11/28/2022

Burro ou cão? (Conto), de Coelho Neto

BURRO OU CÃO?

Burro ou cão? E Melquisedeque da Silva, de mãos nos bolsos, media, a largas passadas, o seu quarto de sábio e celibatário com uma dúvida no espírito, mais incoercível que a de Hamlet: Burro ou cão? 

A máscara de burro, um primor, lembrava a cabeça asinina que Puck fez crescer sobre os ombros de Bottom, a de cão era tão perfeita que o velho Pachá andava pelos cantos erriçado, desconfiado, a roncar. Melquisedeque não se decidia e, hesitante, queimava charutos e era tanta a fumaça no aposento que as estantes, altas e atochadas de preciosos volumes, desapareciam abrumadas pelo fumo, menos denso, entretanto, do que a dúvida que escurecia o claro espírito do profundo psicólogo. Burro ou cão? 

Quando entrei para consultar o meu esclarecido amigo sobre um aforismo complicado de Mêncio, o espanto reteve-me à porta, sobre um velho atlas de etnografia que servia de capacho. Não vi Melquisedeque, o que vi foi uma espécie de Anúbis, de quinzena, contemplando-se a um espelho com serenidade. O velho Pachá bufava trepado na mais alta estante, com os olhos rebrilhando como duas brasas. Por fim o cynecephalo voltou-se para o meu lado, e, em vez de ladrar, disse-me com intimidade: “entra, homem”; e logo reconheci a voz do meu erudito amigo que, para tranquilizar-me, retirando a máscara, mostrou-me o seu rosto magro e pálido onde a barba crescida punha uma arrepiada sombra. 

— Que capricho é esse, Melquisedeque? O sábio encolheu os ombros estreitos e sentou-se cansadamente, com um suspiro. Vais sair fantasiado? De novo encolheu os ombros com indiferença. Por fim, depois de alisar a fronte vasta, perguntou-me: 

— Que dizes: burro ou cão? 

— Burro ou cão?! Não te compreendo, Melquisedeque. Intimamente eu sentia um alvoroço contando com uma nova e arguta sutileza filosófica e cravei os olhos na face macilenta do austero homem. 

— Não me compreendes? 

— Não. 

— Pois não há dificuldade alguma na minha pergunta. Senta-te e ouve. Sentei-me e dispus-me a ouvir a palavra, sempre fecunda, do grande e desconhecido comentador dos moralistas chineses. 

— Sabes que fui de novo, preterido por um mocinho chamado Alfredo, filho de um chefe político que dispõe de uma centena de votos por aí algures. Estou vivendo dos meus livros e, levantando o braço direito, o mesmo que ele eleva para os céus, à noite, para indicar-me as constelações luminosas, mostrou-me uma das estantes, consideravelmente desfalcada. 

— Estás vendendo os teus livros, Melquisedeque?! Exclamei pasmado e indignado. 

— Alguns. Que hei de fazer? O senhorio e o estômago são exigentes. Mas, vamos ao caso: fui preterido e queres saber por quê? 

— Porque não levaste um empenho... 

— Talvez tenhas razão, mas eu atribuo à fama que vocês, meus amigos, criarem em torno do meu nome: que eu sou um homem de estudos, que tenho o meu bocado de filosofia, que penso, que escrevo a minha língua sem grandes erros comprometedores... e que sou independente. Estudos e inteireza de caráter são duas qualidades mas para quem precisa. O regime é dos medíocres... e dos bajuladores: burro ou cão, não te parece? Na face magra de Melquisedeque tremeu um sorriso triste. Aquele rapazote, que foi nomeado secretário de legação, foi meu aluno durante três meses: quando se inscreveu na secretaria ainda escrevia omenajen e afirmava que a primeira missa no Brasil fora rezada na igreja da Candelária. Lá está na Europa e Deus o tenha por lá muito tempo para que a língua não sofra com os seus constantes ataques. O governo entende que, como ele vai viver no estrangeiro, pode, perfeitamente, dispensar o português. O regime é dos medíocres e dos engrossadores, como agora se diz. Um homem seco, como eu, não pode engrossar mas também não me convém morrer à míngua — é preciso que eu arranje alguma coisa. Com a minha cara estou certo de que não consigo um lugar de porteiro nem mesmo de varredor. Tenho aqui duas máscaras, qual delas devo levar: a de burro ou a de cão? Qualquer desses animais tem cotação: o ignorante impõe-se, o servil consegue tudo. Estamos no carnaval e estou aqui ensaiando os papéis de burro e de cão e amanhã, optando por um ou por outro, lanço-me por aí à aventura, subo as escadas da primeira secretaria, dirijo-me ao ministro e zurro ou gano. 

— Tu estás pessimista, Melquisedeque. 

— O que estou é convencido de que isto é o país dos analfabetos e dos zumbridos. Olha que é um crime saber ler, meu caro. Eu vivi a absorver ciência e literatura e hoje não tenho uma camisa decente. Que é o carnaval? A vida voltada pelo avesso, não te parece? Todo o homem tem em si uma feição que se oculta sob as conveniências. Antero, que é mais triste que uma missa de sétimo dia, só se fantasia de palhaço e tem graça, faz rir a valer — ninguém dirá que, sob aquela máscara cômica, está a cara consumida do mais taciturno homem que o céu cobre... Na quarta-feira de cinzas Antero recomeça a pensar no suicídio. As crianças, que são verdadeiros diabretes, trocam, de bom grado, o mais rico trajo de príncipe, pela ganga rabuda de um diabinho; os velhos, são, em geral, rapazes lépidos — eu vou virar-me pelo avesso mostrando-me burro ou cão e, quem sabe lá? é até possível que se dê comigo o que se dá com o Antero: que os solecismos me acudam em borbotões e que a minha espinha se torne mais flexível do que um junco. Queres, em suma, a verdade? Vou exercitar-me, vou aproveitar os três dias de irresponsabilidade para despejar asneiras, afeiçoando-me aos barbarismos indispensáveis e para lamber todas as mãos e todos os pés que me aparecerem. A vida é dos que mais fingem — tudo está em saber disfarçar. O rapazote não está a percorrer cidades, de embaixada em embaixada, a rir-se e com razão, das minhas preocupações espiritualistas? E eu que faço? Não tenho uma codea para roer e durmo sobre um catre duro, como um penitente. A sociedade deu-me o diploma de sábio, pois bem; faço agora questão de merecer o título de besta e só me considerarei feliz no dia em que ouvir louvor à minha passagem, coisa que se pareça com isto: “ali vai o maior camelo desta terra!” E, no dia afortunado em que tal coisa se der, poderás procurar-me porque serei uma influência no país. A dúvida que me retém é esta: como devo ir: de burro ou de cão? 

Eu estava pasmado e o meu espanto cresceu de ponto quando Melquisedeque enfiou na cabeça a máscara de burro e sobraçou um grosso volume: 

— Que diz você? Roncou. Estou bem assim? 

— Eu acho que tu estás doido, Melquisedeque. 

— Não te pergunto se estou doido, pergunto-te se estou bem como burro. 

— Isso estás. 

— Pois então, meu amigo, prepara-te para a surpresa. 

— Que vais fazer? 

— Vou ao ministro. Ponho-me de quatro pés, subo as escadas, ornejo diante do reposteiro, entro, escoucinho, e... 

— E sais corrido a pauladas como aquele burro da fábula que se meteu a fazer carícias. 

— Então vou de cão... Filho, irrompeu de repente, eu preciso fazer pela vida, isto assim é que não pode continuar. É preciso transigir? Transijo. Os homens querem a mediocridade lisonjeira, seja feita a vontade dos homens. 

— Vais renegar a ciência, relapso? 

— A ciência? Tudo! O que eu quero é um emprego. Vou passar o resto da vida disfarçado em asno ou em cão ou alternativamente: em cão e em asno. Viverei como Pele de burro — em público besta quadrada, em casa, com o ferrolho corrido, filósofo espiritualista. E que pensas? A maior parte dos fantasiados que por ai anda esmoer uma ideia. Despe o princez, desmascaro-o e talvez encontres debaixo da belbutina um desgraçado que se atordoa ou um infeliz que tem fome. Já alguém observou que o carnaval, nos tempos de crise, é sempre deslumbrante — é que a loucura é proporcional ao desespero: há homens que bebem quando têm mágoas. Dizem que é a festa da Folia, a apoteose da Hipocrisia é que é. Como eu quantos haverá amanhã nas ruas? Enfim, nada tenho com os outros, dize lá — como devo ir: de burro ou de cão? 

— Não sei, Melquisedeque. 

— Vou de cão... 

Se os senhores encontrarem pelas ruas um sujeito pequenino, magrinho, com uma cabeçorra de cão, lastimem-no: é Melquisedeque que anda cinicamente a mendigar emprego ou a ensaiar-se para um alto cargo. 

Pobre Melquisedeque! Não sabe o mísero que a gralha pode disfarçar-se em pavão mas o pavão... esse é que nunca se disfarçará em gralha. Com cabeça de cão ou de burro ele há de ser sempre o mesmo filósofo, o mesmo erudito, incompatível com as propinas gordas. Em todo o caso não lhe matemos a esperança — deixemo-lo iludido nesses três dias de ilusão. 

— Burro ou cão... que animal!!!!

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