3/12/2025

A água da vida (Irmãos Grimm), por Monteiro Lobato



A ÁGUA DA VIDA

Era uma vez um rei que vivia muito feliz em seu reino.

Mas adoeceu; ficou tão mal que já não lhe restava nenhuma esperança de cura. Seus filhos, que eram três, mostraram-se tristíssimos com a cruel doença do pai.

Um dia em que choravam as mágoas no jardim do palácio, apareceu-lhes um velho de grandes barbas brancas que indagou da causa de tamanha tristeza. E quando soube que os médicos já haviam desenganado o rei, disse-lhes:

— Só existe um remédio capaz de curá-lo; é a famosa Água da Vida. Mas é muito difícil obtê-la.

Essas palavras assanharam os príncipes, que insistiram em saber como se obtinha a água maravilhosa.

O velho explicou mal e mal, porque de fato não tinha certeza do modo de consegui-la.

O príncipe mais velho foi imediatamente aos aposentos do rei contar o caso, declarando que desejava correr mundo em busca desse remédio.

— Sei bem que essa água maravilhosa existe, murmurou o velho rei; mas corre tantos perigos quem a procura, que prefiro morrer a ver um filho meu metido em tal aventura.

O príncipe, entretanto, insistiu de tal modo que o pai acabou cedendo. A idéia desse príncipe era que, se conseguisse obter a água salvadora, tornar-se-ia o filho predileto e fatalmente herdaria o trono. Partiu, pois, montado num fogoso corcel, e tomou pelo caminho indicado pelo velho. Ao fim dalguns dias de viagem, atravessando uma floresta, apareceu-lhe um anão esfarrapado, que indagou:

— Onde vai com tanta pressa, meu rapaz?

— Que é que tem você com isso, bicho imundo? foi a resposta do príncipe, que nem sequer sofreou o cavalo.

O anão, enfurecido com a grosseria, rogou-lhe uma praga em conseqüência da qual o príncipe se viu logo entalado sem saber como, entre duas barrancas do caminho. Entalado de forma que não podia avançar, nem recuar, nem sequer descer do cavalo. Ficou ali de castigo, padecendo fome e sede, mas sem morrer.

Passados quinze dias, como o viajante não reaparecesse, o segundo príncipe ficou contentíssimo e certo de que o irmão tinha morrido; desse modo poderia ele tornar-se o herdeiro do trono.

Foi ter com o pai e pediu-lhe permissão para correr mundo em busca da Água da Vida. O pai respondeu o mesmo que havia respondido ao primeiro, e afinal também acabou cedendo. O segundo príncipe então montou a cavalo e tomou pelo mesmo caminho. Alguns dias de-pois apareceu-lhe o anão com a mesma pergunta.

— Para onde se atira, meu rapaz?

— Oh, indecentíssimo pedaço de gente! Sai da minha frente antes que te ponha o cavalo em cima.

— O anão saltou para um lado e rogou-lhe a mesma praga rogada contra o primeiro — e o segundo príncipe ficou também entalado logo adiante, sem poder sequer mexer-se.

Vendo que seus irmãos demoravam em voltar, o príncipe mais moço foi pedir ao pai licença para correr mundo atrás da Água da Vida. O pai fez as mesmas observações e pela terceira vez cedeu. O jovem príncipe montou no seu cavalo e partiu.

Ao chegar onde morava o anão, este pulou-lhe à frente com a pergunta de sempre.

— Para onde vai com tanta pressa, meu rapaz? O jovem príncipe era de natureza amável e delicadíssimo. Assim foi que respondeu:

— Ando a correr mundo em procura da Água da Vida, o único remédio que pode salvar meu pobre pai.

— Bem. Já que respondeu com delicadeza, vou indicar o caminho que deve seguir. Escute. Logo que deixar a floresta não se meta pelo desfiladeiro que vir pela frente. Vire à esquerda e siga até uma encruzilhada; aí tome à direita. Depois de dois dias de marcha há de encontrar um castelo encantado: é lá que existe a Água da Vida. Esse castelo está fechado por um grande portão de ferro, mas basta que o toque com esta varinha para que se abra de par em par. Entre. Não se assuste com os dois leões que aparecerem de bocas escancaradas. Basta que lhes dê estes dois bolos para que sosseguem. No parque desse castelo é que existe a fonte de Água da Vida. É só.

O príncipe agradeceu gentilmente aquelas informações e pôs-se a caminho. Fez tudo da maneira indicada e por fim avistou o castelo.

Parou diante do imenso portão e o abriu com um simples toque da varinha. Assim que entrou, os dois leões de bocas escancaradas arremessaram-se contra ele — mas jogou os bolos e as feras transformaram-se em cordeirinhos.

Em vez de dirigir-se à fonte de Água da Vida o príncipe não resistiu à tentação de penetrar no interior do castelo, cujas portas estavam abertas. No primeiro salão, que era luxuosíssimo, viu, imersos em sono profundo, vários príncipes e numerosos fidalgos. Sobre uma mesa avistou uma espada e uma sacola de trigo e com a idéia de que tais objetos lhe poderiam ser úteis, tomou-os consigo.

Andou de salão em salão, até que no último deu com uma princesa de deslumbrante formosura, a qual se adiantou e declarou que o encantamento em que estava o reino havia sido quebrado pela audácia de ele penetrar no castelo. Os efeitos do encantamento, porém, só cessariam mais tarde.

— Só dentro de um ano, disse ela. Volte cá por essa época, meu príncipe, que o aceitarei como o esposo bem amado.

Em seguida indicou-lhe o local da fonte miraculosa e despediu-se, avisando-o de que saísse do castelo antes de o relógio do torreão bater as dozes badaladas do meio-dia, porque nesse momento exato os portões se fechariam.

O príncipe fez-se de volta e foi atravessando os salões por onde passara, até que num deles viu um fofo diva altamente convidativo. E como estivesse cansado da longa viagem lembrou-se de tomar um breve repouso. Mas dormiu, e se não fosse a espada lhe cair no chão com um movimento que fez, perderia a hora e ficaria prisioneiro do castelo.

Faltava apenas um minuto para o meio-dia; o príncipe mal teve tempo de correr ao parque, encher um frasco na fonte de Água da Vida e fugir.

Ao cruzar os batentes da entrada soou o relógio do torreão e os portões de ferro fecharam-se com estrondo. Por um triz não foi apanhado — mesmo assim perdeu uma das esporas.

Estava salvo e vitorioso! Ia também salvar a vida do seu pai amado — e ansioso de ver-se no palácio, pulou sobre a sela e partiu no galope. Ao atravessar a floresta do anão encontrou-o no mesmo ponto.

— Fez bem de trazer essa espada e esse saquinho de trigo, disse o anão. É uma espada mágica com a qual um só homem pode vencer todo um exército, e com o trigo desse saquinho é possível alimentar-se todo um reino, porque por mais que o esvaziem nunca se esvazia.

Muito se alegrou o príncipe de conhecer os prodigiosos dons da espada e do saquinho, mas a lembrança dos seus irmãos perdidos veio entristecê-lo. E perguntou ao anão se nada poderia fazer por eles.

— Posso, disse o anão. Acham-se entalados entre barrancas, não longe daqui, por castigo de serem orgulhosos e insolentes. Roguei-lhes eu essa praga.

O príncipe pediu-lhe encarecidamente que libertasse os irmãos e tanto insistiu que o anão cedeu.

— Mas vai arrepender-se, disse-lhe ele. Nunca se fie em tais príncipes. São maus de coração. Vou libertá-los apenas porque me pede.

Dizendo isto, o anão desfez a praga e imediatamente as barrancas se afastaram e os entalados puderam desentalar-se. Minutos depois reuniram-se ao irmão mais moço, que não cabia em si de felicidade. Depois duns minutos de descanso, em que o bom príncipe narrou todas as suas aventuras e o seu contrato de casamento com a princesa encantada, montaram de novo e prosseguiram na viagem.

Dias depois chegavam a um reino devastado pela guerra e pela fome. O bom príncipe foi procurar o rei e lhe contou das virtudes da espada mágica, aconselhando-o a empregá-la contra seus inimigos. O rei aceitou e os exércitos invasores foram imediatamente derrotados e expulsos. O príncipe também deu ao rei o saquinho de trigo — e logo os celeiros se encheram até ao for do precioso cereal.

Estava salvo aquele reino, e depois de receber muitos agradecimentos do rei e dos fidalgos da corte, o bom príncipe recolocou a espada mágica à cintura, guardou o saquinho de trigo e despediu-se.

Continuaram na viagem e para encurtar caminho resolveram tomar um navio. Foi nessa travessia que os maus príncipes começaram a conspirar contra o bom. Viram que ele chegaria ao reino de seu pai com a água milagrosa e salvaria o doente, tornando-se assim o filho predileto e o herdeiro do trono. O jeito era furtarem o frasco de Água da Vida, substituindo-o por outro de água salgada; também quiseram furtar a espada e o saquinho de trigo, mas estes objetos desapareceram de repente, quando os miseráveis lhes iam pondo a mão em cima.

Ao dar pela falta daqueles preciosos objetos o bom príncipe sentiu muito; mas consolou-se vendo que o frasco de Água da Vida não havia desaparecido. Contanto que pudesse salvar a vida de seu pai, o resto não tinha importância.

Afinal chegaram. O bom príncipe correu ao quarto do doente e apresentou-lhe o maravilhoso remédio. O rei tomou dois goles, mas não só achou horrível o gosto como ainda piorou sensivelmente.

Nisto entram no quarto os outros príncipes e acusam o mais moço de ter querido envenenar o pai, dando-lhe uma água choca em vez de Água da Vida. A verdadeira Água da Vida eram eles que a tinham — e mostraram o frasco furtado.

O rei bebeu e imediatamente sarou.

O bom príncipe retirou-se com o coração esmagado de dor e logo a seguir soube de tudo. Os outros vieram ter com ele e entre gargalhadas de sarcasmo trataram-no de palerma para baixo.

— Grandíssimo tolo! Enquanto você dormia a bordo sem nada desconfiar, entramos em sua cabina e trocamos o frasco de Água da Vida por outro de água salgada. E poderíamos, se quiséssemos, tê-lo atirado ao mar. Só de dó não fizemos isso. Mas muito cuidado agora, está ouvindo? Se se mete a dizer qualquer coisa ao nosso pai, não nos escapa. E também não pense em casar-se com a princesa desencantada. Vai ela agora pertencer a um de nós.

O pobre príncipe, traído assim miseràvelmente e suspeitado pelo pai que tanto amava, afastou-se do palácio amarguradíssimo — não de medo dos irmãos, mas ofendido pelo fato de o rei tê-lo julgado capaz de cometer uma infâmia. Isso ainda mais agravou a situação, porque o rei, vendo que o príncipe não se defendia, ficou certo de que era verdade o que os outros afirmavam. Chegou até a reunir secretamente os seus ministros para discutirem o caso, e nessa reunião resolveu-se que o ato do príncipe merecia castigo sério. O rei então condenou-o à morte. Um guarda do palácio o levaria a uma floresta e lá o mataria.

Mas esse guarda tinha grande amor ao príncipe, que conhecera desde menino e cujo bom coração admirava, de modo que ao penetrar na floresta se mostrou em extremo inquieto. O príncipe indagou das razões daquilo — e o guarda contou tudo.

— Vamos dar um jeito nisto, disse o príncipe. Para que o rei não desconfie de nada e fique certo que suas ordens foram cumpridas, vestirei roupas de camponês e você lhe levará as minhas como prova de que me matou, conforme as instruções recebidas. E eu abandonarei para sempre o reino. Desse modo, tanto eu como você nos salvaremos.

Assim foi feito.

Poucos dias depois apareceu uma faustosa embaixada do rei vizinho, incumbida de entregar ao bom príncipe os mais ricos presentes em agradecimento de ter ele salvado o reino da fome e da invasão do inimigo.

Esse fato abriu os olhos do rei; começou a refletir que um príncipe de caráter tão bom como era o seu filho mais moço, tão bom que até em viagem não cessara de praticar o bem, não podia ser culpado do crime de que era acusado. E sentiu remorsos de o ter sacrificado de modo tão cruel.

A mudança do rei foi logo sabida em palácio e o guarda animou-se a contar a verdade. Chegou-se ao amo e disse que o bom príncipe estava com vida, mas em lugar ignorado. Imediatamente o rei mandou fazer uma proclamação, declarando que considerava o seu filho inocente e lhe implorava que regressasse ao seio da família.

Todos ficaram sabendo disso, menos o maior interessado, que era o príncipe.

Andava por longe dali. Seu amigo anão viera em seu socorro e lhe presenteara com montões de ouro, de modo a poder levar vida de verdadeiro filho de rei. Por esse tempo já se havia passado quase um ano da sua visita ao castelo e aproximava-se o dia feliz do seu casamento com a princesa.

Esta princesa mandara calçar de ouro e pedras preciosas todo o centro da avenida que conduzia do portão à entrada do castelo e explicara aos seus criados:

— O filho do rei que vai ser meu esposo não tardará a chegar. Virá de galope bem pelo meio da avenida. Talvez também apareçam outros pretendentes, mas estes vão vir pela beira da estrada. Quero que sejam expulsos a chicote.

E assim foi. Quando fez exatamente um ano da visita do bom príncipe ao castelo, apareceu por lá, muito lampeiro, o príncipe mais velho, que não só furtara ao bom príncipe a Água da Vida como ainda queria furtar-lhe a noiva. Ao atravessar o portão e dar com aquela avenida calçada no meio de ouros e pedrarias, pôs o cavalo de um lado, para que com suas patas não estragasse tanta riqueza — e pelo lado direito aproximou-se do castelo. Foi recebido com chufas e corrido a chicote.

O segundo príncipe apareceu logo depois; atravessou o portão e tomou pelo lado esquerdo da avenida recoberta de jóias. Foi também recebido com chufas e corrido a chicote.

Chegou finalmente o bom príncipe, deixando que o cavalo esmagasse todas aquelas jóias, isso porque seu pensamento estava numa coisa só —na princesa. Quando desceu à porta do castelo, soaram cem fanfarras e rufaram cem tambores, ao mesmo tempo que inúmeros fidalgos se perfilavam pela escadaria para recebê-lo com todas as honras. No topo estava a princesa, mais deslumbrante que um sol. Recebeu-o com um beijo na testa.

Logo a seguir realizou-se o casamento com pompa jamais vista, e por toda uma semana durou a festa. O príncipe foi aclamado rei daquele reino que ele próprio havia desencantado, e entrou a governá-lo com rara sabedoria e prudência.

Depois de algum tempo soube da proclamação feita por seu pai a respeito da sua inocência, e foi com a rainha visitá-lo. Teve então ensejo de contar-lhe toda a aventura da Água da Vida e de como fora traído e caluniado pelos seus irmãos.

O rei sentiu-se profundamente revoltado e mandou que seus arqueiros trouxessem à sua presença os dois criminosos. Eles, entretanto, já estavam longe. Tinham tomado um barco para fugir para terras distantes, onde esperavam viver sossegadamente. Não puderam. Uma tempestade sobreveio, que engoliu o navio — e assim acabaram ambos miseravelmente.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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