11/28/2022

O violino (Conto), de Coelho Neto


O VIOLINO

No recesso mais temeroso de uma embrenhada floresta onde o sol era tão raro como os passarinhos, avultava, calada e sinistra, alta e de muros de ferro, cercada por um fosso no fundo do qual luzia uma água morta, logradouro de rãs que, desde o cair das noites, alteravam o silêncio com um lúgubre coro, a alcáçova do gênio. 

Homem algum, cavaleiro ou lenhador, por mais atrevido que fosse, jamais chegara àquele encantado sítio; as mesmas águias temerárias, ainda acossada pelas tormentas, evitavam, espavoridas, as ameias da mansão; só as estriges e os vampiros chirriavam, trissavam esvoaçando à volta das torres sombrias onde tinham os seus ninhos bem agasalhados. 

Um exército de gnomos e enxames de silfos vigiavam a terra e o ar e, à beira dos rios, nas pedras das fontes, nixes e ondinos, com os cabelos verdes emaranhados de algas, faziam a guarda silente das águas e ai! de quem se aventurasse pelos meandros de tão fechado bosque — aquele que chegava a avistar o viso de uma das torres não olhava jamais o sol que redoura os campos. 

Tão tristonha morada, perdida na selva, devia ser como um cárcere. Quem a visse, quem a percorresse, não lamentaria o sequestro do mundo: os salões, que eram incontáveis, variavam no feitio e na riqueza: neste os muros eram todos de prata, noutro eram de claro cristal oude oniz negro e rebrilhante. Os tetos resplandeciam como céus recamados de pedras finas — o ladrilho era todo de pórfiro, de aventurina, de topázio e de jalde. Fontes aromáticas, golfando sonoramente, refrescavam, perfumavam todos os aposentos e os jardins imensos, de áleas semeadas de mica, estavam sempre floridos e por eles, festivamente, cantavam legiões de pássaros mimosos graciosas corças e antílopes, juntos à beira dos lagos espelhentos, olhavam pensativamente os cisnes que nadavam. 

Não havia, entretanto, em toda a imensa alcáçova, a sombra de uma ancila — todo o serviço era feito misteriosamente e a única criatura que habitava a vastidão era a mimosa e linda princesa Eudália. 

Filha de reis, tinha Eudália cinco anos quando, uma tarde, passeando entre as aias nas alamedas do parque real, foi arrebatada por uma águia que, sem dar tempo a que acudissem, voou, voou tão alto que, quando as aias, saindo do espanto em que ficaram, ergueram os olhos, nada mais viram no espaço senão as nuvens que se acumulavam. 

Foi uma consternação na corte e em todo o reino. Emissários saíram propondo prêmios a quem descobrisse o paradeiro da princesa, por fim lembrou-se o rei, para animar as pesquisas, de oferecer a mão de Eudália e a coroa real a quem a conquistasse ao gênio, porque um feiticeiro, consultando os seus grandes livros mágicos, chegou a descobrir que o rausor era um gênio e dos mais poderosos. Foi tudo em vão. 

Cobriu-se a corte de luto mas, com o correr dos anos, Eudália foi esquecida — só a rainha a chorava quando, atravessando a câmara deserta, via a cama de fios de prata em que dantes sorria a princesinha. 

Eudália, entanto, crescia feliz na merencória alcáçova da selva. Nada lhe faltava — os seus desejos eram imediatamente satisfeitos. 

A princípio ela espantava-se de ver a mesa servida sem que aparecessem criados, de ouvir músicas e cantos, de achar flores na sua câmara, de ser levada suavemente de um a outro ponto sem ver, sem sentir os braços que a transportavam pouco a pouco, porém, habituando-se à vida de encantos, achava naturais e simples todos os prodígios. 

O gênio, esse, só de longe em longe lhe aparecia, porque andava, quase sempre, errando. Era um lindo mancebo, louro, de olhos azuis, mas triste, de uma tristeza que se comunicava à alma da formosa Eudália, já então moça e linda. 

Quando ele permanecia no castelo, tempo tão curto e tão feliz para Eudália! ela cercava-o de carinhos, tomava-lhe ao colo a formosa cabeça e, ameigando-o, asseteava-o com perguntas sobre a sua vida, sobre o mistério daquela residência; ele, porém, mantinha o mutismo, e para evitar mais perguntas, pretextava uma viagem e levantava-se à pressa. Sempre, porém, que tinha de sair, chamava Eudália e recomendava-lhe que respeitasse o salão que era fechado pela porta de bronze. 

Sucedeu, porém, que, sendo, de uma das vezes, mais longa a demora do gênio e conhecendo Eudália todas as maravilhas do solar, cresceu no seu coração o desejo de ver a sala proibida. Que estranhos e admiráveis tesouros haveria lá dentro? Durante quatro dias com as suas noites Eudália lutou contra a curiosidade para não falhar à promessa que fizera; no quinto dia, porém, caminhando ao longo do corredor que levava à sala do mistério, desejou, com ânsia, ver o que nela se continha e, como todos os seus desejos eram imediatamente satisfeitos, logo se escancarou, sem rumor, a pesadíssima porta. 

Eudália, com o coração sobressaltado, entrou no recinto, que era iluminado por uma claridade azul e, correndo os olhos pelas paredes nuas, nada viu que reclamasse a sua atenção e sorriu dizendo consigo mesma: “foi, sem dúvida, para experimentar-me que ele proibiu que eu aqui entrasse...” 

Caminhando, porém, descobriu a um canto um toro de madeira e num dístico estas palavras: “pedaço do tronco de Hain, a árvore do Bem e do Mal...” perto estava um fino arco, com estes dizeres em letras de ouro: “Arco de Eros, o Amor”. Pendente da parede um nastro de filamentos: “Clinas do cavalo Pegas”, ao lado quatro fios compridos: “Cabos da nau Argos”, não longe um “osso da cauda de um delfim”, um “báculo de pastor ariano” e “os quatro cravos da cruz de Cristo, os que pregaram os membros do Messias e o que cravou a legenda irônica no tope do cruzeiro”. 

Eudália sorriu vendo aqueles estranhos objetos, e ainda sorria quando sentiu que alguma coisa lhe caía aos pés — olhou e viu uma finíssima serra de diamante e logo uma voz lhe disse: 

“Serra o toro de Hain e tira duas lâminas bem finas, dá-lhes a forma de um gracioso tronco de mulher com a cintura bem justa — terás o Bem do amor e o mal do Ciúme. Adapta-lhe, na parte superior, o báculo do pastor ariano e na parte inferior o osso da cauda do delfim que conservam toda a bucólica dos campos e toda a melancolia dos mares. Grava na volta do báculo, dois em cada lado, os cravos da cruz e terás os pontos cardeais do sofrimento — prende nos cravos e liga-os ao osso do delfim os quatro cabos da nau Argos nos quais silvaram os quatro grandes ventos de Éolo. Toma o arco de Eros e nele estira de ponta a ponta as finas clinas brancas de Pégaso, que é o Ideal que arrebata. E, com o Amor e o Ideal, repassa os cabos retesados da nau Argos e terás uma companhia na solidão em que jazes”. 

Calou-se a voz e Eudália ficou largo tempo a pensar no seu conselho até que se resolveu a executar o que ela lhe dissera — e assim fez. 

Dias e dias passaram sem que ela sentisse, entretida, como estava, naquele emprego, até que, ao cabo de uma semana trabalhosa, realizou o seu desejo — tinha o objeto nas mãos e, passando e repassando o arco pelos finos cabos, notou que alguma coisa gemia torturadamente. De novo a voz falou no mistério: 

“Abre dois S na caixa do instrumento — um será o sorriso, outro será o soluço”. Assim fez Eudália e, de novo, repassando suavemente o arco, teve como uma visão angélica — e os primeiros acordes abalaram de tal modo a alcáçova que todo o encanto desapareceu e a pesada mole aluiu com estrondo e todos os gnomos, silfos, nixes e ondinos que assombravam a floresta desapareceram da noite para o dia. 

Justamente no momento em que soavam os primeiros acordes o gênio chegou ao castelo e descobriu a desobediência de Eudália. Para vingar-se, então, por haver uma mulher, desvendado o seu segredo, brandiu a sua vara de encanto destruindo a alcáçova e arrasando a selva e, furioso, pronunciou estas palavras cruéis: “vivias feliz, desobedeceste à minha ordem — sofre para o todo sempre, alma curiosa, encerrada na própria carcérula que construíste”. E a alma de Eudália, abandonando o divino corpo que habitava, passou-se para a caixa do objeto que pacientemente construíra com tudo quanto encontrara na misteriosa sala fechada pela porta ênea. 

Anos e anos correram. Ninguém mais se lembrava da alcáçova do gênio quando, uma tarde, um menestrel errante, parando, para repousar entre as augustas ruínas, ouviu um piar mimoso — baixou os olhos e, entre as urzes fortes que livremente cresciam enfestoando a pedra enegrecida, descobriu um objeto de extravagante feitio — tomou-o curiosamente e pôs-se a examiná-lo e viu que alguma coisa havia dentro dele — um pássaro, talvez... não!... Ao lado jazia um arco, o arco de Eros... 

O menestrel, sem atinar com a utilidade de tais objetos, ia-os já abandonando quando uma voz suave pôs-se a dizer: “repousa o instrumento sobre o coração e agita-lhe as cordas com o fino arco que empunhas e ouvirás todas as melodias — desde o canto inocente da ave, porque muitas pousaram na árvore do Paraíso, até o ululo dos ventos que sopraram, vergando, os cabos da nau Argos. Nele acharás a poesia suave dos campos e a epopeia grandiosa das tormentas no mar, a voz do Amor e todos os sofrimentos que resumem os cravos que pregaram Cristo e o seu opróbrio, enfim ouvirás quanto cabe entre os dois polos do Sorriso e do Soluço que têm as suas passagens nos dois “S” talhados na caixa rubra, porque foi feita toda ela com finas lâminas tiradas da Árvore do Bem e do Mal. 

“O que tens, menestrel, é o sacrário de todas as vozes e, dentro do sacrário, jaz a alma que afina a melodia dando-lhe a expressão. Como o ar que atravessa um jardim florido leva o perfume das flores assim os sons que repassam através de uma alma levam o sentimento”. 

Ouviu o menestrel e, tomando o arco docemente, extasiadamente, pôs-se a aflorar as cordas do instrumento. 

E foi assim que, na terra, apareceu o violino.

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