11/28/2022

Luar (Conto), de Coelho Neto

 

LUAR

A tarde ia muito fresca, muito doce, toda azul, sem névoas. Já o sol mergulhara por trás dos cerros que resplandeciam como zimbórios e cúspides de uma rica cidade de lenda, toda de ouro puro, sob velarios tendidos de púrpuras atálicas e os últimos raios solares abriam-se em leque flamejante sobre as lombadas acesas. 

As árvores, de um desenho forte, em nítidos relevos, realçando todos os detalhes, pareciam cravadas na lâmina esbraseada do ocaso, como bordadas a retrós negro sobre uma tela de seda chamarreada. Um silêncio de êxtase ia adormecendo o campo raso e extenso que se esbatia em linhas indecisas, nas quais, a espaços, ressaltava, em tom mais claro, o sapé de uma choça com o terreiro aberto em meio do pomar, como um resto de luz na penumbra serena do crepúsculo. 

A estrada direita, alvacenta, desaparecia no bambual que vergava em movimentos demorados, aflitivos, de ânsia e por ela tardo, tristonho, a cabeça baixa, as mãos juntas de encontro ao peito, vinha vindo um negro. 

À varanda, reverdecida de ipomeias, chegava, na aragem, o cheiro doce das açucenas que abriam; os grilos começavam o seu canto nas ervas: era a hora das juritis; quem fosse ao açude havia de vê-las à beira da água, trêfegas, esvoaçando assustadiças com turturinos doridos. 

Empalidecia; os cerros tornavam-se escuros, perdiam a cor dourada e uma névoa fina, rala, subia da terra, envolvendo-os. Longe, num canto do pasto onde frondejavam paineiras altas, o gado mugia deitado ou esfregando-se voluptuosamente pelos troncos; borboletas noturnas vinham vindo da mata pesadamente, num voo incerto, as azas bambas, atordoadas, como se houvessem acordado — nuvens de mosquitos esfarinhavam-se no ar. O céu tomava-se violeta, num esmaecido e lustroso tom de porcelana antiga; estrelas piscavam, aqui, ali, dispersas. 

Em casa, como se o poderoso misticismo da hora contivesse as almas, todos guardavam silêncio, as mesmas crianças, reunidas a um canto da sala, brincavam baixinho, cochichando e o velho Estevão, com a sua apiançada dispneia de asmático, estirado na cadeira, os braços abandonados, de olhos entrecerrados, deixava-se afagar com volúpia pelo ar puro e fresco que entrava, às bafagens, como em hálitos regulares. 

Naquele silêncio religioso um som triste permanecia insistente como um zumbido lúgubre que impressionava — vinha do lado da estrada, mas os meus olhos estavam retidos na contemplação da mata que negrejava alta, dominando a colina, com as suas grandes árvores cerradas e imóveis. 

A lua nascia cedo e era de lá que ela devia surgir como um grande pássaro que ali tivesse o seu ninho macio e saísse, pela hora da noite, remontando silenciosamente aos ares, todo branco na escuridão ferrugínea. Morcegos esvoaçavam aos trissos ríspidos, passavam de esfuzio, confundindo-se com as últimas andorinhas. 

O velho Estevão queixou-se do frio, pediu que fechassem a porta e logo pôs-se a tossir. Deixei-me estar; olhava a mata soberba que era um empastamento negro no fundo esmaecido do céu vesperal mas o som triste atraiu-me — voltei-me para o lado da estrada que amarelecia entre as duas bandas do campo e olhava quando ouvi a voz ansiada do Estevão: “aí vem o poeta!”. 

Na colina acendiam-se as casas dos colonos, cabras berravam. O céu, sobre a mata, esclarecia, ficava de uma cor melancólica e no pasto, longe, cintilavam vagalumes como se homens andassem por ali fumando, aparecendo, desaparecendo, escondidos pelas moitas negras. 

O som vinha vindo, cada vez mais soturno. Um raio de luz amarela estendeu-se na varanda e uma voz saudou: “Boa noite!”; outras vozes responderam e houve um alarido alegre de crianças. A natureza, passada a transição do crepúsculo, parecia acordar, transformada para uma nova vida, mais calma. A Luz andrógina voltava para a terra o seu flanco feminino — era a hora criadora. A hora maternal da lua, hora silente e de amor, hora de iniciação. O meu espírito perdeu-se em sonhos, reminiscências de leituras afluíram-me à memória — eras velhas da Humanidade, mistérios do culto astral, cenas do rito pagão, tão cheio de encantos. 

Ergui os olhos — a mata começava a branquear como se um véu fino viesse caindo de leve sobre as frondes, flutuando, tênue e solto, entre os galhos; reapareciam, mais negros, os contornos do arvoredo, destacavam-se os altos e sobranceiros jequitibás e, de olhos fitos, hipnotizado pela magia daquela solenidade extática, eu olhava: a luz infiltrava o seu esplendor na densidão florestal, apareciam clarões alvíssimos; lembrei-me, então, dos mistas de Orpheu, todos de cândidas túnicas, com harpas soantes, as cabeças coroadas de hera, caminhando maciamente entre os fortes carvalhos da Tessália divina, graves, silenciosos, seguindo os passos do grande iniciado deifico para o vale feliz e aromal do Tempé. 

A sugestão poderosa da reminiscência trouxe a ilusão completa — era o paganismo poético que eu revivia naquele suave minuto rápido de sonho. Diana evocava em minha alma o seu culto, a Lua, antiga e fiel companheira das peregrinações e dos amores humanos, a Lua dos Trácios selvagens, a tríplice Hécate sanguinolenta empolgava-me como se o seu poderoso filtro se fosse espalhando pelo sangue das minhas veias fazendo-me passar como a natureza, numa transição suavíssima, da grande Luz das ideias novas para o frio palor dos ideais primitivos. 

Eu ali estava com o mesmo enlevado respeito e o mesmo encantamento com que na rocha escura e escalvada da agreste Samaria o pastor emorita do tempo de Ioacanã e de Jesus, vendo o primeiro clarão do astro noturno, ficava de pé, com o queixo na volta do cajado nodoso, entre as cabras do seu rebanho e, ao ascender da lua no céu livre e pálido, bradava atroadoramente, como por uma buzina: “Eschmún! Eschmún!” Acenando com a grossa e pesada lã de ovelha que lhe servia de agasalho na caverna fragosa. Astarté dos fenícios, branca, celestial amiga dos navegadores... 

Eu estava assim enlevado quando o som soturno subiu de perto; um vulto caminhava rente com a varanda: era Terêncio, velho africano que ali estava tocando o seu urucungo; às vezes sapateava resmungando e lá ia de olhos altos no céu... Era o “mina”, o homem da selva negra, que festejava ritualmente o astro contemplativo; era o bárbaro que celebrava, à sua maneira, o culto da natureza luminosa como, talvez, ainda celebrem nos matos bravos ou no terreiro das aringas os seus irmãos africanos. Calou-se de repente e houve um silêncio maior e, sobre as árvores, a lua imensa surgiu, alastrando a campina vasta de claridade. De repente, Christina, abrindo a porta, saiu à varanda entre as crianças que saltavam e riam e, levantando nos braços o pequenino Carlos que ria gostosamente derreando-se, mostrou-o à grande lua serena. 

— Olha lá em cima, meu filho! Olha... E, sacudindo-o, pôs-se a cantarolar: 

Lua, luar
Tomai este menino
E ajudai-me a criar... 

As crianças, aos saltos, com as camisolinhas tufadas, repetiram: 

Lua, luar... 

Por fim, Christina, num frenesi amoroso, apertou o filhinho nos braços e beijando-o com voracidade, sacudindo-o, agarrado ao colo, lá foi com ele, a correr. As crianças ficaram brincando e o velho negro, sentado no último degrau da escada, voltou ao seu uruncungo e ao seu canto e eu deixei-me estar olhando, olhando e, como eu, no terreiro, uma mulher, de branco, olhava o céu e a lua — alguma colona talvez... que pediria ela? 

Quando deixarão de atravessar as almas entristecidas esses queridos espectros das primeiras crenças!

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