11/28/2022

Vigília (Conto), de Coelho Neto

VIGÍLIA


“Madrid, 18,
“Hoje, pela manhã foi preso um indivíduo que atirou grandes e pesados ramos de flores à carruagem da princesa D. Maria Teresa, irmã de sua majestade o rei Afonso.
“Verificando-se que os ramos só continham flores e que o indivíduo era um simples entusiasmado, foi ele posto em liberdade”.

(Telegrama de O País.) 


À primeira luz da manhã ei-lo de pé, pálido, com fundas e roxas olheiras, dobrado de fadiga, esgotado pela vigília da noite longa, rolando sofredoramente, pavidamente, no leito real de baldaquino armoriado. Que noite angustiada! Não padeceria mais um réu que, na véspera do suplício, estirado no seco grabato, olhasse, de instante a instante, o alto e gradeado respiradouro à espera do primeiro alvor da madrugada mortal. Mísero príncipe! 

De volta das festas, ansioso por um instante de silêncio e sossego, recolhe-se à sua câmara tapeçada. 

As paredes sombrias estão cobertas de retratos dos grandes, dos fortes reis da Espanha: de Afonso o poeta até Carlos V o senhor do mundo e outros e outros perdendo-se na penumbra, uns vestindo veludos, outros acobertados de aço e, entre eles, como a própria bravura ibérica, o gênio guerreiro da península, o Campeador, com as mãos apoiadas no punho do montante, os olhos além, como a perscrutar o horizonte; e todas as figuras parecem fitar, com pena, o jovem rei em cujas veias um sangue fraco circula com o vagar de uma aguazinha de arroio que vai secando. 

Lá fora, além dos muros espessos do palácio, velam as sentinelas armadas contendo o povo generoso que aclama o moço monarca, e ele ouve as vozes confusas da populaça, ouve os sons das charangas que passam, o atroar dos vivas que reboam e, de instante a instante, como a recordar a grande religiosidade da terra de Santo Ignácio e de Santa Teresa, os sinos bimbalham alegremente porque a Igreja celebra igualmente, com júbilo, a ascensão ao trono de mais um defensor da Fé. E ele ouve, escuta. 

Vai a noite seguindo o seu curso, recama-se o céu de estrelas, a lua aparece, lua de Maio, clara e linda, de uma doce luz transparente. Um clarão amarelece o espaço como o livor de um incêndio — é que toda a cidade resplandece iluminada festejando o acontecimento de que é ele o protagonista. Ele é a causa única daquela alegria, foi para honrá-lo que outros príncipes deixaram os seus reinos seguidos de numerosa comitiva; que os embaixadores chegaram apressados, com presentes, de todas as partes do mundo; que os comboios se multiplicaram para conduzir os homens curiosos do fulgurante espetáculo. 

Todos os palácios têm hóspedes de estirpe — os grandes de Espanha receberam e agasalharam representantes das nobres cortes, os hotéis regurgitam de forasteiros, as modestas locandas foram disputadas e todo esse movimento de simpatia fá-lo tremer apreensivo. Onde estariam eles? 

Pouco a pouco a cidade vai escurecendo; ainda passam grupos, e, às vezes, uma estropeada de animais. O leito lá está a esperá-lo... 

Dormir!? E se alguém houvesse penetrado no palácio aproveitando-se de uma distração da guarda que anda com a atenção nas festas, esquecida dos seus deveres ou, quem sabe? Talvez mancomunada com os assassinos? Pode estar alguém ali dentro, à espera da hora silenciosa, com um punhal pronto para o crime. 

A tremer, lento e cauto, ei-lo a correr os cantos, descalço, contendo o coração — afasta os pesados reposteiros, olha, inclina-se para espiar atrás dos moveis; desconfia e estira-se no soalho atapetado e olha para baixo da cama. Ha lá uma sombra, treme, recua e insiste — não, talvez se haja enganado. Volta a olhar: sim, foi engano. Levanta-se e, dando com um dos retratos, estremece — a figura de um guerreiro formidável parece sorrir com pena daquele mancebo fraco que anda, em pontas de pés, de canto a canto, espiando, perscrutando, examinando. 

Ah! Aquele era da raça dos valentes que, ao brado dos esculcas, montava o árdego ginete e, descendo a viseira e enristando a lança, arremetia feroz contra as hostes soberbas. Aquele não tremia e, só com um brado, fazia recuar o inimigo mesquinho. Ele descendia daqueles heróis magníficos, era um rebento daquela raça viril, de conquistadores afoitos mas, pobre dele! Se para ser rei da Espanha lhe fosse necessário revestir todo o aceiro daquelas armaduras, peça a peça, desde o morrião até os sapatos de ferro e afivelar a espada, embraçar o escudo, empunhar a lança, então o mundo veria que a raça dos reis acabou no dia em que o último alfageme, açacalador de armas finas, deixou morrer o fogo na sua forja. E a noite segue. 

Já os sinos não bimbalham festivamente. De espaço a espaço, no silêncio, um deles bate as horas lúgubres. O palácio dorme — lá fora velam as sentinelas armadas como as guardas de uma alcáçova sitiada. 

E ele é o rei — sente na fronte a impressão da coroa, ouve ainda as vozes que entoaram a sua glorificação, vê o povo contido pelas alas militares e o sol, o admirável sol fazendo brilhar as polidas lâminas das baionetas que o defendem. É o rei... 

Deita-se medrosamente, encolhido. Uma zoada enche-lhe os ouvidos como se neles tivesse as abelhas de umas colmeias assanhadas. 

Repentinamente eriçaram-se-lhe os cabelos, um frêmito percorre-lhe o corpo, escancelam-se-lhe os olhos... que viu? Uma das figuras das telas como que se moveu levantando o braço rijo e, como o velho Eviradnus do poeta, deixando a armadura no palácio sinistro, lançou fora do quadro a mão calçada em guante agitando uma lança aguda. Foi ilusão... o velho rei lá está imóvel, olhando-o serenamente, com a piedosa ternura com que um avô contempla o pequenino neto. Foi ilusão; deita-se e, sem sono, fica-se a repassar todos os acontecimentos do dia. Ele é rei! Rei e senhor de toda aquela terra tradicional, rei daquele povo heroico que, tantas vezes, em tão esforçadas batalhas, em tão arriscadas expedições, levantara gloriosamente o pavilhão católico. 

É rei e senhor nas cidades velhas como Toledo e nos campos fecundos, nas águas do mar que ainda refervem sobre os destroços da frota carregada de ouro e nas montanhas onde rolou o precioso sangue de Rolando e de Oliveiro, em cujas penhas parece haver ficado o eco clangoroso do elefante do paladino; nos vales férteis onde loureja o trigo e reverdece a vinha e nas covas asturianas onde se refugiaram os companheiros de Pelágio. Ele é rei! 

Na sua infância diziam-lhe que ele governaria outros povos de ilhas longínquas, umas nos mares da Ásia, outras nos mares da América... depois chegaram homens feridos, rotos, sangrando e nunca mais lhe falaram de tais ilhas... também, para que mais território? Para que mais povos se ele tem a Espanha e os espanhóis? 

E eles? Onde estariam eles, os inimigos? Com certeza, durante as festas, alguns, mais atrevidos, tentaram chegar ao seu carro e teriam realizado o seu intento se a tropa os não tivesse contido e porque não havia ele de os conhecer, a todos? Que fazia a polícia que os não prendia? E os carrascos da Espanha? Ah! Não, a Espanha não os tinha... E, como havia ele, o rei, de livrar-se daqueles homens que desejavam o seu sangue? Morrer! Morrer quando começava a reinar... E, ante os seus olhos, como numa dança fantástica, cruzam-se, rebrilhando, lâminas frias de ferros mortais. Sacode-se o infante, ergue-se e a visão horrível desvanece-se subitânea. 

Ali mesmo em palácio devia haver conjurados... aquele velho lacaio que vira seu pai, o finado rei, ensaiar os primeiros passos nas alamedas do parque real... Não, pobre velho! Se ele o olhava com aqueles olhos cheios de piedade... Por que lhe havia de querer mal, o bom velhinho? Não! Mas, os outros? Os alabardeiros? Os pajens, que, à noite, atravessavam sorrateiramente os longos corredores, cosendo se com as paredes como se não quisessem ser vistos? Mesmo entre as damas algumas há que lhe despertam suspeitas... E os guardas? Serão todos fiéis ao juramento que prestaram? Aqueles brados que quebram o silêncio da noite morna não serão um sinal convencionado? Porque não há de ele conhecer todos os conspiradores! Oh! A incerteza cruel! A dúvida tremenda! A eterna suspeita... 

E aquele homem que rompeu a multidão para arrojar ao colo da princesa os dois grandes ramos de flores! Seria mesmo um representante do antigo e generoso povo de Espanha que estremecia os seus reis dando a vida por eles? Sim, era um humilde homem do povo que, querendo provar aos soberanos a sua fidelidade, talvez mesmo com o intuito de demonstrar que, apesar da sangrenta propaganda do anarquismo, há ainda na Espanha homens fiéis à tradição, resumira as suas despesas para reunir as pesetas necessárias à aquisição daquelas flores de Maio com que entusiasmado, saudou a princesa Maria Teresa. 

A cavalheiresca cortesia não foi retribuída pela dama gentil mas por um solícito agente da segurança que logo se apoderou do homem — e os dois ramos foram repelidos do carro e, examinados cuidadosamente, os homens da polícia neles apenas encontraram flores — rosas, lírios, amarílis, fúcsias e, circundando, folhas de tênue e recortada avenca e era tudo. 

O homem, de pé, entre esbirros, olhava acompanhando, com pena, a destruição dos lindos ramos: as pétalas espalhavam-se pelo chão, eram pisadas brutalmente e ele olhava, calado, lembrando-se de que, para comprar aquelas flores, privara-se de tanta coisa... tanta! E ali estava preso, maltratado, ameaçado como um criminoso. 

Por fim, demonstrada a sua inocência pelas mesmas flores, deram-lhe liberdade. O mísero ficou ainda algum tempo cabisbaixo, a olhar e foi necessário que o mandassem sair para que se resolvesse a tomar o chapéu e partir. 

Desceu as escadas vagarosamente, um sorriso triste franziu-lhe os lábios e, em baixo, detendo-se, ficou a pensar nas flores, as lindas flores, que lá estavam em cima amarfanhadas pelas mãos brutas dos agentes. Por fim, resolutamente, mergulhou na multidão e desapareceu. 

Este episódio, que lhe fora narrado por um áulico, acode ao espírito do jovem rei e, pensando no homem simples, cuja bondade fora tão mal remunerada, Affonso sente o coração travado e uma voz, como da consciência, diz-lhe no íntimo da alma: “Esse homem nunca mais trará flores à passagem dos reis — é um despeitado e tem razão... Se o vires no teu caminho evita-o. E lembra-te, agora que és rei, que os ódios do povo nascem sempre de injustiças como essa que foi cometida com o teu súbdito”. 

As sentinelas bradam e, como o rei se recline nos travesseiros, à escuta, ouve uns trêmulos de guitarras e vozes que entoam uma seguidilha alegre. É uma serenata que recolhe, rapazes. E sozinho, triste, entre as hirtas figuras dos seus ríspidos antepassados, o jovem rei da Espanha vai esquecendo o entusiasta das flores para acompanhar aquela alegria da mocidade, últimas notas da festa noturna, que lá vão pelas ruas adormecidas, fazendo estremecer de amor nos leitos puros as lindas moças enamoradas como no tempo romântico de D. Juan Tenório e, deixando-se cair pesadamente no leito, o rei suspira, invejando os mancebos que podem andar livremente, à noite, pelas ruas, cantando amores, ao luar.

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