11/28/2022

O peixe (Conto), de Coelho Neto


 O PEIXE

Logo que se espalhou a notícia da prisão de Jesus — nesse tempo não havia jornais de grande (nem de pequena) tiragem, mas havia mulheres — os discípulos que eram apontados, em Jerusalém, como cúmplices do nazareno, trataram de acautelar a vida, não porque receassem perdê-la — que era a vida amargurada que levavam comparada à outra, de tranquilidade e glória, que lhes prometera o Mestre excelente? — mas porque tinham uma missão a cumprir que era a de levarem aos mais remotos e rudes confins da terra a doce palavra tomada nos lábios do próprio Deus. 

A polícia do sanhedrin, açulada por Malcus, que perdera uma orelha, varejava os khans das estradas, invadia os bazares que referviam nas verdes e floridas vertentes do monte das Oliveiras, trazia vigiada a casinha de Simão, na Bethânia, onde ainda durava o suave cheiro do óleo com que Maria untara os pés do moço amado e mantinha asseclas nas imediações das granjas de Getsêmani de onde o vento trazia um cheiro aborrecido e morno de azeite novo. 

Os mesmos galileus, de antes tão dedicados ao filho do carpinteiro, bandearam-se covardemente e, como conheciam os lugares proferidos de Jesus, prestavam-se a guiar os esbirros, já subindo com eles aos velhos cedros da colina sob cuja fronde, à tarde, quando os imensos galhos se cobriam de pombas, os que deixavam os pilões e os tanques, lustrosos de óleo, iam repousar um momento olhando, ao longe, as aldeias caladas que as névoas azuis iam pouco a pouco abrumando, ou desciam às margens escarpadas e rumorosas da pedrenta torrente do Cedron onde moças cantavam entre linhos alvos, corados nas ervas cheirosas. 

Jerusalém, a cidade maldita, era um perigoso sítio para quantos haviam acompanhado o mancebo divino que, trilhando as estradas de areia ou os caminhos pedregosos dos montes, espalhara, por toda aquela região amorável, a doutrina do amor e milagres. 

Cefas, muito comprometido, ofereceu-se para agasalhar os companheiros em Cafarnaum, na sua miserável cabana de adobe, à margem do lago de Genezaré. Não havia riqueza mas o Senhor, mais de uma noite, cobrindo o rosto com o seu alvo manto, dormira tranquilamente sobre um estrame, perto das redes que tresandavam à maresia e, de manhã, quando os primeiros barcos, deslizando na areia, molhavam as negras proas na água transparente, abrindo os olhos, abençoara aqueles muros enegrecidos de fumo e aquele teto onde as cegonhas costumavam parar olhando os espaços azuis que o sol ia dourando. 

Entre os galileus, das cinco cidades estariam a salvo da perseguição e, cumprida a dolente profecia, sairiam todos, cada qual a seu rumo, a espalhar a semente bendita que o divino apóstolo lhes deixara na alma. 

A proposta do pescador foi aceita e, como a noite era negra e alta, logo foi resolvido que deviam aproveitar o sono da cidade para a fuga; e fugiram. Não diz a tradição como fizeram a viagem, ora atravessando campinas rasas, de grande esterilidade, sem água e sem sombra, ora galgando alcandores de rochas nuas que, ao sol, ardiam e queimavam como brasas ou passando em desfiladeiros altos, de pedra negra, fervilhantes de víboras que silvavam ameaçadoras, à beira das luras. — Chegaram a Cafarnaum ao cair da tarde quando os barcos recolhiam lentos com o peixe vivo saltando, no fundo da quilha, num resto de água que rolava. 

Os pescadores, tanto que Cefas lhes dirigiu a palavra, logo o aclamaram com alvoroço e, esquecendo a pesca e a ceia que os esperava, quente e cheirosa, nos lares, às últimas luzes da tarde dourada, sentados em círculo na areia, pediram ao companheiro notícias do lindo moço que tantos milagres fizera naquelas paragens de simplicidade. E Cefas suspirando, com os olhos voltados para os lados de Jerusalém, anunciou aos pescadores a prisão do Messias. 

Foi uma consternação entre a boa gente. Alguns, mais exaltados, falaram em partir para a cidade vil, com armas. Forçariam as portas, assassinariam os guardas e iriam arrancar Jesus às mãos dos seus algozes Cefas, porém, que tinha experiência da vida, agitou a cabeça lustrosa, dizendo:

 

— Amigos meus, as coisas parecem muito fáceis quando as olhamos de longe — eu também tive ímpetos de levar tudo a gume de espada, cheguei mesmo a decepar a orelha de um soldado recalcitrante e teria debandado a guarda se o Mestre me não houvesse detido dizendo-me, com a sua voz doce e persuasiva: “Que não me opusesse à realização da profecia”. Embainhei a espada contendo a fúria e deixei-me ficar para um canto remoendo o meu ódio. Depois chegaram legionários cobertos de ferro, com lanças e, querem vocês saber, meus amigos? foi preciso que um galo cantasse três vezes entre as oliveiras de uma herdade para que eu recuperasse o ânimo que me havia abandonado. Ninguém imagina o efeito que produz no espírito de um homem a presença da polícia — é preciso ter sentido o que eu senti, eu que, vocês sabem, não sou medroso — afronto com calma as mais desabaladas tempestades e, mais de uma vez, atravessei sozinho o bosque de Tiberíades onde há feras que atacam... mas a polícia... não sei. Nós somos os depositários da palavra divina, continuou Cefas — se perecêssemos, quem espalharia entre os homens o gérmen da Nova Doutrina? Eu sei que vão crucificá-lo e, se não fosse a missão de que fui por ele incumbido, teria reclamado uma cruz, menor que a dele, porque sou um discípulo, mas com os mesmos cravos, no Calvário... Não devo, é preciso que me sacrifique pela sua Ordem — sou apóstolo, tenho de viver. E todos, em torno, lamentaram comovidamente a sorte daquele discípulo fiel que, por amor da doutrina e da salvação dos homens, deixara de morrer no monte, ao lado de Cristo e, sem parar, ferindo os pés nas pedras e nos espinhais dos ásperos caminhos, deixara Jerusalém a largas pernadas para refugiar-se em Cafarnaum. 

Ora, em Cafarnaum os rebanhos eram raros e, quando se abatia uma rês, era um acontecimento de que se falava longamente desde Magdala até Corazim. O lago nutria as populações que lhe ficavam à beira — peixe e frutas, mas não havia. Sabia disso Cepas e, caminhando vagarosamente, à brisa fresca da tarde, para a sua cabana toda aberta em frinchas, com erva brava pelos muros, foi preparando o espírito dos companheiros: 

— Olhem, amigos meus, aqui não há os recursos fáceis de Jerusalém, isto é uma pobre aldeia de pescadores — há o bom peixe das águas e a boa fruta dos pomares e alguma caça gorda, no tempo dos patos, e é tudo: tenham vocês paciência, é pelo amor de Deus. E, empurrando a porta da cabana, notou que ela resistia como se a houvessem pregado; forçou-a mais rijamente, e lá a levou dentro com fragor. 

Um ar úmido, tresandando a bolor, fez com que o apóstolo recuasse e, como um pescador aparecesse com um feixe de palhas embebidas em resina levantando uma chama rubra e crepitante, um bando de morcegos desprendeu-se das vigas e voou, perdendo-se nos ares melancólicos, toldados de brumas, que era o triste momento do cair da noite. 

Cepas entrou seguido dos companheiros e como não houvesse pescado nem lume um velho ofereceu-se generosamente para fornecer-lhes a ceia e logo pela filha, uma linda moça morena e forte como um cedro novo do Líbano, lhes mandou duas fundas malgas onde, em molho corado e perfumado a coentro, apareciam as postas de um peixe alvo e gordo, que cheirava apetitosamente. 

Sentaram-se os discípulos e, devorando, recordavam as passagens felizes do bom tempo — as tardes à sombra do cedro do Olivete ou no beiral das fontes onde se reuniam as raparigas, à hora em que os trituradores esmagam as azeitonas nas grandes fábricas de azeite de Getsêmani, os passeios à Betfagé, as subidas à Betânia. Alguns, ainda agarrados ao mundo, pensavam, com saudade, nas belezas da cidade vil — nos seus palácios, nos seus banhos, nos seus mercados e no formigar constante de homens que de manhã, à hora dos primeiros sons das buzinas romanas, entravam cantando, com os jumentos carregados de frutas, moças com ânforas de leite, gemores de farinha e gigos de ovos, outras com aviários de junco, as cabeças graciosamente ornadas de lírios, um ramo de rosas como a mostrar a divisão dos seios. 

Lá fora, a lua silenciosa iluminava de alvo o lago adormecido e foi o mesmo Cefas o primeiro a falar no Mestre: 

— A esta hora que fará Ele? suspirou. 

—Talvez pense em nós. 

— E nós aqui comendo este saboroso pescado que é o melhor de toda a Palestina... 

— Eu comeria de bom grado um pouco de carneiro. 

— E eu um bolo de farinha e mel ou um punhado de tâmaras. 

— Contentemo-nos com o peixe que outra coisa não há nestes lugares que o Senhor visitou e amou e lembremo-nos de que se fazemos este sacrifício, que há de ser contado no céu, o Mestre amado sofre a injúria, sangra, expira, talvez, entre os soldados boçais do romano e a cáfila cruel dos sabujos do Sanhedrin. 

Um largo e profundo suspiro abalou os velhos muros da cabana e as colheres raparam as malgas onde apenas restavam as espinhas chupadas e, como nada mais houvesse, os discípulos desceram à fonte e Cefas, juntando as mãos, com os olhos no céu, disse cheio de unção devota: 

— Seja tudo pelo amor de Deus! E, enquanto se demoraram em Cafarnaum, Cefas e os seus companheiros não comeram mais que peixe do lago... 

É por isso, para comemorar o sacrifício dos apóstolos que, durante a quaresma, o peixe é de preceito... Enfim, se não é por isso (bem pode ser que não seja porque essa tradição é muito contestada), deve ser por outro motivo, bem desagradável aos peixes que nada fizeram e que na semana santa têm a vida por um fio e custam os olhos da cara.

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