3/12/2025

O modelo milionário (Conto), de Oscar Wilde



O MODELO MILIONÁRIO (CONTO), DE OSCAR WILDE

Quando não se tem capital, de nada serve ser um homem encantador.

A novela é um privilégio de ricos e não uma profissão para os que não têm emprego.

Mais vale ter uma renda fixa que ser encantador.

Tais são os grandes axiomas da Frida moderna, e Hughie Erskine nunca os pôde assimilar. Pobre Hughie!

Sob o ponto de vista intelectual, é preciso reconhecer que não era nenhum fenômeno. Não tivera na vida um rasgo brilhante, nem uma ironia. Não obstante isso, era singularmente sedutor, com o seu cabelo ondeado, seu perfil puramente delineado e os seus olhos cinzentos.

Era acolhido tão favoravelmente entre os homens como entre as mulheres. Possuía toda a classe de talentos, menos o de ganhar dinheiro.

Seu pai lhe legara um espadão de cavalaria e uma “História da Guerra da Península”, em quinze volumes.

— Hughie pendurou o primeiro destes legados em cima do seu espelho, e alinhou o segundo sobre uma estante, entre a “Guia” de Ruff e o “Magazine” de Bayley. Vivia de uma renda anual de 200 libras que lhe dava uma tia velha.

Intentou tudo.

— Frequentou a Bolsa durante seis meses, mas que quereis que suceda a uma mariposa entre touros e ursos?

Dedicou-se a comerciar em chás, e se bem que isso o distraísse um pouco mais, acabou por cansar-se do “pekoé” e do “Souchong".

Depois, intentou vender “Sherry” seco. E o negócio lhe falhou. O “sherry” saía talvez demasiado seco.

E, por último, se dedicou... Bem não se dedicou a nada; continuou rapaz encantador que não serve para nada, sempre com o seu perfil perfeito e sempre vago.

E para que a sua desdita fosse completa, enamorou-se. A pequena que amava chamava-se Laura Merton. Seu pai era um coronel reformado que tinha perdido toda a paciência e todas as faculdades digestivas na Índia, sem jamais conseguir recuperá-las.

Laura adorava Hughie, e este seria capaz de beijar os cordões dos sapatinhos de Laura.

Era o par mais encantador que se podia ver em Londres.

O coronel sentiu um grande afeto por Hughie, porém nem queria ouvir falar de matrimonio.

— Meu filho, dizia frequente mente, venha ver-me quando for dono de dez mil libras bem seguras. Então, veremos.

E a Hughie, depois disso, o gênio se lhe azedava e precisava para consolar-se, ter Laura ao Seu lado.

Uma manhã, quando se dirigia a Holland Park, que era onde viviam os Merton, lembrou-lhe fazer uma visita, de passagem, ao seu grande amigo, Alan Trevor.

Trevor era pintor. Hoje em dia, poucas pessoas escapam desse contágio. Mas ele era também um artista, e artistas existem muitos poucos.

A julgar pelas aparências, Alan era uma pessoa rara, selvagem, com uma cara marcada de sinais, e uma barba ruiva e hirsuta. Porém logo que colhia um pincel, à gente se achava ante um mestre, é os seus quadros eram solicitadíssimos.

Experimentou — desde o princípio — uma viva inclinação por Hughie, devida unicamente, é preciso confessá-lo, do encanto pessoal deste.

— As únicas pessoas que um pintor devia conhecer, repetia, são aquelas que são belas e frívolas, aquelas cuja contemplação vos produz um prazer artístico e cuja conversação vos proporciona repouso intelectual. Os homens vaidosos e as mulheres elegantes: eis os seres que manejam o mundo, ou que, pelo menos, deveriam manejá-lo.

Mas quando foi conhecendo a fundo Hughie, terminou por querer-lhe tanto pela sua animação e pelo seu bom humor, como pelo seu caráter generoso. E concedeu-lhe livre entrada a qualquer hora em seu estúdio. Uma vez aí, Hughie encontrou Trevor dando as últimas pinceladas num quadro magistral, que representava um mendigo, em tamanho natural.

O mendigo em pessoa servia de modelo, sobre um estrado colocado num canto do estúdio.

Era um velho cheio de rugas, cujo rosto parecia de pergaminho amarrotado e com uma expressão lastimável.

Levava sobre os ombros uma capa de pano muito ordinário, cheio de andrajos e buracos; duas grandes botas estavam remendadas e cheias de cortes. Apoiava-se com uma mão num cajado e com a outra estendida um resto de chapéu, na atitude de quem pede esmola.

— Soberbo modelo! disse Hughie em voz baixa, estreitando a mão de seu amigo.

— Soberbo, acho mesmo! Exclamou Trevor em voz alta. Não se encontram todos os dias mendigos como este. Um achado, meu amigo,  um Velásquez em carne e osso! Que quadro faria Rembrandt com isto, Deus meu!

— Pobre velho! disse Hughie. Que aspecto tão desditoso tem! Se bem que suponho que, para vocês pintores, a cara está em relação com a fortuna.

— Com efeito, disse Trevor, não quererá você que um mendigo tenha um aspecto de alegria.

— Quanto ganha um modelo por seção? perguntou Hughie depois de acomodar-se agradavelmente num divã:

— Um shilling por hora.

— E quanto lhe renderá o quadro, Alan?

— Oh! por este me pagarão no mínimo duas mil.

— Libras?

— Não, guinés. Os pintores, os poetas e os médicos contam sempre por guinés.

— Pois bem: opino que o modelo devia ter uma porcentagem, replicou Hughie rindo, pois trabalha tanto como você.

— Tudo isso são loucuras. Só o trabalho que significa diluir a cores e permanecer em pé com o pincel na mão, é incalculável. Você fala por falar, Hughie; mas lhe asseguro que em certos momentos a arte se eleva ao nível de um ofício manual. Enfim, deixemos isto! Estou ocupadíssimo. Apanhe um cigarro e fique quieto.

Minutos após entrou o criado para dizer a Trevor que o fabricante de molduras desejava falar-lhe.

— Não vá embora, Hughie, disse ao sair, eu já volto.

O velho mendigo aproveitou a ausência de Trevor para descansar um pouco num banco.

Tinha um aspecto tão abatido e tão miserável que Hughie não pôde deixar de compadecer-se e palpou os bolsos para ver quanto tinha.

Não encontrou mais que. uma libra e umas moedas de cobre.

— Pobre velho! disse consigo, mais falta lhe faz que a mim. Quer dizer que passarei quinze dias sem tomar carros de aluguel.

E, cruzando o estúdio, deslisou a libra na mão do mendigo.

O velho estremeceu.

Depois, um leve sorriso vagou em seus lábios secos.

— Obrigado, cavalheiro, obrigado.

Quando Trevor voltou, Hughie se despediu deli e algo atordoado pelo seu ato. Passou o dia todo com Laura, que lhe passou um pito encantador pela sua prodigalidade, e teve que voltar a pé para casa. Naquela noite entrou no Club da Palheta lá pelas onze, encontrando Trevor só, no salão de fumar,  em frente dum copo de vinho branco com água de Seltz.

— E então, Alan? disse-lhe, acendendo um cigarro. Terminou, o quadro como desejava?

— Terminei-o e lhe pus moldura, respondeu Trevor. A propósito, você fez uma conquista; esse velho modelo que viu, está encantado com você. Não tive remédio senão falar-lhe de você e contar-lhe tudo..., quem você é, seus rendimentos, seus projetos para o futuro...

— Meu caro Alan, replicou Hughie, estou certo de que vou encontrá-lo de guarda à porta de minha, casa, quando me recolher. Estou brincando. Pobre homem! Quisera poder fazer algo por ele. Acho terrível que alguém possa ser tio miserável. Tenho tanta roupa velha em casa! Crê que ele gostaria? Parece-me que sim, pois os seus farrapos cabiam em pedaços.

— Mas também lhe assentavam admiravelmente! disse Trevor. Jamais lhe faria o retrato de fraque. O que você chama de andrajos, chamo pitoresco; o que a você parece pobreza, me parece sabor local. Apesar de tudo isso, falar-lhe-ei de sua oferta.

— Alan, disse Hughie em tom sério, vocês pintores não têm coração.

— Um artista tem o coração na cabeça — respondeu Trevor. Além disso, nossa missão consiste, em ver o mundo tal como é, e não em refazê-lo, segundo o que dele sabemos. Cada qual em seu ofício. E agora, dê-me notícias de Laura. O velho modelo se interessou realmente por ela.

— Não me quer dizer que lhe falou de minha noiva? disse Hughie.

— Mas está claro que sim, ele sabe tudo já: o coronel inflexível, a encantadora Laura e as dez mil libras.

— E você contou meus assuntos particulares a esse velho mendigo! exclamou Hughie, de cara zangada e cheio de cólera.

— Meu amigo, disse Trevor sorrindo, esse velho mendigo, como você diz, é um dos homens mais ricos da Europa. Poderia comprar toda Londres amanhã sem esgotar a sua fortuna. Possui uma casa em todas as capitais. Come em baixela de ouro, e se lhe incomoda que a Rússia continue em guerra, pode impedi-lo.

— Que me diz você? articulou Hughie.

Não exagero, prosseguiu Trevor. O velho que você viu hoje em meu estúdio era o barão de Hansberg. É um de meus melhores amigos. Compra todos os meus quadros e muitos mais. Há um mês, me pediu que lhe fizesse um retrato em trajes de mendigo. Que quer você? Capricho de milionário. Mas devo reconhecer que ficava magnifico com os seus farrapos. Ou melhor, com os meus farrapos. É um traje antigo que adquiri na Espanha.

 — O barão Hansberg: Deus meu! exclamou Hughie E eu que lhe dei uma libra!

E se deixou cair numa poltrona como uma encarnação viva do desalento.

— Que? Você lhe deu uma libra! gritou Trevor dando uma gargalhada. Pois não tornará a ver essa libra, meu amigo! O negócio do barão Hansberg é precisamente o dinheiro dos outros.

Parece-me, Alan, que você me devia ter avisado, disse Hughie em tom mal humorado, em vez de me deixar cometer unia tolice tão ridícula.

— Vamos, Hughie, disse Trevor. Em primeiro lugar não podia saber que você andava assim, ao acaso, repartindo esmolas dessa maneira extravagante. Que beijasse meu modelo feminino bonito, compreendo-o, mas que desse um litro a um modelo de fealdade, isso é que não, por Jupiter! Além disso. naquele dia a minha porta estiva fechada para todo o mundo. Quando você chegou, pensei se Hansberg gostaria de se dar a conhecer. Como você viu, ele não estava em traje de baile.

— Estou certo de que ele faz de mim um belo juízo.

— Nada disso! Estava encantado. Quando você se foi, não deixava de murmurar e de esfregar eis mãos enrugadas. Eu me perguntava porque insistia tanto em saber tudo quanto se referia a você, mas não podia compreender; porém agora vejo claríssimo. Vai colocar essa libra em seu nome, Hughie. Cada semestre lhe enviará os juros, e assim terá uma história magnífica para contar aos seus descendentes.

— Sou um desgraçado, — gaguejou Hughie. O melhor que posso fazer é ir me deitar! Quanto a você, caro Alan, suplico-lhe que não o conte a ninguém: ou não torno a sair à rua.

— Ora, tolices! Isso faz muita honra a seu espirito filantrópico, Hughie. Não vá ainda! Pegue outro cigarro, e me fale de Laura, tudo o que quiser.

Mas Hughie não quiz ficar.

Regressou a pé para casa, sentindo-se muito magoado e deixou Alan com um ataque de riso.

Na manhã seguinte, enquanto almoçava, o criado lhe entregou um cartão com estas palavras: "Gustavo Naudin. De parte do senhor barão de Hansberg".

— Suponho que me manda pedir explicações, pensou Hughie. E ordenou ao criado que introduzisse aquele cavalheiro.

Entrou um senhor velho de óculos de ouro e cabelos grisalhos, e disse com um leve sotaque francês:

— É ao senhor Hughie Erskine que tenho a honra de falar?

Hughie se inclinou.

— Venho de parte do barão de Hansberg, juntou...O barão...

— Rogo-lhe, cavalheiro, que apresente ao barão as minhas Tilais sinceras desculpas, balbuciou Hughie.

O barão, prosseguiu o senhor idoso, me encarregou de lhe entregar esta carta.

E lhe deu um sobrescrito lacrado.

Nele estavam escritas as seguintes palavras:

"Presente de casamento oferecido a Hughie Erskine e Laura Merton, por um velho mendigo."

E dentro havia um cheque de dez mil libras.

Quando se celebrou o casamento, Alan foi uma das testemunhas e o barão pronunciou um discurso no almoço nupcial.

— Modelos milionários, fez notar Alan, são já uma coisa raríssima, porém milionários modelos são algo ainda mais raro.


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Tradução de Daniel de Castro
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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