deixara após si o céu todo de cor de rosa laminada a ouro; e o Mediterrâneo, sem uma ruga, sem um arrepio, liso, reluzente ainda por efeito do sol poente, parecia uma placa de metal polido e de um tamanho desmedido.

Ao longe, para a direita, as montanhas rendilhadas desenhavam-se com o seu perfil negro sobre a púrpura desmaiada do ocaso.

Falava-se do amor, discutia-se esse velho tema, repetia-se coisas já reditas muitas vezes. A melancolia calma do crepúsculo amaciava as palavras, fazia flutuar a ternura nas almas, e esta palavra "amor", que sem cessar subia ao foco da conversação era pronunciada ora por uma voz forte de homem, ora por uma voz de mulher de timbre delicado, parecendo encher a pequena sala, voltear como uma ave e pairar como um espírito. Poder-se-á amar muitos anos sem cansaço?

— Sim —  pretendiam uns.

— Não — afirmavam outras.

Distinguiam-se casos, estabeleciam-se confrontos, citavam-se exemplos; e todos, homens e mulheres, cheios de recordações que surgiam perturbadoras, que não podiam citar e que lhes vinham aos lábios, pareciam comovidos, falando desta coisa banal e soberana, o acordo terno e misterioso de dois seres, com uma emoção profunda e um interesse ardente.

Mas de repente alguém, tendo os olhos fitos nas distâncias, exclamou:

— Oh! veem, lá ao longe, o que é aquilo?

Sobre o mar, no fundo do horizonte, surgia uma mole bruma, enorme e vaga.

As mulheres tinham-se levantado e olhavam sem compreender que coisa surpreendente era aquela que nunca até ali haviam visto. Alguém disse:

— É a Córsega! Vê-se assim duas ou três vezes no ano, em certas condições atmosféricas especiais, quando ar de uma limpidez perfeita a não oculta por esses nevoeiros de vapor d'água que ficam sempre distantes.

Distinguiam vagamente as elevações, julgavam reconhecer a neve dos cumes. E toda a gente ficava surpreendida, perturbada, meio assustada por aquela rápida aparição de um mundo, aquele espectro saído do mar. Talvez que tivessem daquelas visões estranhas, aqueles que partiram, como Colombo, através dos oceanos inexplorados.

Então um sujeito já idoso, que até então estivera calado, disse:

— Ora aí têm! Conheci naquela ilha, que se levanta na nossa frente, como se ela mesma quisesse responder ao que há pouco dizíamos e relembrar-me uma singular lembrança, conheci naquela ilha um exemplo admirável de amor constante, de um amor inverossimilmente feliz. Foi o seguinte.

Fiz, já lá vão cinco anos, uma viagem à Córsega. Essa ilha selvagem, é mais desconhecida de nós e está para nós mais distante que a América, muito embora seja algumas vezes percebida das costas de França, como hoje acontece.

Imagine-se um mundo ainda em caos, uma tempestade de montanhas que separam ravinas estreitas por onde rolam torrentes; nem uma planície, mas imensas vagas de granito e gigantescas ondulações de terra, cobertas de mato ou de altas florestas de castanheiros e pinheiros. É um solo virgem, inculto, ermo, muito embora por vezes se vislumbre uma aldeia que mais parece uma pilha de rochas no alto de um monte. Nada de cultura, nada de indústria, nada de arte.

Não se encontra ali um pedaço de pão trabalhado, um pedaço de pedra esculpida, nunca ali se viu a recordação infantil ou requintada dos antepassados pelas coisas graciosas e belas.

É isso mesmo o que mais ressalta aos olhos naquela soberba e áspera região: a indiferença hereditária por essa conquista das formas sedutoras que se chama a arte.

A Itália, onde cada palácio, cheio de primores de arte, é em si mesmo também um primor de arte, onde o mármore, a madeira, o bronze, o ferro, os metais e as pedras atestam o gênio do homem, onde os mais pequenos objetos antigos que se arrastam nas velhas moradas e revelam esse divino cuidado da graça, é para todos nós a pátria sagrada que amamos porque nos mostra e prova o esforço, a grandeza, o poder e o triunfo da inteligência criadora.

E, em frente dela, a Córsega selvagem, ficou tal como nos primeiros dias. O homem vive ali na sua casa grosseira, indiferente a tudo o que não diga respeito à sua existência, até mesmo às questões de família. E conserva os defeitos e as qualidades das raças bárbaras, violento, odiento sanguinário com inconsciência, mas também hospitaleiro, generoso, dedicado, ingênuo, abrindo a sua porta a quem passa e dando a amizade leal em troca da menor demonstração de simpatia.

Havia um mês que eu errava através daquela magnífica ilha com a sensação de que me achava no fim do mundo. Ali não há estalagens, nem botequins, nem caminhos. Chega-se por veredas de cabras àquelas aldeias de cabras que se agarram nos flancos das montanhas, que dominam os abismos tortuosos de onde se ouve subir, à noite, o ruído contínuo, a voz surda e profunda da torrente.

Bate-se à porta das casas. Pede-se pousada para uma noite e comida até à manhã seguinte. E sentam-se os que podem à humilde mesa, e dormem sob o humilde teto; e na manhã seguinte aperta-se a mão que nos estende o hóspede que nos conduz até ao termo da aldeia.

Ora, uma noite, depois de dez horas de marcha, cheguei a uma pequena morada completamente solitária no fundo de um estreito vale que ia lançar-se no mar uma légua mais longe. Os dois declives abruptos da montanha, cobertos de maquis, uma vegetação especial da Córsega, de rochas esboroadas e de grandes árvores, fechavam como duas sóbrias muralhas aquela ravina lastimavelmente triste.

Em roda da cabana, alguns vinhedos, um pequeno jardim, e mais distante, alguns castanheiros grandes, coisas com que se vivem enfim, uma fortuna para o possuidor, se atendermos à pobreza da região.

A mulher que me recebeu era velha, severa e limpa, por exceção. O dono da casa, sentado numa cadeira de palha, levantou-se para me saudar, depois tornou a sentar-se sem dizer palavra. A sua companheira disse-me:

— Desculpe-o, está já surdo. Tem oitenta e dois anos.

Ela falava o francês de França. Fiquei surpreendido. Perguntei -lhe:

— A senhora é corsa. Ela respondeu:

— Não; nós somos continentais. Mas há já cinquenta anos que vivemos aqui.

Uma sensação de angústia e de medo me tomou ao pensamento daqueles cinquenta anos passados num buraco sombrio, tão longe das cidades onde se agitam os homens. Um velho pastor entrou, e pusemo-nos a comer o único prato do jantar, uma sopa de caldo grosso em que haviam cosido juntamente batatas, toucinho e couves.

Quando a sóbria refeição terminou, eu ia sentar-me diante da porta, com o coração apertado pela melancolia da enfadonha paisagem, empolgado por essa mágoa que surpreende muitas vezes os viajantes em certas tardes tristes e em certos lugares desolados. Parece-nos então que tudo está prestes a acabar, a existência, o universo. Percebe-se bruscamente a horrorosa miséria da vida, o isolamento de todos, o nada de todas as coisas, e a negra solidão do coração que se embala e se engana a si próprio com sonhos até à morte.

A velha achegou-se a mim e, torturada por essa curiosidade que vive sempre no fundo das almas, mesmo as mais resignadas:

— Com que então o senhor vem de França? — disse-me.

— Sim, senhora, viajo para me distrair.

— É de Paris, naturalmente.

— Não, sou de Nancy.

Pareceu-me que uma comoção extraordinária a agitava. Como é que eu vi ou antes pressenti isso é o que não sei dizer. Ela repetiu em voz pausada:

— É então de Nancy?

O homem apareceu à porta, impassível como todos os surdos.

Ela tornou:

— Não faz mal. Ele não ouve.

Depois, ao fim de alguns segundos:

— Então deve conhecer muita gente em Nancy?

— Decerto, quase toda a gente.

— Conhece a família de Sainte-Allaizes?

— Se conheço! como as minhas mãos; eram amigos de meu pai.

— Como se chama o senhor?

Disse-lhe o meu nome. Ela olhou para mim fixamente, depois, disse, com essa voz baixa que despertam as recordações:

— Sim, sim, bem me lembro. E os Brisemare, que é feito deles?

— Morreram já todos.

— Ah! E os Sirmont, conhece-os?

— Sim, o último que sobrevive é general.

Então ela disse, fremente de comoção, de angústia, e não sei de que sentimento confuso, poderoso e sagrado, de não sei que necessidade impreterível de confessar, de dizer tudo, de falar daquelas coisas que até ali tivera guardadas no fundo do coração, e daquelas pessoas cujos nomes lhes alvoroçavam a alma:

— Sim, Henriques Sirmont. Bem sei. É meu irmão. E eu levantei os olhos para ela, espantado de surpresa. E de salto lembrei-me.

Tratava-se de algo que fizera outrora um grande escândalo na nobre Lorena. Uma jovem, bela e rica, Susana de Sirmont, fora raptada por um sargento de cavalaria de um regimento que seu pai comandava.

Era um bonito rapaz, filho de lavradores, mas vestindo bem a sua farda azul, o soldado que seduzira a filha do seu coronel. Ela vira-o, notara-o, amara-o sem dúvida na ocasião em que via desfilar os esquadrões. Mas como lhe falara ela, como tinham podido ver-se, ouvir-se? como ousara ela fazer-lhe compreender que o amava? Isso foi o que nunca se soube.

Nada sobre o assunto se adivinhara nem pressentira. Uma noite, como o soldado tivesse já acabado de cumprir o seu tempo, desapareceu com ela. Procuraram-nos mas não os encontraram. Nunca mais tiveram novidades deles e consideravam-na já como morta.

E eu encontrava-a assim naquele sinistro vale.

Então disse por minha vez:

— Sim, bem me lembro. É a menina Susana.

Ela fez que "sim" com a cabeça. As lágrimas caíram-lhe dos olhos. Então, mostrando-me com um olhar o velho imóvel no limiar do casebre, ela disse-me:

— É ele. E eu compreendi que ela o continuava a amar, que o via ainda com os olhos seduzidos.

Perguntei:

— Tem ao menos sido feliz com ele?

Ela respondeu, com uma voz que lhe vinha do coração:

— Oh! sim, felicíssima. Ele fez-me inteiramente feliz. De nada tenho que me arrepender.

Eu contemplei-a com tristeza, surpreendido, maravilhado com o poder daquele amor! Aquela mulher rica seguira aquele homem pobre, aquele camponês. Ela própria tornara-se uma camponesa. Ela tinha-se afeito aquela vida sem encantos, sem luxo, sem delicadezas de nenhuma espécie, tinha-se acomodado aqueles hábitos simples. E amava-o ainda.

Tornara-se uma mulher rústica, usando touca campesina, saia de lã. Comia num prato de barro, sobre uma mesa de pau grosseira, sentada numa cadeira de tábua, uma sopa de caldo de couves e batatas com toucinho. Dormia sobre uma cama velha a seu lado.

Nunca mais pensara em nada a não ser nele!

Não lamentava nem os adornos, nem os estofados, nem as elegâncias, nem as fofas cadeiras, nem a tepidez perfumada dos quartos forrados de tapeçaria, nem a doçura dos colchões de penas onde se mergulha o corpo para o repouso. De nada mais precisava que não fosse ele; contanto que ele ali estivesse, ela mais nada queria.

Abandonara a vida, completamente jovem, abandonara o mundo, e os que a tinham criado, amado. E viera, a sós com ele, ali naquele vale selvagem. E ele fora tudo para ela, tudo quanto se sonha e sem cessar se espera, tudo o que infinitamente se almeja. Ele enchera-lhe de ventura a existência, de um a outro extremo.

Ela própria dizia que não poderia ser mais feliz.

Em toda a noite, eu, escutando a respiração rouca do velho soldado estendido no seu catre, ao lado daquela que o seguira para tão longe, pensava naquela estranha e simples aventura tão completa, feita de tão pouca coisa. E parti quando o sol nasceu, depois de ter apertado a mão aos dois velhos esposos.

***

O narrador calou-se. Uma das senhoras disse:

— Não importa. Ela tinha um ideal muito banal, necessidades muito primitivas e exigências muito simples. Devia ser estúpida com certeza.

Uma outra disse em voz pausada:

— Que importa! foi feliz.

E lá ao longe, ao fundo do horizonte, a Córsega enterrava-se na noite, entrava lentamente no mar, apagava a sua grande sombra que aparecera como para vir contar a história dos dois humildes amantes que em sua orla abrigava.

3 comentários:

  1. ola eu sou o feiteira e sou um pokemon

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  2. eu escolho o feiteiraaaaaaaaa
    pokemon lutarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

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  3. sou o mais lendario dos lendarios

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