11/28/2022

Palavras de um stegomyia (Conto), de Coelho Neto


 PALAVRAS DE UM STEGOMYIA 

Andava eu, à tarde, a espairecer no meu pequenino jardim, onde as angélicas apendoadas prometem, para dias próximos, umas varas floridas de fazerem inveja ao próprio São José, quando um mosquito (stegomyia fasciata) imaginando-se talvez um rouxinol, entrou a perseguir-me esvoaçando em torno da minha cabeça com um zumbido enfadonho, só comparável aos exercícios de violino do meu melodioso amigo Eleutério. 

Esbordoei-me a valer, não para castigar o corpo pecador com as macerações que valem por massagens espirituais, porque robustecem a alma em graça e favor divino, mas para ver se apanhava o terrível e desafinado stegomyia. O animalejo, porém, que era astuto e ágil, fugia à bordoada rindo-se da fúria com que eu ia enrubescendo a cara e, principalmente, as orelhas. 

Desanimado, retrocedia deixando o jardim, àquela hora delicioso, quando me pareceu ouvir, não mais o enfadonho zumbido, mas palavras, palavras claras como as que saem da boca dos homens. 

Voltei-me espantado à procura do meu interlocutor misterioso e só vi o Jacinto que regava um canteiro de violetas, calado como o próprio silêncio. 

— “O senhor pode ouvir-me em particular?” Interrogou a voz misteriosa. É estranho! exclamei, sentindo um arrepio em todo o corpo e os cabelos crescerem-me na cabeça. 

Quem me falaria? Que invisível ser aéreo andaria a divertir-se comigo à hora santa em que os sinos espalhavam, na serenidade da tarde, os dobres religiosos das Trindades? Demônio? Não, demônios não ousam afrontar a voz dos sinos e poucos são os que se atrevem a fazer diabruras à luz do sol... (Faço exceção de ti, demônio de olhos claros e cabelos luminosos, tu não te preocupas com os sinos nem com o sol, mesmo a primeira vez que te vi foi em uma igreja, na missa das onze e a manhã era das mais radiantes: falo dos demônios do inferno e tu... tu és um demoninho... do céu). Mas, deixemos idílios satânicos, vamos ao caso misterioso. Quem me falaria? 

Procurava eu o mistério quando, de novo, ouvi a estranha voz: 

— "O senhor pode ouvir-me em particular? Quem lhe fala sou eu, Stegomyia fasciata, vulgo pernilongo, um seu criado”. 

Era o mosquito. 

Não se espantem os leitores — já no tempo de Esopo e depois nos dias de Babrius os animais falaram e com o bom Lafontaine isso, então, nem se fala!... até em francês se exprimiam, como dizia, maravilhado, e admirável Salema. Assim, pois, não há motivo para estranheza no que lhes vou contar. 

Requestado, com tanta gentileza, pelo stegomyia, não quis ficar por baixo de um reles mosquito e respondi, também fidalgamente: 

— Pois não, meu amigo, estou às suas ordens. Quer conversar aqui mesmo ou prefere o meu gabinete, mais agasalhado e, discreto? 

— Aqui mesmo, senhor. Peço-lhe apenas que nos aproximemos daquele sabugueiro em flor para que eu descanse em uma folha e possa falar com a calma necessária porque o que tenho a dizer é grave e reclama atenção. 

— Pois vamos lá para o sabugueiro. E fomos. Stegomyia partiu à frente, zumbindo mas, quando cheguei ao arbusto, foi um trabalho para descobrir o ilustre animalejo e, se ele mesmo me não houvesse chamado, dentre miúdas florinhas, eu teria desistido da interessante entrevista que vou tentar descrever, omitindo pequeninos episódios como, por exemplo, as ciladas que contra o meu interlocutor armou uma aranha esperta que o descobriu de longe e desceu, ligeira, por um fio, não logrando, porém, o seu perverso intento porque stegomyia, que vê longe, safou-se chamando-me para junto de uma sempre-viva vermelha. 

— “Meu amigo, já que sabe o meu nome, quero que também saiba onde nasci e o que faço neste ingrato mundo onde só podem viver em paz os grandes — as moscas, por exemplo, que são mais impuras que nós, porque nascem nas estrumeiras, não sofrem as perseguições de que somos vítimas. 

“Eu nasci numa gota de água, eu e mil e tantos irmãos que andam soltos por esses ares. Não conheci meus pais. Logo que senti forças para voar deixei a gota de água, subi ao macio espaço e compreendi imediatamente que o homem era o meu pior inimigo porque, tendo fome e procurando o nariz vermelho de um sujeito, não sei como escapei ao murro com que o perverso pôs as próprias ventas em sangue. Voei e tive de esperar pacientemente que todos dormissem para, então, regalar-me à vontade. O grande crime: chupar um pingo insignificante de sangue, muitas vezes bem ordinário: mais água que sangue, como o leite das vacas, outras vezes tão carregado de micróbios que é um nojo bebê-lo, só mesmo por necessidade. Mais do que nós sugam as pulgas e quem é que as persegue com medidas higiênicas, os tais preventivos que nos põem tontos, principalmente uns pós que fazem uma fumaça dos diabos à qual não há mosquito que resista? 

“Os nossos filhos — e dizem que os homens são humanos! — não chegam, muitas vezes, a ver a luz do sol — matam-nos ab-ovo: despejando as tinas, estancando as poças, não deixando água, nem mesmo nos jarros, só para que não tenhamos lugar para a criação da prole. É justo, Deus disse: — Crescei e multiplicai-vos e os homens, contrariando a ordem expressa do Senhor, querem que diminuamos, mais do que isso: que desapareçamos e empregam todos os meios para que a iniquidade se realize. E por quê? Porque uns sábios afirmaram que os transmissores da febre amarela somos nós. 

“Ora, francamente, ou esses sábios não enxergam uma polegada adiante do nariz ou querem imitar aquele lobo da fábula, porque a verdade é que nós entramos nessa história de febre amarela como Pilatos no Credo. Dizem eles: “o mosquito é o transmissor certo e talvez o único da febre amarela, do impaludismo (febres intermitentes), etc. 

“O mosquito transmissor da febre amarela, muito comum nas nossas habitações, é o stegomyia fasciata, conhecido geralmente pelo nome de — mosquito ou pernilongo rajado”. 

“Eis a acusação; agora vou eu, em meu nome e em nome de todos os meus irmãos, produzir a defesa que o senhor me fará o obséquio de tornar pública: 

“O mosquito é o transmissor — o que transmite é aquele que faz passar além ou de um corpo para outro, no caso vertente, alguma coisa, que aqui é o gérmen da tremenda pyrexia. Entre mosquitos — e o senhor pode consultar a estatística da nossa mortalidade — nenhum foi jamais vitimado por essa moléstia, própria do homem. O que acontece é o seguinte — nós (e, como nós muitos desses que se dizem filantrópicos) vivemos à custa do sangue humano, assim quis o Senhor que fosse e assim há de sempre ser: o homem é, pois, o nosso hotel. Ora, se o senhor entrar, um dia, no seu hotel e comer um bife com cogumelos (eu detesto os galicismos porque sou jacobino) que lhe ponha no estômago uma carga sofrível de tóxicos, culpa o bife? Não, atira a responsabilidade para os cogumelos que o envenenaram, não é verdade? Pois, conosco é o que se dá: nós somos o bife, os cogumelos são o sangue humano. Se alguém tem direito a queixar-se não é o homem, é o mosquito que bebe cada sangue que é mesmo uma imundície. 

“Eu já bebi um sangue que era só cerveja, bebi, digo mal, provei e enjoando, porque detesto bebidas, fui procurar outro sangue mais sóbrio e encontrei-o em um rapaz. Mal comecei a sugar-lhe a nuca, que era alva como a de uma mulher, senti que a cabeça do rapaz oscilava — estava na mona por inoculação de ebriez, dirá o senhor — engano: estava com uma congestão e morreu, horas depois. Fui eu o transmissor da moléstia? Não; eu podia, quando muito, ter transmitido uma bebedeira, não acha? Mas congestão, nunca! 

“Porque não cuidam os homens de purificar o sangue? Há tantos purificadores — o mercúrio, o iodureto, o arsênico e ainda outros, não: enchem-se de moléstias e depois querem que os mosquitos, que comem sardinha, arrotem garoupa, como vulgarmente se diz. Não — o mosquito não transmitiria a febre amarela se não a encontrasse no sangue. 

“E não fica nisso, há de ver — dir-se-á amanhã que o mosquito é o transmissor de todas as moléstias físicas, mesmo de algumas morais, veículo nefando dos germens nefastos à vida e à moral. Assim, se certa dama incorrer em grave falta, ninguém atribuirá o pecado à sua cabecinha leviana nem ao seu temperamento abrasado, mas aos mosquitos e como hoje, de acordo com a doutrina de Lombroso e tutti quanti, não há mais criminosos senão degenerados de várias categorias, não haverá, igualmente, impudor mas dentadas de mosquitos. E será frequente ouvir-se: “coitada de fulana, uma senhora tão séria, para o que havia de dar. Aquilo foi algum mosquito que a mordeu levando vírus de amor”. E quando se der algum desfalque também se poderá dizer: 

— “Veja você, o Cabedelo, um exemplo de honestidade. Quem diria! Eu, custa-me a acreditar. Para mim ali andou pernilongo”. E o mosquito passará a ser o bode expiatório ou o burro de carga de toda a pouca vergonha! 

“Se tivéssemos um laboratório de análises os amarelentos podiam ficar descansados porque não lhes iríamos à pele, mas o mosquito, como o poeta, prend son bien où il le trouve e ainda berram. 

“Berrem contra os que apanham febre amarela, berrem contra a sujeira, contra o desasseio, contra os comedores que nada fazem e não estejam a descarregar a culpa sobre o mosquito. 

“Há mosquitos em Paris, em Londres, em Bruxelas, em todas as cidades, em todo o mundo e porque não se manifesta universalmente a febre amarela? Respondam — é que em todo o mundo são mais os atos do que as palavras. 

“Saneiem a cidade e hão de ver que o mosquito, sem perder os seus hábitos de sanguessuga, será tão inofensivo ao homem como as andorinhas que chilreiam à beira do seu telhado. 

“Uma criança, mamando no peito de uma ama inficionada, não só ganha o mal como, passando ao peito de outra ama, logo o transmite. A culpada é a criança inocente? Não, culpada é a ama... eis o caso do mosquito. 

“Agora, meu senhor, por quem é, defenda-nos, escreva sobre nós, não é vergonha para a sua pena descer a um bichinho tão ínfimo — o grande Virgílio escreveu o Culex

“E adeus! Prometo em meu nome e, em nome de todos os stegomyias que, se escrever sobre nós, poderá, doravante, dormir sem mosquiteiro, palavra de pernilongo”. 

E eu, para não ser mordido, prometi ao stegomyia reproduzir as suas palavras e cumpro a minha promessa. 

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