11/28/2022

Reabilitação (Conto), de Coelho Neto

 

REABILITAÇÃO 

Baptista Tornielli, escrevendo ao Aretino, disse, com deslavada e cínica subserviência: “non sapete voi, che con la pena vostra in mano havete soggiogato piú principi, ch’ogni altro potentissimo príncipe con l’arme? La pena vostra a quale non mete terrore, a quale non é formidabile?” O próprio Aretino deixou dito em uma carta: “...la maggior parte de i gran maestri non temono l’ira di Dio, e temerano il furore de la mia pena”. 

Quando a morte aliviou Veneza daquele díscolo que a depravava, choveram os epitáfios e, em todos eles, transparecia o ódio que o grande difamador criara em torno da sua pessoa detestada e temida. 

Entre os muitos, citados pelos biógrafos, há este que resume a vida abocanhadora do “sozzo cane”: 

Qui giace l’Aretin poeta tosco
Che disse mal d’ogum, fuor che di Dio
Scusandosi col dir: non lo conosco. 

A palavra, posta a serviço de uma ideia generosa, fulgura como um astro, empregada por um vilão é como a centelha do pântano. Os mesmos vocábulos que o Aretino, como um vulcão de lama, arremessara de Veneza sobre as reputações manchando-as, são esplendores nos versos de Dante e Petrarca. 

Victor Hugo, na Reponse a un acte d’accusation, um dos golpes mais rudes vibrados contra o pedantismo clássico, fez uma brilhante defesa do vocábulo humilde, desses míseros e desprezíveis termos do populacho que não entram nos dicionários para que não maculem as nobres expressões de estirpe, descendentes de sonoros verbos gregos ou latinos ou, mais remontadas ainda, podendo mostrar a sua origem nos livros da Índia venerável ou da Pérsia heróica. 

Ele desceu ao patois e foi buscar a farândola da gíria, penetrou o argot misterioso e trouxe para o esplendor da sua estrofe os vocábulos esmolambados, descalços, sórdidos, cambaleantes que os poetas escrupulosos e os prosadores brasonados evitavam como se evita nas ruas um bêbedo que resmunga, aos trancos ou um mendigo esfarrapado. 

Toda palavra tem uma missão, é um ser: 

Car le môt, qu’on le sache, est un être vivant... 

E o grande poeta, o denodado renovador, acabando com os preconceitos, num generoso impulso, enriqueceu a língua francesa com aquela horda formidável que fazia pensar numa avalanche de bárbaros, como os hunos grosseiros de Atila, rompendo fragorosamente pelos períodos moles, estrondando nos versos alambicados, com a brutalidade de invasores poderosos que trouxessem um sangue novo e pululante para trasfegar nas veias dessoradas dos consumidos nobres dos glossários. 

E, como nos tempos rudes, um scytha, coberto de peles sedosas, com grandes e desabridos gestos, vozeirando, bramando, rugindo, saltava do cavalo ardego para sentar-se no trono de um monarca efeminado, gasto pelas orgias, assim os rudes filhos do povo, os termos ressoantes do calão da plebe, subiam a escadaria de mármore da estrofe e iam impor-se anônimos, sem etimologia conhecida, colocando-se orgulhosamente entre um verbo cujo radical vinha dos tempos da Ilíada e um adjetivo contemporâneo de Fabio Pictor. 

Sombre peuple, les mots vont et viennent en nous
Les mots sont les passants mystérieux de l’âme. 

Que é a ideia sem a palavra? Uma alma errante, julgais, talvez, que há homens mudos? Engano: há homens cárceres: as palavras lá andam dentro deles como galés em um presídio. Algumas logram, às vezes, evadir-se e saem coxeando, tartamudeantes, como se ainda lhes pesasse a grilheta. A palavra, é, pois, o corpo da ideia e porque havemos nós de repelir essas criaturas do sentimento, da impressão do povo? Não lhes perguntemos de onde vêm — são os garotos do pensamento mas, quantos desses garotos têm conseguido a consagração dos léxicos? 

Os clássicos não admitiam a promiscuidade, lá diz o poeta na sua Resposta fulminante, queriam que os vocábulos apresentassem certidões, que lhes mostrassem as raízes da árvore genealógica e, se desconfiavam da bastardia de algum deles, logo o repeliam, com desprezo e rebuscavam um substituto digno, de sangue azul, que fosse o introdutor do pensamento na circulação. 

Se o termo se tornava antiquado esqueciam-no — era como um inválido, quando não o enterravam pondo-lhe como epitáfio o lema: arcaico — ele ninguém ousava exumar o cadáver que lá ficava, não apodrecendo, mas imobilizado como uma múmia entupida de resinas e envolta em ligaduras, com a ideia que representara, ao lado, como o escaravelho egípcio, símbolo da alma imortal. 

Victor Hugo não só adotou o baixo dialeto como reanimou os arcaísmos e quantos deles brilham nas suas estrofes, remoçados como o Fausto, ligando o passado ao Futuro? 

II n’y a qu’un mót pour dire les choses, creio que é de Flaubert este admirável axioma e aquele escritor que quiser apresentar o povo com verdade terá de lançar mão do seu vocabulário. Gautier recomendava insistentemente a leitura dos dicionários: “Lisez les dictionnaires!” e Victor Hugo disse: 

Chacun a quelque chose en l’esprit;
Et tout home est un livre oú Dieu lui-même écrit.
Chaque fois qu’en mes mains un de ces livres tombe,
Volume oú vit une âme et que scelle la tombe,
J’y lis... 

Eis a razão porque ele, procurando traduzir a vida das suas personagens, serviu-se da linguagem peculiar a cada uma. 

Eu mesmo — e sirvo-me do exemplo — senti uma detestável impressão a primeira vez que vi um índio em um núcleo de catequese. 

Atravessando a floresta ia eu imaginando, com delícia, encontrar um homem reforçado e nu tendo apenas, em torno dos rins, um enduape de penas e, na cabeça altiva, um kanitar tremulante e calculem a minha decepção quando me achei diante do cacique dos tembés que arfava apertado numa farda de capitão da guarda nacional. 

Dá-se o mesmo com a expressão — ela, para impressionar, não deve vir disfarçada, os mestres antigos compreendiam assim, o eufemismo é o envilecimento da ideia. 

Il n’y a qu’un môt pour dire les choses... o mais é artifício e, se o povo tem a sua vida especial, as suas emoções próprias, porque não havemos nós de as traduzir com o cunho forte e ríspido da sua origem? 

As expressões populares são sempre representativas — ou são satíricas como as caricaturas ou onomatopaicas — tomemo-las e demos-lhe um lugar nos dicionários, introduzamo-las na obra de arte porque, ao lado dos grandes quadros místicos dos mestres do Renascimento, podem figurar os desvarios de Goya e Callot não perde aparecendo entre as verdes paisagens de Tadema nem em confronto com as finas carnes amorosas das mulheres de Cabanel. 

A reabilitação do baixo vocábulo deve-se, em França, ao mais nobre dos poetas contemporâneos que levou para a língua a mesma ideia democrática da igualdade apregoada na vida social, pelo programa da República. 

Todas as palavras são nobres porque vêm da alma ou, como disse o grande paladino dos simples: 

Car le môt, c’est le Verbe, et le Verbe, c’est Dieu.

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