11/28/2022

A propósito de festas (Reflexão), de Coelho Neto


 A PROPÓSITO DE FESTAS

Em torno do círculo eterno são vários e diferentes os caminhos da vida, mas as regiões que eles percorrem são invariavelmente as mesmas. A primeira — brumal — o ponto de partida, é a região da infância que coincide com a última — nivosa — região da velhice, como se fosse uma aurora d’aquela noite, um esbatimento suave daquela sombra. Segue-se — floreal, a região luminosa e alegre da adolescência, depois germinal, a fulgurante e cálida região da idade adulta que se inclina, em crepúsculo, para a treva tristonha. 

Há uma larga e fácil estrada central, sem desvio, que liga os pontos extremos — é o caminho afortunado. Por ele seguem os felizes, os que fazem a travessia com descanso, sempre protegidos por sombras gratas. Ainda assim nem sempre os peregrinos alcançam a desejada meta porque não faltam ciladas, não rareiam abismos — as mesmas flores admiráveis que enfeitam e perfumam as margens estilam veneno, as águas límpidas dos lagos ocultam serpentes e sob as folhagens que se adensam em macios tapetes trescalantes, há vórtices que devoram os caminheiros incautos. 

E quantos são os que se aberram, uns por ousados, outros por curiosos, ainda outros por ambiciosos abalsando-se e perdendo-se nos ínvios caminhos! Ah! Os ínvios caminhos...! Esses são estreitos — uns pedregosos, outros apuados de espinhos, outros alagados por imensos marnéis, outros ainda acidentados e todos estéreis, com raras fontes e árvores escassas mas, como vão por vários sítios, sempre com horizontes novos, umas vezes ladeando a estrada larga, outras vezes subindo em aclives fatigantes pelas serras escabrosas, descendo a floridos vales, são os que o Destino escolhe para os poetas, não só para que os cantem como também para que, com os seus cantos, deem coragem à turba numerosa dos infelizes que os trilham. 

A estrada larga é mais fácil mas não é mais bela — a regularidade da sua beleza torna-a monótona. Os aspectos dos caminhos variam de instante a instante, os mesmos perigos encantam e o orgulho de os vencer já constitui um incentivo. 

Há um lago, é necessário atravessá-lo, a empresa não é fácil, antes, porém, do arrojo o caminhante contempla extasiado as maravilhas que tornam o sítio admirável e, enquanto os olhos gozam, o sofrimento adormece... depois... à aventura! E, por todos esses caminhos vários, a Humanidade desfila em rumo ao seu destino. 

As regiões, com os seus climas, com os seus aspectos próprios, essas não variam. 

O feliz lembra-se vagamente da névoa tênue de que saiu para uma doce luz. Ó a alegre passagem! Como andava ligeiro e contente! como tudo lhe parecia delicioso! Não tinha cuidados nem tristes pensamentos, seguia cantando, por entre flores. Depois o sol, o vivo sol, os frutos corados vergando os ramos das árvores, um momento de repouso num sítio aprazível, um encontro idílico, por fim a doçura da tarde, o silêncio da noite e o serão à volta do fogo. 

Felizes são os que podem achegar-se à lareira, felizes são os que sabem acumular o necessário combustível para a noite gelada. São como centelhas em torno dos corações dos velhos as cabecitas louras dos netinhos gárrulos, e, eles, buscando-os, sentem-se rejuvenescidos vendo nos cabelinhos anelados como lampejos do Sol da mocidade, o passado, tudo que foi, o irregressivo tempo. 

Como os felizes gozam os infelizes — não à lareira, mas à beira de um fogo, às vezes mais vivo e mais alegre... Pois não é verdade que as criancinhas pobres riem mais francamente? E vendo-as os avozinhos recordam os transes difíceis, mas os mesmos espinhais florescem, o mesmo cardo dá a sua flor e não há vida miserável que não tenha, lá no fundo, como um lírio em águas de paul, a sua flor de poesia. 

No extremo são todos os mesmos e, quando a noite entrevece, quem pôde saber, na multidão dos velhinhos trêmulos e engelhados, todos com as mesmas rugas na face e com as mesmas saudades no coração, quais foram os que vieram pela estrada fácil e quais os que tiveram de vencer os tropeços dos caminhos escabrosos? Na morte? Quem os distingue? São todos os mesmos pobres velhinhos. 

O que lhes resta no fim da vida é essa saudade grande chamada tradição. E que é a tradição? É o lume que as gerações se transmitem, é o fogo sagrado que a Alma dos povos, como a antiga vestal, deve conservar sempre vivo. Todos os que viajam nos caminhos da vida trazem da peregrinação uma lembrança ou deixam ficar uma recordação. 

Os poetas passam e deixam os seus hinos, os profetas deixam as religiões. Aqui fica a memória de um amor, ali a ruína de um templo. 

Os velhos, à noite falam aos moços do que viram e eles, que veem? Que encontram? Tudo arrasado: a Poesia morta, a Beleza extinta e fazem a viagem sem uma impressão, sem uma alegria, sem um oásis onde se reúnam confraternizados e repousem celebrando o culto do Passado. 

Não há memória de um só homem que tenha começado a viagem partindo da segunda região — todos vêm da névoa infantil, todos saem do mesmo ponto para que gozem todos os climas e tenham todas as impressões e é por isso que se perpetua no mundo o amor da Humanidade, é porque “em tudo há um pouco do passado”. 

Nós caminhamos sobre túmulos: Como os antigos guerreiros para tomarem de assalto os muros das cidades iam subindo pela mortualha, fazendo de cada cadáver o degrau da escada, nós vencemos à custa do que foi — o dia de ontem é que nos deixa no amanhã, a noite, que é a morte, é que nos traz o dia — nas escadas, entre os degraus, há um vácuo como os túmulos. 

E por que havemos nós de ser ingratos com esse Passado ao qual tudo devemos? Quem o não lastima? Quem o não invoca? 

Comme nous voudrions, ne fût-ce qu’un moment,
Revenir en arrière et, frissonants d’ivresse,
Parcourir de nouveau le meandre charmant
Que creuse en s’écoulant, dans nos cœurs la jeunesse!" 

A alma rumina — no fim da vida ela apenas se alimenta de saudades. 

Dir-se-á que os séculos não carecem de poesia — a Poesia é o espirito, é a mesma alma da Humanidade. Calem-se os poetas e o mundo, com a sua agitação frenética, ficará como um grande corpo de convulsionário rebolcando inconscientemente. 

Agindo, o homem só atribui o seu trabalho à mecânica do corpo — é a mão que escreve, burila, debuxa, cava, semeia, vence, erige, destrói e abençoa. Ninguém no momento da ação, se preocupa com a alma, ela, entanto, é a ideia na frase, a expressão na figura, o sentimento na paisagem, a intenção no braço do cavador, a direção na destra do semeador, o esforço no punho do soldado; a simetria no escopro do arquiteto, a fúria no montante e o amor no gesto que perdoa e sagra. 

Assim no progresso só se vê o produto material, ninguém penetra o segredo das coisas, que é a Poesia, criadora de Deus e da Liberdade, ubíqua como o próprio Deus. 

A poesia não está só nos poemas, em tudo ela existe: sob a clâmide e sob a blusa, sob a farda e sob o amicto — ela é a alma... Guia, ela tem um Norte, o Ideal... e é porque ela o indica que a Humanidade caminha. 

Todos os povos veneram a sua Poesia, quer seja ela a Ilíada ou os Niebelungen, quer seja a simples farândola no campo florido ou a suave vigília em torno de um rústico presepe. Essa poesia simples, popular, que nos vem de eras perdidas, modificando-se, sem todavia perder a beleza, constitui, entre os homens, um elo forte, robustecendo neles o sentimento patriótico. Quem não terá visto o emigrado triste, sentado pensativamente no limiar da casa em que se instalou no país novo, suspirar, olhando o céu estreitado, em noites santas, a pensar nas festas que se celebram nos campos de sua terra? Será o europeu mais rude do que nós outros? Não, entretanto, apesar da intensa cultura intelectual que o distingue, é ele o povo mais conservador das tradições, mais respeitador das coisas do Passado e esse respeito dá-lhe mais resistência à crença, prende-o mais à terra, conforta-o no desalento — como ele traz a sua religião, traz a sua poesia... 

Só nós, só nós, povo de ontem, povo infante, nós que ainda nos achamos na primeira região: brumal, por uma vaidade ridícula ou por um triste indiferentismo que demonstra o nosso desinteresse pelas coisas pátrias, deixamos que pereçam essas tradições ingênuas, uns alegando que elas são restos de um culto pagão, superstições deprimentes, abusões aviltantes, outros porque entendem que o tempo é escasso para os negócios lucrativos e que essas festas infantis revelam ingenuidade, falta de ponderação. 

Que o brasileiro é um povo triste sabem quantos visitam este alegre país, poucos, porém, ousam dizer a verdade, que ele é... 

Em tudo quanto produzimos o que logo se nota é a absoluta falta de sinceridade, nem pode haver tal virtude quando há imitação. A nossa Poesia é um reflexo — os nossos poetas vivem a gemer, não porque sofram, senão porque está em voga o gemido. Se a Arte se nubla com o nefelibatismo, surgem os nefelibatas e já temos os sinfonistas, os decadistas e uma série de bardos em ista que não valem um caracol. A verdadeira, a genuína Poesia brasileira raramente aparece e é preciso ter um grande nome para lançar à publicidade quatro ou cinco estrofes de um puro lirismo sem mescla de estrangeirice. 

Somos um povo novo, devemos ter alegria e devemos cantá-la — só a Poesia espontânea vive, o arrebique é frágil. Não é inspiração que nos falta e a natureza aí está a oferecer-nos copiosas fontes mas... a França atrai-nos e, como nos vestimos à francesa, também poetamos à francesa. E vamos deixando morrer as tradições. 

Antigamente, como eram divertidas essas festas de junho — Santo Antônio, São João, São Pedro... Quem as gozou deve lamentar a geração de agora, triste geração, triste e presumida, que não conheceu o encanto de uma noitada em torno da fogueira crepitante, a ouvir trovas e vaticínios, enquanto as névoas se confundiam com o fumo dos fogos e os estralos das bombas faziam com que não fosse ouvido o leve e amoroso rumor de um beijo. 

Oh! O passado, as festas do passado... 

Quem escreve estas linhas faz a travessia da vida por trilhos difíceis e muito lhe tem custado vencer certos trâmites pedregosos, mas não inveja os moços afortunados que vão pela estrada larga, mas sem encantos, saturados de filosofias e com mais descrenças e mais tédio na alma do que o frenético Timon de Atenas. 

Ele soube ser criança: na idade de brincar brincou e, ainda hoje, diante de uma fogueira, lembrando-se do velho tempo, é bem possível que a saltasse bradando um viva! Ao santo festejado. 

Mas o brasileiro começou pelo fim: É um povo que saiu da noite, como as estriges. Quando entrará ele na região da alvorada? E quando chegar à velhice, que dirá ele às novas gerações, ele que nada leva, ele que vai destruindo e apagando o que recebeu dos bons velhos d’antanho, a crença, o amor e as tradições? 

Merencória velhice vai ser a tua, povo de velhos que ainda balbuciam.

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