11/28/2022

Um audaz (Conto), de Coelho Neto


UM AUDAZ

A vida extraordinária desse robusto e alegre Steelman é das que se prestam às urdidas e complicadas páginas dos romances de aventuras, com imprevistos maravilhosos, rasgos admiráveis de energia e audácia e prodígios a cada passo. 

Steelman tem sido tudo, conhece todos os gozos e não há dor nova para os seus nervos. Foi tatuado na Tartária: desenharam-lhe nas costas os mistérios da vida de um lama e inscreveram-lhe no peito, com um sortimento de finas e compridas agulhas, em três espaçados meses de tortura, um dos quatro livros da Moral de Confúcio. 

Em Esmirna teve uma cultura de bálsamo; foi pastor de camelos no Teeram; curtiu peles numa aldeia pestífera da costa do Mar Vermelho; conduziu hostes negras de uma aringa ao deserto onde destroçou um bando rapace de beduínos que incendiava as culturas e furtava o gado, pregou num templo budista, passou sob a terra, nas margens do Ganges, com uma plantação de aveia a brotar sobre o túmulo em que o encerraram, vinte e tantos dias, sem sofrer, sem sentir, dormindo tranquilamente “no seio da morte”. 

Numa povoação Tibetana, que era um imenso oásis de palmeiras, esteve nu, com uma leve tanga em torno dos rins, as mãos rijamente ligadas por uma corda de fibra de coqueiro, a cabeça curvada sobre um cepo, sob o gladio reluzente e curvo de um fanático. 

Livrou-o da morte um prodígio do qual ficou referência memorável numa laje, em caracteres eternos, gravados fundamente, a ferro. Na ocasião em que o carrasco, agarrando, a mãos ambas, o alfanje largo, derreava o corpo para vibrar o golpe, uma cegonha, passando no ar, deixou cair do bico uma flor sobre a cabeça da vítima. 

O carrasco ficou como de pedra, a olhar; a multidão tremeu e, repentinamente, com uma algazarra que chegou às montanhas, onde os penitentes queimavam lenhas aromáticas, entre cedros frondosos, as mulheres, numa fúria, descabeladas, aos ululos, arremeteram, derrubaram o carrasco, romperam, a dentes, as cordas rijas e, carregando Steelman, nu e pálido, entraram com ele no povoado, aclamando-o e, com a notícia do caso, apareceram adoradores, houve ideia de exigir-se um templo ao homem da tez rosada, moveram-se, dos mais fundos desertos, peregrinos com presentes e Steelman ficou como um deus, adorado, principalmente pelas mulheres, que lhe pediam fios de cabelos e da barba loura, razão pela qual esse homem admirável é calvo como Sócrates e glabro como um hierofante. 

Nessa terra de trato rude e velhíssimos costumes andou ele, dous anos, representando uma divina hipóstase, e, o que maior tédio lhe punha na alma era não poder caminhar livremente porque, se aparecia nas vielas, com ânsia de ar, logo o povo correndo atropeladamente para forrar-lhe o caminho com as tangas, prostrava-se no pó da terra, seco e imundo, com um murmúrio de reza, beijando-lhe os pés nus, as canelas nuas, todo o seu corpo nu e ele tinha de seguir vagarosamente, rompendo aquela difícil muralha de homens, de mulheres e de crianças, babujado por aquelas bocas, beliscado por todos os dedos que não lhe deixavam um pelo curto nas carnes. 

Só os cães se animavam a fitá-lo, alguns mesmo rosnavam farejando-lhe as pernas e ele voltava à sua choça derreado, com o braço direito pendido e esmorecido de tanto sacudir bênçãos sobre as cabeças devotas, sobre os mirrados campos para que se cobrissem de milho, sobre as águas escassas para que não cessassem de correr e ainda pelos ares para que os não toldassem as nuvens de gafanhotos. 

Fugiu, com ódio e nojo, àquela gente espessa descendo o rio num barco de couro com uma rapariga e, chegando a uma cidade, já inglesa, onde havia gin e polícia, respirou largamente, com satisfação, quando se viu entre as mãos de quatro policemen severos por causa da sua nudez divina, contrária à moral e às leis inglesas. 

Meteram-no em uma prisão sórdida onde passou uma semana, entre um faquir bêbedo e uma velha do deserto, douradora de víboras, que chorava e cantava versos de Firdusé. 

Steelman, na pocilga, não se cansou de render graças a Deus que o livrara daquele martírio da adoração, restituindo-o à vida, com as suas leis exigentes, os seus cárceres sujos, as suas inflexíveis justiças e os seus grogues. 

Na Rússia Steelman comprometeu-se no niilismo aliando-se, em pacto tremendo, aos impulsivos do otchaianié. Fez-se apóstolo da regeneração, adorou o mujique e preparou uma bomba que explodiu à beira da linha férrea dois segundos depois da passagem de um trem imperial e, uma tarde, à margem do Neva, depois de um conflito, foi espezinhado por um esquadrão de cossacos ficando sobre a neve, com o corpo em pandarecos, e uma costela a pedir solda. 

Na Polônia, em Varsóvia, foi do partido dos libertadores e escreveu panfletos com o pseudônimo de Kosciusko. Foi membro da Máfia, na Itália; na Inglaterra alistou-se na “Salmtion army”; em França ateou uma jacquerie, abafada a tempo; apedrejou conventos na Espanha, dirigiu uma greve de cocheiros em Portugal, tentou incendiar o harém de Constantinopla... 

Mas, a sua aventura maior foi em Dakar. Saltando nesse porto com a sua insaciável curiosidade de homens e de paisagens, foi seguindo, ao acaso, por entre choupanas e lixo, repelindo cães e negrinhos, a ver, a informar-se, debuxando no seu álbum trechos da terra seca e misérrima, negralhões em camisolas folgadas, negras de grandes e pendurados beiços, tetas moles e chatas e carapinhas altas como cocares. 

As casas, umas locas, eram acaçapadas, algumas arriavam os muros frágeis fendidos, arrimando-se às árvores. Uma poeira quente embaçava o ar e, do labirinto lobrego daquela imensa arenga, saíam porcos grunhindo, cães gafados, ladrando, lotes de negrinhos nus, aos saltos, rinchavelhando. 

Steelman ia seguindo, a olhar, mas, amolecido pelo bochorno, sentindo as pernas vergarem-se, já se decidia a voltar quando viu, por entre as árvores, alvejar uma casa, à cuja frente uma latada verde cobria de sombra duas mesas toscas e dois compridos bancos mal acepilhados. 

Um homem de rotundo ventre, barbudo e sardento, fumava à porta. Steelman adiantou-se e percebeu, com alegria, que a casa era uma tasca: lá estavam as garrafas, as latas de conservas, pencas de frutos e, no seboso balcão, uma pipinha de Cristal com aguardente. Pareceu-lhe aquilo um oásis providencial e logo, dirigindo-se ao gordo homem, que era francês, pediu cerveja e charutos — só havia cerveja e infame; Steelman resignou-se e, abancando a uma das mesas, tirou o casaco, arregaçou as mangas da camisa e bebeu, depois estirou-se em um dos bancos e adormeceu. Quando acordou a luz era branda, cantavam cigarras, e uma brisa, cheirando a florestas, sacudia as palmas dos coqueiros. De repente, pálido, de olhos arregalados, boquiaberto, Steelman ficou como se houvesse avistado um leão ou uma serpente — é que uma ideia irrompera, súbita como uma pontada: o paquete! Ergueu-se assustado, pagou a cerveja choca e deitou a correr seguido de cães que ladravam e de moleques que riam, chegando à praia esfalfado justamente quando a lua, imensa e amarela, como de cera, subia pelo céu vazio: o paquete era um pequenino ponto no horizonte que logo desapareceu ficando no seu lugar, à flor das águas, uma estrelinha a brilhar. 

As muitas e arriscadas aventuras deram a Steelman uma resignação invejável — duas pragas surdas e um leve encolher de ombros e o grande homem retrocedeu lamentando apenas a falta de charutos e o seu inseparável Homero. 

Caminhando pelas ruelas apagadas onde começava o despejo, chafurdando em Iodo, pisando flácidas imundícies que se esparrimavam molemente sob os seus pés, chegou ao albergue onde o francês, na doçura da noite morna, com o cachimbo nos beiços, já bêbado, afagava a carapinha de uma negra lúbrica. 

Entrou, contou a sua desgraça e pediu ceia e cama. A negra, num assomo de pudor, encolheu-se toda, escondendo nudezes e o francês, com um espanto grande no carão barbudo, pôs-se a resmungar — que fora mesmo uma desgraça aquela partida do paquete e que, para ceia, se podia arranjar umas bananas fritas em azeite. Steelman comeu as bananas e dormiu num catre, forrado de palha, num quarto contíguo ao do alberguista de onde, até adormecer, revoltado com aquela molície, ouviu a negra gemer e o homem fungar como um suíno no lodo. 

Cedo, ainda escuro, Steelman saltou do catre, escancarou a porta e saiu à procura da água — não havia água, tudo era secura e miséria. As árvores pareciam cobertas de cinza, a terra era todo um cineral, as mesmas casas pareciam feitas de cinza amassada. Rugiu com ódio e, numa assanhada revolta, responsabilizando a França por aquele desconforto, jurou, no seu íntimo, tirar uma desforra tremenda conflagrando a negrada da Senegambia contra o governo da grande República que assim deixava uma das suas colônias sem água para um banho e sem um charuto. 

Efetivamente, recolhendo ao albergue, meditou um vasto plano de conspiração que, numa hora de matança e de fogo, acabasse com a dominação francesa. Redigiu a proclamação e os primeiros decretos, lançou as bases de uma constituição liberal na qual, como legislador supremo, permitia a poligamia e a nudez e, com as suas notas no bolso, saiu a tramar. 

Sabendo, por velha experiência, que não há povo, na face da terra, que se não julgue oprimido, Steelman dirigiu-se ao primeiro negro que encontrou, agachado junto a um poço, coçando as pernas; chamou-o com mistério e expôs-lhe a sua ideia. O negro, pasmado, esfolava, escalavrava as pernas com as unhas sem perceber palavra e foi necessário que o grande homem lhe dissesse claramente — que era preciso acabar com os franceses, queimar as casas dos franceses, não deixar na terra negra memória alguma dos franceses, juntando às palavras, como se as ilustrasse, a mímica mais precisa e feroz, para que o “comedor de carne de porco”, saltando e ululando, lhe atirasse os braços ao pescoço, comovido. E logo saiu a concitar os companheiros e, em pouco, toda a população, reunida num bosque, ouvia a leitura da proclamação sediciosa. 

Facas reluziram, fimbos entrechocaram-se e, com um juramento solene, todos comprometeram-se a dar cabo dos brancos antes que outro sol luzisse e uma negra, com louvável patriotismo, rasgando a saia, que era de riscas vermelhas, ofereceu um trapo para bandeira. Steelman foi aclamado salvador da Senegambia e senhor absoluto de terra e mar, desde as carvoeiras do porto até as minas do sertão. 

Infelizmente, porém, um negrote mais entusiasta ou mais bronco, sem paciência para esperar a hora propícia da meia noite, logo à tardinha, com um facalhão afiado, vociferando contra a França despótica, saiu à procura de franceses. Foi preso e, ante ameaças de torturas e de morte, denunciou a conspiração sem omitir a leitura da proclamação e o episódio da bandeira. 

Steelman, vendo-se perdido, ganhou a floresta e, durante noventa e tantos dias de trabalhos e sustos, de misérias e dores, caminhou pelas brenhas, ouvindo silvos de serpentes e frémitos de tigres, nutrindo-se de frutos e de raízes, desalterando se em pântanos até que alcançou uma feitoria portuguesa de onde pôde passar a terras da Europa, como cozinheiro num brigue. 

Esse homem raro que conhece toda a terra e que nela tem sido tudo, encontrando-me, nas vésperas da sua repentina partida, disse-me, com verdadeiro terror: “Meu amigo, só agora ao fim de trinta e tantos anos largamente vividos neste vastíssimo e descontente planeta, que tenho percorrido, como aquele herói do conto suábio, “sem conhecer o medo” vim tremer neste ponto superior da terra onde as árvores são sempre verdes e os homens sempre amarelos. 

“Fui adorado por um povo forte e guerreiro que, antes de queimar resinas a meus pés, tentou arrancar-me a cabeça dos ombros; fui pastor de camelos, curtidor de couros, rás de uma horda niilista, socialista, anarquista e tudo mais que acaba em ista e que procura destruir a ordem social; preguei num templo, passei um mês num túmulo, tentei sublevar povos, fuzilei homens e leões, pisei constituições e serpentes, cavalguei príncipes e zebras, fiquei tostado aos sóis africanos, tiritei em covas de esquimós, combati na China por uma religião desconhecida e defendi os cristãos na Armênia, gemi em cárceres, três vezes a corda deu volta ao meu pescoço, fui tatuado, estive para sofrer uma operação decisiva que me desclassificaria e resisti a tudo sem empalidecer. Confesso-lhe, porém, que não me atrevo a ficar neste país excelente onde vim conhecer o que me parecia uma palavra vã — o medo. Saio daqui com medo, meu amigo, varado de medo”. 

— E por quê? Perguntei. 

— Por quê?! Pois não sabe que, seduzido por um homem, consenti em alistar-me e sou hoje eleitor? Francamente lhe digo — os que me admiram, os que andam a escrever louvores à minha coragem, não sabem que há políticos e eleitores nesta terra ou, se sabem, ignoram como aqui são feitas as eleições. Com uma cédula eleitoral, recebi uma caixa de armas, dois cunhetes, uma camisa de malha, o recibo que me garante sete palmos de terra no cemitério do Caju... e outros papéis. Não! antes a fera e os bárbaros. 

E o intrépido Steelman tomou passagem para o Amazonas, constando que vai viver entre antropófagos. Os jornais, anunciando a sua partida, subordinaram a notícia ao título: “Um audaz”. Um audaz... Pois sim!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...