11/28/2022

A morte do estadista (Conto), de Coelho Neto

 

A MORTE DO ESTADISTA 

Não há morte que mais comova do que a do guerreiro; basta que a notícia circule para que a multidão se levante empolgada pelo entusiasmo e deplore, com verdadeiro sentimento, a perda do herói; mas o que a agita e abala não é propriamente a queda do vingador intrépido da Pátria mas a série de circunstâncias, o conjunto épico que a torna extraordinária. 

Imagina-se o momento, compõe-se a rapsódia, à guisa das de Homero, concorrendo cada imaginação com o seu subsídio: “ei-lo soberbo, sofreando o ginete ardego que escarva o solo, à frente dos exércitos estendidos em linha de batalha. 

“Ao sol que sobe, claro e quente, rebrilham as línguas agudas das baionetas, fulgem os canhões, cintilam os metais das fardas. As bandeiras desfraldadas palpitam ansiosamente como aves batendo as azas em ensaios de voos; relincham os corcéis, vibram os clarins estrídulos e ele olha firme, com a espada a flamejar no punho, atento aos passos do inimigo. 

“Súbito, ao longe, dentre as ervas, um golfão de fumo nítido arremete, outro, mais outro — atroa o pávido silêncio, turva-se o espaço luminoso. Estraleja e ronca a metralhada rasgando os ares, detonam bombas, crepita a fuzilaria e, de um lado e de outro, o incêndio cresce, o armistrondo reboa. 

“Gritam, guaiam, clamam os feridos, gemem os moribundos e, num momento, ao soar dos clarins, movem-se os cavaleiros erguendo as compridas lanças, formam-se os pelotões e ele, acenando aos soldados, parte, à rédea solta, levando no rastro do seu ginete a multidão frenética. 

“Lá vai a avalanche em desabalada investida através do fogo cruento, rompendo as sebes de aceiro, deixando a planície assoalhada de cadáveres, os valados entupidos de mortos, os marnéis encardidos de sangue. Mas uma bala silva — empalidece o herói, oscila incerto na sela, pende-lhe no punho a espada, cerram-se-lhe os olhos e os companheiros, que o veem sem alento, acodem em seu socorro. É tarde! a morte turva-lhe a vista, mas a alma heroica sobe-lhe ainda aos lábios para o derradeiro comando pedindo que prossigam e emudece abandonando o corpo enlanguescido. 

“A soldadesca, ao saber do desastre, assanha-se ainda mais querendo vingar o general ousado e àquele cadáver, que é recolhido à tenda, fazem os exércitos uma oblação de sangue, só voltando ao acampamento quando o inimigo, espavorido, abandona a ação refugiando-se, desbaratado, entre as suas trincheiras”. 

Morre assim o guerreiro, choram-no todos os olhos, lastimam-no todos os corações, mas comparai a sua morte a desse homem que se finou depois de tão longa agonia. 

O guerreiro, caindo entre os bravos, leva na alma a consoladora certeza de que a pátria o glorificará porque os atos da sua vida não se reservam em segredos — o homem de Estado vai duvidoso da justiça, entretanto, se compararmos os feitos de um e de outro, o guerreiro terá de ceder ao estadista. 

Na guerra a comoção de todos influi na coragem, há o estímulo eletrizante dos clarins, há o pean das músicas guerreiras, as vozes que bramam, a artilharia que incita, o fumo que embriaga, e, acima de tudo, a força poderosa do instinto de batalha que arrasta, impele o mais enfraquecido. 

O cenário é vasto, o público é o universo e no silêncio de um gabinete onde chegam, como projéteis tremendos que vão direito à honra, os reclames do povo faminto, os ápodos das facções adversas, os protestos da imprensa, as acusações dos grupos despeitados, os pedidos das camarilhas e os compromissos que traem a honorabilidade do governo, as campanhas políticas, as urdiduras da intriga, as guerrilhas de campanário, as exigências absurdas dos diretórios, as alicantinas eleitorais, todas as tramas da administração eivada de vícios antigos nas quais o homem de Estado se debate como a mosca na teia da aranha pérfida, ele só tem um estímulo — o dever. 

Se resolve uma questão cria sempre desafetos, se aplaina uma dificuldade dão-no por acompadrado, se consegue um benefício acusam-no de interessado, se protela uma resolução afligem-no com injúrias, se procede com energia bradam contra o tirano, se anda com calma e doçura increpam-no de pusilânime. 

Deixam-lhe os cofres vazios, exigem que os abarrote. Se restringe os gastos passa a ser miserável; se desatende, por insuficiência, aos contratos anteriores, logo lhe assacam os mais infames apodos e não o deixam em paz um só minuto — os amigos com a amizade, os inimigos com os ataques. 

Sabe o guerreiro o que tem a fazer, o estadista tem sempre necessidade de modificar os seus planos para atender às conveniências — um é o absoluto condutor da batalha, outro é um instrumento do partido; o primeiro só tem um fim: vencer, o segundo precisa atender à vitória e aos meios de consegui-la fechando, muitas vezes, os olhos ao saque como fez Caio Mareio dentro dos muros de Corioles. 

Esse que se finou esteve na trincheira, de pé, até a última hora. Já a moléstia o minava, já ele sentia os primeiros cruéis sintomas do mal que, antes de o levar, o torturou penosamente, e lá estava trabalhando em silêncio, em prolongadas vigílias, para recompor o Estado cuja administração lhe fora confiada. 

Quem via o seu trabalho quando ele o fazia? Ninguém. — Vem-no todos agora, e aplaudem. Ele, entretanto, dirigia a batalha formidável na qual os exércitos eram de homens pacíficos contra a miséria, contra a esterilidade. Ele ordenava os semeadores nos campos, os lenhadores nas florestas, os mineiros nas minas, os maquinistas nas máquinas, os faiscadores nos córregos, a justiça no seu tribunal, a instrução nas escolas, a honra e a fortuna nos lares e a integridade nos lindes do território do Estado. 

Não viam ou não queriam ver enquanto ele agia, foi necessário que, com a queda do seu corpo, a vista se alargasse francamente pelos benefícios que ele fizera para que então o aplaudissem e venerassem. 

Essas vitórias sem brilho são as mais fecundas e esse que morreu de fadiga, sacrificado pelo dever, foi o vencedor de um inimigo terrível — a inércia, porque deu aos mineiros, povo forte e nobre mas que parece viver ainda numa época pastoral como os hebreus em Ur, a consciência da sua força e o incitamento para o progresso e, mais feliz que o pastor enérgico do povo de Deus, sucumbiu na cidade formosa que sonhara para ser o centro da vida do poderoso e riquíssimo Estado, que vive acabrunhado e pobre dando, entretanto, ao mundo que o explora, os tesouros do seu ventre inesgotável. 

Esse que foi honesto, trabalhador e leal bem merece que lhe deem por mortalha a bandeira da sua terra porque por ela morreu heroica, abnegadamente... e pobre. 

E esse heroísmo da honra vale bem o da temeridade.

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