11/28/2022

Ressurreição (Conto), de Coelho Neto


RESSURREIÇÃO

Ave Maria! dobre a finados. O sol agoniza. Em torno dele, no leito do ocidente, prostram-se as nuvens, como odaliscas, recolhendo, com ânsia, a herança luminosa dos últimos esplendores. 

Ei-las garridamente rolando na copiosa púrpura que escorre, todo o ocaso encarde-se e, à mesma terra, chegam restos da luz que esmaece no azul. As nuvens ficam vaidosas, qual mais dourada ou mais vermelha, escabujando nas ondas sanguíneas que, como um rastro, o sol deixa na altura. Íblis, porém, espreita as descuidadas e, tanto que o guerreiro tomba, logo se precipita no céu com a sua horda rapace roubando a claridade às nuvens resplandecentes. 

Rouba com fúria, deixando-as pálidas como cadáveres e estende pelo céu lívido o crepe negro da noite, prega-o seguramente com os cravos das estrelas, espalha sobre ele a cal funerária da Via Láctea e, aqui, ali, punhados de nebulosas e, a lua, como um fantasma melancólico, vestindo o sudário branco, sai pelos ares tristes peregrinando solitariamente. 

Veste-se a terra de luto e Íblis, sempre parodiando o Senhor, abre o sinistro aviário soltando nos ares os voadores trágicos. A estrige chirria, trissa o morcego, a falena esvoaça e miríades de insetos enxameiam a sombra como uma poeira viva: são miniaturas de vampiros, abelhas satânicas que fazem o seu mel com o sangue da flor humana. 

Meia noite! Íblis domina. O silêncio é geral — só as águas, que brilham o seu viajar eterno, passam chorando pelos cavados leitos pedregosos. É a morte. Eis, porém, que no oriente aparece uma nesga rosada — desprende-se o crepe, rasga-se o funéreo velário. Canta um galo no campo, um sino vibra: Matinas! é a ressurreição — a aurora. 

Ressurge o sol como uma semente que se abre — é um renovo primeiro, tenro, mal rompendo a densidão das nuvens, mas radia como uma haste que vai lançando as folhas, cresce, aclara, esplende, brilha, aquece rútilo, flameja, sobe no céu, impõe-se e, como sob uma árvore é a sombra que se espalha, sob o sol é o clarão dourado que irradia. 

Vivo, lá vai, entanto, a caminho da morte — o ocaso é o alvo do oriente — a estrada da vida vai em rumo direito à sepultura e a sepultura que é? O canteiro de Deus. 

Ressurge! Esta é a ordem indefectível, este é o imperativo divino: a morte é um novo princípio. 

Para onde vão os rios? Vão ter ao mar, sobem ao céu, baixam em chuvas e em orvalho, entranham-se na terra e reaparecem em vigor na planta, em sabor no fruto, em aroma na flor; secam na planta, mirram no fruto, exalam-se na flor e morrem — vão renascer adiante, em outros seres, na eterna ressurreição, porque Deus, no Paraíso, fez uma só sementeira para toda a eternidade. 

Não choremos a morte. Quem chora o sono? Quem lamenta uma criança que dorme? Espera-se que desperte; pois do sono maior espere-se a ressurreição. 

Esperar o céu é ter consciência da eternidade, mas o céu é o aniquilamento pela inércia, é a morte pela esterilidade — o fim universal é a produção: Deus é ação. 

A piedade pela morte é um sentimento do egoísmo humano — por que se lamenta o homem que geme? Simplesmente porque o gemido é a exteriorização do sofrimento como a lágrima; e quem nos diz que as coisas não sofrem? A pedra bruta ferida responde ao golpe flamejando, arma-se de raios como a nuvem, tem cerdas de fogo, que arroja; a árvore lacrimeja quando o machado a fende e entre os animais, que tão pouco nos merecem, há as mesmas manifestações que caracterizam a dor — a ave chora o ninho destruído, o paquiderme atroa a floresta com o rugido lamentoso quando encontra ferida a companheira — a dor é universal. 

O que torna os simples e as coisas brutas superiores ao homem é a resignação e essa resignação é, talvez, uma prova a favor da utopia — o homem orgulha-se da sua inteligência mas, que sabe o homem da vida? Que ela é o princípio da morte e espera-a com tristeza — os animais e as coisas esperam-na com indiferença e, talvez, com ânsia, porque sabem que ela é um aperfeiçoamento. A árvore não chora a folha seca que cai — deixa-a ir desprendida: se ela fica nas suas raízes ali apodrece e a sua essência, a seiva, volta ao tronco mais forte e renasce na flor e no fruto, se o vento a leva para longe, em qualquer sítio que caia, acha meio de renascer voltando ao esplendor solar mais perfeita e mais linda. 

A carniça que tresanda sob enxames de moscas é um viveiro embrionário — onde alveja um arcabouço há a semeadura fecunda — a sânie purifica-se no túmulo e o que foi nojo volta como delícia. O verme repugnante colora-se e desdobra as azas marchetadas durante o período da imobilidade — a larva jaz como morta no casulo antes de ser borboleta. Entre uma página e outra há uma pequenina solução de continuidade, longa como um bater de pálpebras — é a morte. 

Em todas as religiões há um deus que sucumbe e renasce e os exegetas veem nisso uma reprodução do mito solar — os mesmos gregos, tão indiferentes à morte, choravam entoando o lino lamentoso por ocasião dos funerais de Adonis. O Cristianismo, ampliando as tradições antigas, não podia deixar essa poesia da morte e fez dela, não um simples episódio, mas o motivo essencial do seu culto. 

Toda a cerimônia do rito tristonho converge para uma apoteose à ressurreição: as traições, as angústias, a agonia do horto, a marcha para o Calvário, a crucificação, a morte, são os degraus que levam à gloria suprema. O céu escurece quando a cabeça do mártir pende sobre o peito, faz-se noite em Jerusalém. Redoura-se o céu ao grito das mulheres anunciando o desaparecimento do corpo. 

O mistério reproduz-se no rito como no mundo; a vida é uma continuação — cada existência individual representa o progresso de uma série de vidas — o homem é uma acumulação. “Onde estão os morins? Pergunta Schopenhauer, e responde: aqui, entre nós. Apesar da morte, a despeito da putrefação, eles e nós estamos unidos” e Pompeyo Gener acrescenta: “Assim se harmonizam o que nós poderíamos chamar a perpetuidade da matéria e a perpetuidade do espírito — uma produzindo formas mais a mais perfeitas, a outra fornecendo obras cada vez mais consideráveis. A herança das capacidades engendra seres cada dia mais aptos a pensarem, mais susceptíveis de um grande nível intelectual porque à capacidade e à aptidão que cada um recebeu ela ajunta o que adquiriu pela observação e pelo cálculo. De sorte que, pela herança conservadora e pelo progresso individual, a Humanidade encaminha-se gradualmente para a perfeição”. 

Essa certeza da vida progressiva através da morte não basta para consolar a mãe que vê o filhinho morto, estendido entre rosas e ciriais, no caixãozinho enfeitado de franjas e galões dourados. Maria sabia que Jesus havia de ressuscitar, que sairia da cova, ao terceiro dia, entre anjos, na glória esplêndida da luz divina; entretanto, desfizeram-se-lhe os olhos em água e, enquanto durou o martírio, não se despegou dos pés da cruz, na atitude sublime e muda do Stabat.

 Viesse um querubim à terra e dissesse à mãe infeliz que velava o cadáver do filhinho: “Seca o teu pranto, ele é anjo no céu...” ela, por certo, cairia de joelhos e, de mãos postas, pediria o filho preferindo vê-lo junto ao colo, a sugá-lo, a sabê-lo no céu, com uma harpa de ouro nas pequeninas mãos, entoando hinos ao Senhor. 

O que faz a morte triste é o egoísmo humano. 

O mundo é um grande túmulo tendo à cabeceira a cruz de Cristo e nós vivemos de exumações — somos como essa Amina do conto oriental: a morte restitui-nos a vida, a semente é que nos dá o pão e o linho, subindo transformada da cova em que a deixamos. A vida é uma ressurreição perene.

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