11/28/2022

Valentim Magalhães (Memória), de Coelho Neto


 VALENTIM MAGALHÃES 

Foi o meu primeiro adversário. Quando estreei no Rio, em 1883, publicando na Gazeta um conto, puramente descritivo, intitulado: Pai do céu, Valentim, que, então, redigia as Notas à margem, estranhou o meu estilo superabundante, traçou a minha adjetivação excessiva que prejudicava, sobremodo, a ideia, abafando-a: “a floresta não deixava ver as árvores”. 

Eu, que estava no pleno viço dos meus saudosos vinte anos, melindrei-me com as observações do crítico e, ardendo em fúria, cheguei a pensar num desforço violento e escandaloso, mas um estupendo poeta épico (que acabou porteiro de uma secretaria), lembrou-me, como mais digno, o duelo: um duelo de morte, à espada, num bosque. Aplaudi a lembrança daquele que devia ser o rival de Camões se não tivesse degenerado em empregado subalterno e juntos fomos procurar certo romancista (que não medrou, por motivos que a História Literária não registra) e estabelecemos, com crueza, as condições do encontro: um de nós devia ficar no campo, esse um, está visto, seria o crítico. 

Felizmente nesse tempo o meu apetite era famoso e foi necessário adiarmos a discussão sanguinosa para irmos ao jantar. 

À mesa, devorando, a calma baixou sobre os árdegos espíritos e, ao café, já se não falava em duelo — o épico superiormente forte, do alto da sua soberba lira de sete cordas, sagrou-me o “primeiro prosador americano”, o romancista augurou-me um futuro deslumbrante e, com um vinho, cujo veneno até hoje me rói as entranhas, bebemos à grande Arte, desancamos toda a cáfila de imbecis (que eram os escritores feitos... Vingai-vos, novos de hoje, vingai-vos!) e saímos para a noite estrelada, carregados de glórias, cheios de elogios e de ensopado com repolho. 

Os tempos correram levando, pouco a pouco, as minhas ilusões — eu começava a ver a realidade agreste. O épico esquecera as estâncias que não lhe davam, sequer, para o almoço de assobio, o romancista lançara ao fogo as páginas admiráveis do seu estupendo estudo psicológico, só eu me conservei imprudentemente fiel a Apolo, vivendo como Villon e como aqueles povos da fábula que se nutriam do aroma das flores. 

Andava acesa uma grande guerra digna de ser cantada por um aedo — a gente literária dividira-se em dois campos — em um deles tinha sua tenda, que era a Semana, Valentim Magalhães, no outro avultava o pavilhão vermelho de Murat, ríspido como um Ajax — era a Vida Moderna, revista notável, não só pelas formosíssimas produções dos seus colaboradores como também pelas gravuras terríficas que estampava. 

Eu, que ainda guardava rancor ao crítico, alistei-me na hoste do Murat e, força é dizer, as batalhas foram soberbas e, se a vitória nem sempre nos sorriu, podemos dizer, com orgulho, que não recuamos de adversários, armados pelos deuses, como Aquiles, que se chamavam: Bilac, Raymundo Correa, Alberto de Oliveira, Fontoura Xavier, Filinto de Almeida, Aluísio Azevedo, Luís Delfino, Júlia Lopes e o chefe Valentim Magalhães. 

A fúria sonorosa de Ajax-Murat retumbava em alexandrinos formidáveis, Arthur Azevedo compunha os seus delicados contos em verso como essa formosa Sóror Martha ou trazia-nos cenas de Molière, vertidas com a firmeza perfeita com que ele transporta de um idioma para outro as obras primas da poesia dramática e eu... eu, sei lá! eu vingava-me esvaziando tinteiros. 

Bom tempo! Como havia entusiasmo! Como todos nós acreditávamos no futuro! Um dia Murat apareceu-me lívido, bradando contra o público ignominioso que não entendia o nosso jornal. Compreendi. A Vida Moderna estava morta... também, com tantos dragões, com tantas catástrofes na sua primeira página.... Enfim — entramos para a Maison Rouge e lá ao fundo, num salão obscuro, bebemos funebremente uma lutuosa cerveja preta. 

Semana continuou. Eu, sempre confiante, com um maço de originais debaixo do braço, procurava um canto sossegado para escrever o meu primeiro romance. Nos botequins não era possível, com a lufa-lufa dos fregueses, os berros dos caixeiros, toda a balbúrdia ruidosa do comércio, da politicagem, da maledicência e da literatice e assim andava eu errando quando, um dia, me apresentaram Valentim Magalhães. 

Guardei certa reserva digna, ele expandiu-se, sorriu e — ó desvanecimento! — falou de todos os meus trabalhos publicados na A Vida Moderna. Lera-os...! Sorri também e, caminhando, fomos até a porta do Londres e o meu “cordial inimigo” apresentou-me a Alberto de Oliveira e a Lúcio de Mendonça e ficamos a conversar à porta até que o poeta jurista nos convidou para um grogue honesto. Entretivemo-nos a falar da Arte até as cinco horas da tarde e Valentim, que não perdia tempo, pasmou de que assim o tivéssemos agarrado. Levantou-se apressadamente; antes, porém, de despedir-se, sem frases rebuscadas, ofereceu-me a Semana. Eu mirei-o espantado. 

— E a luta? 

— Que luta? A luta foi maravilhosa, que diabo! Podemos falar, com orgulho, das nossas batalhas contra o inimigo comum: a indiferença pública. Pensa, talvez, você que não senti o desaparecimento de A Vida Moderna? Senti e muito, não só como escritor que presa as boas letras, mas também como proprietário de jornal, porque o público, interessado na polêmica, buscava, com ansiedade, a Semana e a leitura já se ia tornando um hábito. Nós estávamos criando o leitor. O Murat fez prodígios, vocês portaram-se como valentes. Agora, se queres continuar, lá tens a Semana, aquilo é uma casa de artistas: não há ali inimizades. Se o soneto do adversário é bom lá vai para a primeira página e com o louvor que merece. Efetivamente era assim. 

Nas lutas em que o vi, várias vezes, empenhado, sempre contra adversários temíveis: Sylvio Romero, Murat, Mallet, Valentim guardava sempre uma atitude correta, fugindo, com gentileza, às retaliações e aos doestos e só ficando no terreno da discussão, no assunto da polêmica. 

No período mais brilhante da sua vida literária que foi, incontestavelmente, o das Notas à margem, ele teve fulgurações. Por vezes a sua réplica, rápida e aguda, lembrava as vibrantes represálias de Camilo; o seu colorido tinha vida, a sua forma, se não brilhava pelo bem polido das facetas, era forte e de bom quilate. Ele era um polemista nervoso, que esgrimia com elegância e firmeza, atacando com lealdade e defendendo-se com graça. Teria, talvez, ficado com um tipo original e único em a nossa literatura se a grande febre de produzir, o imenso desejo de desdobrar-se não o houvesse afastado do verdadeiro terreno, no qual o seu espírito se sentia à vontade. 

No conto, no romance, no teatro não foi o mesmo homem vigoroso que nos havia aparecido na polêmica e creio que só uma vez a sua alma de têmpera acerada conheceu o desalento; foi quando a Crítica, que esperava o momento para vingar-se, arremeteu impiedosa contra a Flor de sangue, romance que bem pouco valor tem e que, longe de ser um florão para o morto, é uma falha na sua obra pertinaz de batalhador. 

Valentim via bem o real para o comentário, sabia dar a exata impressão de uma leitura, achava, ao primeiro olhar, a parte fraca de um escritor ou de uma obra, e, enristando a lança, era terrível o golpe que vibrava, mas a imaginação não o levara longe e, observando para o conto ou para o romance, ele, o minucioso, o homem da lente, que não perdia um detalhe, por mais insignificante que fosse, esquecia-se de tudo e, encantado, enamorado da própria obra, não lhe via os defeitos. Foi o que se deu com a Flor de sangue

O nome de Valentim Magalhães há de ficar como um símbolo — outro não houve de mais coragem, de mais tenacidade, de mais perseverança. Quando todos desanimavam querendo pendurar as liras ou atirar ao valado os buris com que lavravam períodos ele chamava-os, levantava-lhes o ânimo, falava-lhes das suas lutas e, rindo, travava-lhes do braço e lá os ia levando para a Semana e só os deixava quando lhes arrancava a promessa de novos versos e de novas páginas de prosa. Foi, sobretudo, um agitador e muito do que por aí há deve a sua origem àquele eterno confiante, àquele fiel apolíneo que, mesmo abandonado, sem público, costumava a tanger a lira para seu próprio gozo. 

Foi ele o instituidor dos concursos literários que nos trouxeram tantos artistas magníficos que viviam ignorados na província e mesmo na capital: João Ribeiro, o poeta-filólogo, publicou o seu primeiro conto, São Boemundo, uma joia, na Semana; lá tivemos o Caso do abade, de Garcia Redondo; João Luso forçou a popularidade com o Serafim tristonho. Francisca Julia, Julia Lopes, Julia Cortines, Zalina Rollin, Adelina Vieira foram apresentadas ao grande público pela folha de Valentim. Antônio Salles, o doce Luís Rosa, Luís Edmundo e tantos outros poetas de merecimento estrearam naquelas páginas sempre fulgurantes onde resplandeciam as crônicas do Bilac e de Filindal, o puro e devotado Felinto de Almeida, alma rara de homem, alma sensibilíssima do poeta. 

Carlos Malheiros Dias, que é hoje uma das glórias da literatura portuguesa, a quem se quer dar o cetro de ouro do príncipe harmonioso da forma, o admirável Queiroz, era dos mais assíduos frequentadores da Semana e, como se não bastassem à revista semanal tantas glórias, deve-lhe ainda a literatura o haver ela ido buscar ao silêncio em que se deixou ficar, depois da morte da Gazetinha, esse soberbo poeta, talvez o maior da América — Luís Delfino, tão avaro em abrir os seus tesouros diante dos quais a gente tem a ilusão de estar.debruçado, como nos poemas da Índia, à beira de prefulgentes abismos de pedrarias em cujo fundo, entre fulvos leões de ouro, partênias de virgens nuas dançam serenamente uma ronda sagrada, ao som de liras tangidas por deuses. 

O escritor que morreu foi um chefe de movimento, foi o corifeu de uma teoria de poetas e de prosadores que hoje sustentam, com brio, a glória literária da Pátria e, se lhe não bastasse a sua copiosa bagagem para garantir-lhe o nome ele viria à frente dessa brilhante falange, claro e puro, como o de um guia que alumiou o caminho para a caravana. 

Os que ainda se interessam pela vida intelectual do país devem sentir o desaparecimento desse robusto espírito que, apesar da indiferença, lutando esforçadamente pela vida, sempre achava uma hora no dia para pensar e escrever, apelando, com a sua palavra insinuante, para os que se deixavam vencer pelo desânimo para que voltassem à luta, retomando as liras silenciosas. 

Valentim é um dos obreiros do grande período literário do Brasil e este louvor não lhe negarão os seus próprios inimigos, se é que ele deixou alguns; não creio porque, como eu, todos devem estar convencidos de que ele nunca vestiu armaduras senão para defender, como bom paladino, a Arte que era a sua dama Ideal, o seu supremo amor. 

Eu, que vivi dentro da agitação fecunda desse bom tempo, devo também ao morto de ontem, ser hoje... um homem que não tem onde cair morto, porque tomou a sério a literatura ingrata.

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