3/12/2025

O Rei da Montanha de Ouro (Irmãos Grimm), por Monteiro Lobato



O REI DA MONTANHA DE OURO

RA UMA vez um negociante que só tinha um filho, um menino que ainda estava engatinhando. Havia mandado a outro país um navio carregado de mercadorias e esperava ganhar muito dinheiro nesse negócio; mas o navio naufragou e lá se foi tudo quanto ele possuía.

Ficou assim pobre dum momento para outro; da sua fortuna só lhe restava uma pequena chácara fora da cidade, para a qual se retirou a fim de chorar à vontade as suas tristezas. Um dia em que estava na casinha deserta passeando de cá para lá de mãos nas costas, apareceu-lhe uma figurinha preta, muito feia que indagou dos seus negócios.

— Que adianta dizer, se ninguém pode ajudar-me? respondeu o negociante.

— Quem sabe lá se posso ou não? replicou a figurinha.

Então o negociante foi e contou que toda a sua fortuna se perdera num naufrágio, só lhe restando aquele pedacinho de terra.

— Não se amofine por mais tempo, disse a figurinha, e se me promete trazer aqui, de hoje a doze anos, a primeira coisa que esbarrar em sua perna quando o senhor entrar na sua casa da cidade, eu lhe darei quanto dinheiro quiser.

O homem pensou num cachorro que havia na casa da cidade e era sempre quem o recebia quando ele entrava de fora e não achou perigoso fazer o juramento que a figurinha exigia. Um pacto foi assinado.

Logo depois voltou à cidade e, ao entrar em casa, sentiu logo qualquer coisa apoiar-se em seu joelho: era o filhinho que estava começando a andar. O pobre pai lembrou-se do pacto e sentiu-se apavorado, pois que teria de entregar à figurinha aquele menino dali a doze anos. Mas como não encontrasse dinheiro nenhum na casa não deu grande importância ao incidente, certo de que a figurinha havia mangado com ele.

Um mês mais tarde, entretanto, foi ao armário buscar um velho e pesado serviço de chá feito de chumbo, que queria vender a peso para comprar pão, e com grande espanto viu que estava transformado em ouro. O mesmo acontecia com outros objetos de metal lá guardados. Vendeu aquele ouro e tornou-se ainda mais rico do que fora antes.

Nesse meio tempo o menino ia crescendo, e quanto mais se aproximava da idade dos doze anos mais o coração do negociante se apertava. Um dia o filho indagou da razão de tanta tristeza. O pai a princípio teve escrúpulo em contar; depois contou tudo — toda a história do juramento que iria obrigá-lo a entregar o seu querido filho à figurinha.

— Meu pai, respondeu o menino, não se aborreça com isso, porque farei de jeito que a figurinha não tenha nenhum poder sobre mim.

O tempo foi correndo e afinal o prazo da entrega chegou. Dirigiram-se os dois para um campo deserto onde o menino traçou no chão um círculo dentro do qual ficou junto com o pai.

Logo depois apareceu a figurinha.

— Trouxe o que prometeu? indagou ela do negociante, que se conservou calado; quem respondeu foi o menino:

— Que é que você quer aqui, figurinha?

— Vim falar com seu pai e não consigo.

— Você enganou e traiu meu pai, tornou o menino, e agora tem de desmanchar o pacto que ele assinou.

— Nunca! foi a resposta. Estou no meu direito de exigir o prometido.

Começou a discussão, e depois de muito discutirem ficou assentado que, como o menino não quisesse obedecer à figurinha e como já não pertencesse ao seu pai, a única solução seria pô-lo num bote e soltá-lo rio abaixo. Não ficaria assim pertencendo nem a um nem a outro, e sim ao Acaso. O menino então despediu-se de seu pai, entrou no bote e deixou que a embarcação flutuasse ao sabor da correnteza. Logo adiante o bote virou, e o triste negociante voltou para casa em lágrimas, certo de que o seu querido filho tinha morrido afogado.

Mas tal não se dera. Quando o bote virou o menino soube agarrar-se e, assim agarrado, foi descendo o rio até que pôde tomar pé numa prainha que dava para um palácio encantado.

O menino dirigiu-se para lá. Entrou. Não viu ninguém. Todas as salas estavam completamente vazias; só na última pôde descobrir um vivente uma cobra enrodilhada. A alegria da cobra ao vê-lo foi imensa e ela imediatamente falou:

— Veio libertar-me? Oh, felicidade! Há doze anos que espero este momento feliz. O meu reino foi vítima dum encanto que só poderia ser quebrado com a sua presença aqui.

— E de que modo posso quebrar esse encanto? indagou o menino.

— Vou contar. Esta noite aparecerão aqui doze anões negros, que estranharão a sua presença no palácio. Mas você não responderá a nenhuma das suas perguntas. Eles judiarão de você, com pancadas e outros tormentos. Se você resistir e nada disser, eles se afastarão e passarão doze anos sem voltar.

Na noite seguinte virão outros doze anões, e na terceira noite virão vinte e quatro e estes cortarão a sua cabeça com uma faca. Não faz mal.

À meia-noite em ponto o poder deles acaba e eu farei você viver de novo com umas gotas da água vital.

— Muito bem. Aceito, disse o menino. Quero quebrar esse encanto.

E tudo aconteceu como a cobra previu. Os anões negros vieram e por mais que fizessem não conseguiram arrancar do menino uma só palavra; a mesma coisa na segunda noite; e na terceira apareceram os vinte e quatro anões que o degolaram. Mas logo em seguida chegou a meia-noite e a cobra pingou água vital sôbre a cabeça do menino, fazendo-o voltar à vida incontinenti. E então não viu mais cobra nenhuma e sim uma donzela de maravilhosa beleza, que o abraçava e beijava no meio da barulheira do palácio, de novo restituído à animação da vida. O casamento foi celebrado no mesmo dia e o rapaz tornou-se o Rei da Montanha de Ouro.

O novo casal viveu muito feliz, com o palácio alegrado pelo nascimento do primeiro filhinho.

Mas à medida que o tempo corria, o moço começava a sentir apertos no coração. Eram saudades de seu pai. Por fim resolveu ir visitá-lo. A rainha não gostou nada da idéia, mas tanto foi insistida que acabou cedendo.

— Sei que essa viagem vai trazer-nos desgraça, dizia ela.

No dia da partida a rainha deu ao esposo um anel mágico.

— Leve esta prenda no dedo; sempre que desejar qualquer coisa basta que lhe dê uma volta. Mas prometa-me que não desejará que eu apareça diante de seu pai, sim?

O rei prometeu e, dando uma volta no anel, desejou ser transportado imediatamente para a casa do seu pai. No mesmo instante encontrou-se perto da cidade em que ele morava mas não pôde entrar. Os guardas estranharam o seu vestuário de rei desconhecido e tiveram medo de complicações. Ele então dirigiu-se a uma cabana rústica, onde se disfarçou em humilde camponês. Assim vestido entrou na cidade facilmente e apresentou-se na casa paterna.

O pai não o reconheceu e não quis acreditar nas maravilhas contadas pelo filho, tanta era a sua certeza de que o menino havia morrido afogado.

O moço insistiu e por fim propôs:

— Não se lembra de algum sinal em meu corpo, que lhe permita reconhecer-me como o seu filho perdido? Sim, disse o pai. Meu filho tinha no ombro um sinal de nascença que era um perfeito morango.

— Aqui está o morango, disse o rapaz abrindo a camisa.

Não podia haver mais dúvidas e o pai reconheceu-o como o filho julgado morto. Então o moço contou que era agora rei o Rei da Montanha de Ouro, casado com uma linda princesa e já com um filhinho de sete anos.

O pai não acreditou.

— Impossível, meu filho! Isso são lorotas. Onde já se viu um rei vestido dessa maneira?

Aquela incredulidade desesperou o rapaz, e o levou a esquecer da promessa feita à rainha. Na ânsia de demonstrar ao pai que era mesmo rei, ele deu volta ao anel e desejou que a rainha e o filhinho aparecessem ali.

Assim foi. A rainha e o príncipe de sete anos surgiram na sala incontinenti; mas a rainha apareceu em lágrimas, queixando-se da quebra da promessa, fato que a ia tornar infeliz. O esposo desculpou-se dizendo que fizera aquilo num momento de desespero diante da incredulidade de seu pai e a rainha fez que se conformou com a explicação.

Nesse mesmo dia, mais tarde, o rei a levou para os arredores da cidade a fim de mostrar-lhe o rio em que o bote havia naufragado. Depois sentaram-se e o rei descansou a cabeça no colo da rainha, acabando por dormir a sono solto. A rainha então tirou-lhe do dedo o anel mágico e, escorregando com o colo, repousou a cabeça do rei no chão, muito devagarinho. Em seguida tomou nos braços o menino e, dando volta ao anel, desejou ser imediatamente transportada ao seu reino.

Quando o rei acordou, viu-se só, sem a esposa, sem o filho e também sem o anel mágico. Ficou muito triste, a refletir. Viu que voltar para a casa de seu pai era impossível; todos começariam a julgá-lo feiticeiro; a solução única seria correr mundo a ver se encontrava de novo o seu reino perdido.

Pôs-se a caminho. Foi andando, andando, andando até que numa floresta encontrou três gigantes. Estavam de briga por causa duma herança. Os gigantes chamaram-no.

— Venha cá, homenzinho. Talvez consiga fazer uma repartição que nos agrade.

A herança consistia em três coisas. Uma espada que ao ouvir a ordem de "Cabeças fora, menos a minha!" roçava quanta cabeça houvesse perto. Um relógio que tornava seu possuidor invisível e um par de botas que levava quem as calçasse para onde ele quisesse.

O moço pensou uns instantes e disse:

— Preciso, primeiro, examinar essas três coisas para ver se estão em ordem.

Os gigantes concordaram, e em primeiro lugar apresentaram o relógio.

O rei lhe deu corda e imediatamente se sentiu transformado em mosca invisível.

— Está em ordem, disse o rei, voltando à sua forma primitiva. E a espada? Deixem-me ver a espada.

— Oh, isso não! declarou um dos gigantes. Você, para experimentá-la tem de dizer a palavra mágica e lá se vão as nossas cabeças, só ficando a sua.

Mas o moço insistiu, prometendo que a experimentaria nas árvores próximas. Os gigantes afinal concordaram e a espada arrasou num relance com todas as árvores, como se fossem canas.

— Está em ordem, disse o rei. Quero agora examinar as botas.

— Isso não, disseram os gigantes. Se vai examiná-las, terá de metê-las nos pés e você pode sumir-se deixando-nos a ver navios.

Mas o rei prometeu que não faria semelhante coisa e eles lhe deram as botas. O rei calçou-as, mas nesse momento sentiu tal saudade da esposa e do filhinho que resolveu pregar uma peça nos gigantes.

Muito bem, disse ele. Os objetos da herança já vi que estão em perfeito estado; mas como sou o juiz e acho que os herdeiros não merecem entrar na posse da herança, fico-me com ela em paga dos meus serviços.

Disse e desapareceu. As botas levaram-no incontinenti à Montanha de Ouro. Ao aproximar-se do palácio viu que estava em festas; de todos lados músicas e folguedos. Indagou do que havia e soube que, tendo a rainha enviuvado, reunira os príncipes dos reinos vizinhos para entre eles escolher novo esposo. O rei então deu corda no relógio e penetrou no palácio. Ninguém o viu, porque se tornara invisível. Foi para o salão de festas, onde um grande banquete ia no apogeu, presidido pela rainha. 

O rei colocou-se atrás dela e começou a tirar de seu prato tudo quanto lhe era servido. Todos se assombraram daquele mistério e a rainha levantou-se da mesa a chorar de raiva e recolheu-se ao quarto. O rei a seguiu, sempre invisível. Lá dentro deu corda no relógio para trás e assim se tornou de novo bem visível.

— Oh, você ! exclamou a rainha no auge do espanto.

— Sim, eu, mulher ingrata! Que fiz para merecer o abandono numa terra distante, eu que fui o seu desencantador?

A rainha caiu em si e, sentindo o coração inundado de todo o amor antigo, pediu-lhe perdão. Em seguida voltou à sala e explicou aos convivas que o seu querido esposo havia reaparecido e que portanto todos podiam retirar-se.

Logo que o bom rei entrou na posse dos seus domínios, a primeira coisa que fez foi mandar buscar o velho pai para que vivesse ali pelo resto da vida.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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