10/15/2022

O casamento da Emília (Conto), de Monteiro Lobato



 O CASAMENTO DA EMÍLIA

Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor. 

Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias. 

Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante. 

– Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? – e saiu. 

Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá. 

– Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando um pontapé no noivo. 

Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul. 

Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências. 

– Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição. 

– Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, os Visconde de Sabugosa. 

– Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada. 

– O senhor Vidro Azul coçou o gargalo. 

– Sim, mas… 

– Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido. 

O representante do noivo suspirou. 

– Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente… 

Emília deu uma risada. 

– Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre “lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas. 

O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar. 

– Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque… 

– Uma lata d’água, diga logo! – completou Emília mordendo os beiços. 

Narizinho interveio, repreensiva.

– Você esta aqui para noivar, Emília, para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá, hein? 

E dirigindo ao representante: 

– O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha? 

– Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles. 

E recitou: 

Pirulito que bate bate,
Pirulito que já bateu,
Quem adora o Marquês é ela.
Quem adora Emília sou eu. 

– Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos esses versos! O Marquês é um grande poeta!… 

Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha. 

– O verso esta todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão! 

Narizinho bateu o pé e franziu a testa. 

– Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu? 

Depois, voltando-se para o representante: 

– Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade? 

O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não. 

Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se despediam. 

Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta: 

– Este noivado esta me acabando com a vida, vovó. Todas as noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!… 

– Mas que é que esta faltando para o casamento, menina? 

– Os doces, vovó… 

– Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces. 

Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão. 

Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em quase todos os convidados ia comer de mentira. 

Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas. 

Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do Pica-pau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca. 

Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada. 

Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer. 

Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma. 

Terminada a festa. Narizinho disse: 

– E agora, Pedrinho? 

– Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias. 

Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente – nhoc! Deu um bote na mais bonita. 

– Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina. 

Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho… 

– Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!… 

Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada. 

Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. Os gênios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia consolar-se do logro que levara. 

Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre. 

– Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa. – Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí… 

Narizinho dava-lhe esperanças. 

– Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.

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