11/28/2022

Um convento flutuante (Conto), de Coelho Neto

 

UM CONVENTO FLUTUANTE 

No porto de Taganrog entrou um navio bem curioso: o grande veleiro Pokrow-Pressiyatya-Bogovadis, que não é senão um convento flutuante. Toda a equipagem é composta de monges do monte Athos; o capitão é o P, Gerassim, superior da ordem. Os marinheiros monges trazem vestes eclesiásticas, porém, apropriadas ao serviço.
O navio é pintado de negro e tem na proa uma grande cruz.
A bordo, o capitão diz missa todos os dias.
Em geral aí se observam rigorosamente todas as regras do convento. O acesso do navio é interdito às mulheres. A carga compõe-se de óleos sagrados e de objetos religiosos.
Os monges e os oficiais são de nacionalidade russa, mas navegam sob o pavilhão turco.

(Notícia transcrita)

Quem leu as páginas admiráveis consagradas pelo visconde Melchior de Vogue à Montanha Santa, que forma o fecho de um dos promontórios calcídicos, rematando, em contraforte abruto, uma das línguas de terra que, como os tentáculos de um polvo imenso, partem da antiga península macedônica para o mar, não vê sem interesse a curta notícia da peregrinação dessa não monástica, abrindo as velas aos mesmos ventos que levaram Argos em tempos mais fortes e mais jucundos, ao som de cantos, com a flor dos pelasgos, à conquista do ouro nas terras de Aetes. 

O monte Athos, cuja sombra, espalhando-se nas águas calmas do Egeu, chegava, no dizer de Plínio, a escurecer as praias de Lenos, viu formigar a seus pés a chusma asiática que Xerxes conduzia fragorosamente; viu mais de uma vez, em noites claras, passarem, em cardumes, brincando e cantando na vaga, as encantadas filhas de Nereu; viu nascerem cidades em torno do seu corpo, viu-as caírem esboroadas pelas catapultas; teve, mais de uma vez, ensejo de admirar as aguerridas falanges macedônicas, e, uma manhã, olhando de alto um punhado de homens que formigavam na sua base, descobriu entre eles Dinócrates que propunha talhá-lo de alto a baixo numa figura monstruosa na qual o futuro maravilhado visse a imagem do moço Alexandre, dominador do mundo. 

As florestas seriam a cabeleira encaracolada e verde do herói formoso, as nuvens formariam a sua clâmide translúcida; fontes rebentariam copiosas das dobras do seu manto; nos seus ombros, pelas suas coxas cresceriam cidades, na palma das suas mãos, estendidas e abertas, quadrigas disputariam o prêmio da corrida e a seus pés fervilhariam empórios colossais. 

O sonho de Dinócrates passou e o monte, áspero, escabroso e altivo, manteve-se o mesmo do antigo tempo, monstruoso e severo como o descreveu Diodoro. 

Morreram os deuses, o crepúsculo escureceu o esplendor da Hélade e o monte lá está, de pé, nas terras que hoje são da Romélia, onde voaram, em tempo de Trajano, as águias do Capitólio, levadas, como gerifaltos, pelos vexilários de Roma e quem agora o governa é o turco bárbaro que lá mantém, numa aresta de rocha, entre vinhas agrestes e ríspidos cardos secos, o seu representante. 

O monte é hoje um silencioso eremitério: cobrem-no mosteiros a torreado, alguns construídos nos primeiros dias do século IX, em pleno esplendor bizantino, outros mais recentes, mas todos rijos, de grandes blocos de granito, lembrando as construções ciclópicas das primeiras eras. 

Neles habitam os homens santos, os homens virgens que se afastaram, para o sempre, do mundo segregando-se nos alcandores onde não chegam as seduções enganadoras do século. 

Nas épocas da prosperidade dessa Tebaida alpestre mais de dez mil monges entoavam antífonas pelos seus meandros, no fundo dos vales onde se despenham torrentes, nos visos dos cimos, nos pendores dos abismos, no seio das matas escuras. Hoje esse número está reduzido a seis mil skitas, administrados pelo conselho dos cinco ou epistatia, que elege anualmente, tirando alternativamente de um convento e de outro o protathos, ou magistrado supremo do estado monástico. 

A população do monte Athos, diz Melchior de Vogüé, é exclusivamente composta de religiosos subordinados à regra de São Basílio. O uso da carne, do fumo, dos banhos lhes é desconhecido. Usam invariavelmente um hábito negro, de lã, conservam toda a barba e o cabelo que trazem em tranças sob altos gorros, de um tecido grosseiro, copiando a fôrma do fez

Seguindo a antiga crença nazarena, não cortam os cabelos: Non tanget caput novacula, como diziam os nazires. “A particularidade mais curiosa da sua regra é a proibição feita a toda a mulher, a toda a criança, a todo o animal fêmea de penetrar no território do Athos. Essas proibições pueris, para não dizer revoltantes nunca foram infringidas desde que foram ditadas, há mais de dez séculos: elas contribuem, mais que tudo, a dar uma caráter de singular estranheza a esse canto de terra, posto fora da natureza, tão longe quanto o pôde levar o furor ascético”. 

É com tal gente que vai tripulada a não que surgiu no mar de Azov, não com a celeuma alegre que os marujos levantam quando sentem na aragem o tépido perfume da terra próxima, mas ao som triste dos cânticos religiosos. 

Sebastião Brandt, o grave jurisconsulto de Estrasburgo, autor do Narrenschiff, ou navio dos loucos, não foi tão longe com a sua tresloucada fantasia. As lendas bretãs falam de barcos espectros que passam surdamente nas brumas dos dias polares e nos quais a companha é toda de sombras e a bandeira é uma alva mortalha e vive a lenda do navio do Holandês errante, acossado por mil tormentas, vogando incerto por todos os mares, mas que são essas criações da sátira e do medo, essa ironia e essas superstições comparadas à verdade que pode ser vista diante do porto rumoroso da cidade fundada por Pedro o Grande? 

Lá está o navio — é um mosteiro sobre águas: a sua tripulação é toda de monges, a sua carga consiste em óleos santos e em objetos religiosos. 

Enquanto está ancorado a maruja mística pode cuidar serenamente do culto: o gajeiro deixa o cesto de gávea, deixa o timoneiro a cana do leme, fecha o piloto a bitacola e, com os panos ferrados, as vergas estendidas em cruz, a nau atroa os hinos. Sobe-lhe do bojo, em espirais cerúleas, o fumo aromático dos turíbulos, tine retine a campainha e a hóstia, branca e pura, eleva-se entre os dedos salitrados do protatos navegador, à luz do céu nevoento, defronte da cidade moscovita mas... vendidos os santos óleos e os rosários de sândalo, as nôminas e as verônicas, as relíquias e, talvez, antigualhas bizantinas e aberto largamente o pano sigamos, mar em fora, a não monástica. 

Lá vai, proa altiva, rompendo a vaga, galgando o macaréu; lá vai! Range a mastreação, silva o vento nas enxárcias e, em tomo do cabrestante passam os monges os cabos... Eia! mãos bentas, Ala! Iça! Aos turcos a chalupa! Ala! E o protatos, enérgico, brada à companha hirsuta que, marinhando por mastros e mastaréus, surgindo nas escotilhas, caminhando na rede da bujarrona, em faina ligeira, põe o navio à feição do vento até que ele ganha a abordada e parte. Lá vai! 

Se não mentem as bailadas do Norte que se referem à existência de catedrais e mosteiros submarinos onde oficiam bispos e cantam, em coros de nácar, escamosos monges e freiras de olhos de esmeralda, quando a nau monástica passar na vizinhança de tais templos e conventos, os sinos bimbalharão sob as águas cerúleas e as sereias cristãs ajoelharão devotamente nos genuflexórios de coral, sobre esponjas macias. 

Não é a peregrinação dos monges que eu lamento — o mar tem encantos que absorvem a alma, quem viaja sonha, mas a terra? A terra que se adivinha como uma felá pudica, encolhida sobre o verde tapete das águas, toda envolta em gaze, mostrando vagamente os seus contornos, os relevos do seu corpo ondulante; a terra que se vai avistando, ainda indecisa, despindo-se com o vagar pudico de uma noiva, deixando ver alvuras; e depois as torres agudas que aparecem, zimbórios que rebrilham, vidrais faiscando; por fim a cidade que se vê linda, alegre, resplandecendo, ora verdes planícies ou em aveludados outeiros com o casario alastrando ou subindo, em rebanho, pelos flancos das eminências e lá, no referver da vida, o espetáculo novo para aqueles olhos cansados de vigílias à luz trêmula das lâmpadas absconsas, da grande, forte e inevitável germinação. 

Não lhes arderá na alma o desejo, filho do instinto, que é o pastor do rebanho dos sentidos? Não lhes pulsará o coração ansioso batendo, como uma máquina apressada, a impelir o corpo para o seu destino? — o polo magnético do amor não os atrairá da terra? 

Não, não é a peregrinação pelos mares que eu lamento — as sereias deixaram as ondas que delas apenas conservam a perfídia, as sereias estão hoje em terra firme e têm as suas grutas de coral, não erguidas pelos falanstérios, mas estofadas pelos armadores; o que eu lamento é a chegada aos portos, é a visão da terra sedutora. 

Uma mulher que passa na praia cantando leva-lhes os olhos e manda-lhes o seu perfume. Oh! O aroma da carne! Outras caminham ao longe e, à noite, à hora calada das estrelas e das ardentias, quando no porto adormecem as docas, sulca as águas mansamente um barco e nele, unidos, dois vultos trocam beijos. O monge que vela escuta o crepitar dos lábios ardentes, debruça-se à amurada, olha e, extasiado, não se pode tirar daquela contemplação alucinante. 

Ao longe a cidade, recamada de luzes, fulgura e um hausto grande, quente, rumoroso como um arquejo, hausto que é a confusão de todos os suspiros que sobem, hausto que é a grande respiração voluptuosa dos que amam, chega ao navio ascético e os monges levantam-se atordoados como perseguidos por um sonho mal. 

Que é! Que é! Indaga o protatos e todos, lívidos, perturbados, trêmulos, estendem os braços magros mostrando a cidade ao longe, cravejada de luzes, subtilizando o perfume embriagador da volúpia. É a cidade! É a cidade! 

O protatos dá o sinal da partida fugindo com pressa ao pecado e, à primeira luz da manhã, panos todos abertos, bojando à aragem, lá vai a nau velejando a fugir à mulher, levando, porém, como um presente satânico, a acídia, essa melancolia que é uma saudade do mundo, essa tristeza mortal que é uma revolta da carne e que foi assim definida por Frei Luiz de Granada: 

“É uma frouxeza e caimento de espírito para bem obrar, e particularmente é uma tristeza e fastio das cousas espirituais”. 

E, recolhendo a nau ao porto do Egeu, voltando os monges às asperezas da sua montanha, mais a acharão deserta e triste, intratável e mesquinha. Mas a regra ferrenha será transgredida, não pela presença da Mulher, mas pela obcecação do Feminino apenas e de leve percebido nos rápidos surgimentos naqueles portos onde o amor era livre, na terra e no mar, não só entre os casais humanos que trocavam beijos mas mesmo entre os animais. 

E, no monte, os delirantes, contorcendo-se raivosamente nos grabatos das celas, não distinguirão no murmulho do arvoredo o delírio do amor e, se distinguirem, por certo não comunicarão ao protatos para que ele, em ira feroz, não conclame as congregações para abaterem, a machado, as depravadas árvores, únicos viventes que ousam, com desfaçatez, cumprir o preceito divino da procriação naquele eremitério da esterilidade. 

Pobre nau de sombras, mais trágica do que a dos espectros alvos que passa envolta em nevoeiros pelos tristes mares mudos da região dos polos. Pobre nau de agonia!

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