3/09/2025

A Pastorinha de Gansos (dos Irmãos Grimm), por Monteiro Lobato



A PASTORINHA DE GANSOS

Uma rainha enviuvou ficando só com uma filha de rara beleza. Essa menina cresceu entre mimos e ao chegar à idade própria foi prometida em casamento ao filho do rei dum reino próximo. Quando veio a época do enlace teve ela de partir para a corte do noivo. A rainha viúva preparou-lhe um riquíssimo enxoval que, além de preciosos vestidos, incluía móveis raros, cristais finíssimos e mil objetos de ouro e prata. Deu-lhe também uma aia para servi-la durante a viagem, e um lindo cavalo de nome Falante. No momento das despedidas a rainha levou-a para o seu quarto e fez o seguinte: espetou um dos seus próprios dedos na ponta duma faca de ouro e fez pingar três gotas de sangue num lenço de renda, o qual entregou à filha com estas recomendações:

— Guarde bem isto, minha querida, que terá socorro em todas as aflições.

A princesinha guardou o lenço no regaço, beijou a rainha nas faces, montou no cavalo e partiu. Algumas horas mais tarde teve sede e ordenou à aia:

— Apeie-se e traga-me em meu copo de ouro um pouco d’água daquele regato.

— Se está com sede, desça do animal e vá beber, pois daqui por diante não me considero mais sua criada.

A princesa estranhou muito aquelas palavras, mas como estivesse realmente com sede, apeou-se e foi beber ao regato; nem coragem teve de pedir o copo de ouro. No momento em que bebia, as três gotas de sangue do lenço lhe disseram:

— Ah, se sua mãe viesse a saber disto, o seu coração se partiria de dor!

Muito humilhada e triste, a princesa tornou a montar e prosseguiu na viagem. Algumas léguas adiante sentiu de novo sede e já esquecida da desfeita da aia pediu-lhe outro copo d’água. A resposta foi a mesma.

— Se está com sede, desça e beba. Já não sou sua criada.

A princesa assim fez. Desceu e bebeu pelas mãos em concha suspirando: "Ai de mim!"

E as três gotas de sangue repetiram:

— Se sua mãe viesse a saber disto, o seu coração se...

Mas não puderam concluir a frase; o lenço caiu no regato e lá se foi pela correnteza abaixo.

— O meu lenço! exclamou ela aflita — e a aia sorriu vitoriosa, pois dali por diante iria dominar completamente a princesa. Sem o auxílio das gotas mágicas seria ela um joguete em suas mãos. E assim, logo que a princesa fez menção de montar, a aia interrompeu-a, dizendo:

— Não, Falante agora me pertence. Vá no meu cavalo.

A pobre princesa teve de obedecer e lá seguiu viagem, mais aflita do que nunca. Logo adiante a aia obrigou-a a despir os seus trajes reais e deu-lhe em troca os seus de criada, fazendo-a jurar sob pena de morte que nada diria ao noivo de tudo quanto se passara.

O resto da viagem foi feito assim — com a aia transformada em princesa e a princesa transformada em aia. Ao chegarem ao palácio do noivo, veio este com o seu séquito ao encontro da aia e fê-la descer, certo de que era a sua noiva. A impostora, foi conduzida ao paço com grande pompa, e a princesa ficou de fora, na rua. O rei, pai, do príncipe, que a tudo assistia duma janela, viu aquela moça por ali, e impressionado com a sua rara beleza foi indaga te quem era.

— Trata-se de uma rapariga que veio comigo, para me servir, respondeu incontinenti a aia. É bom que lhe dêem algum serviço para que não fique a vagabundear pela cidade.

O rei não sabia que serviço dar-lhe; por fim teve uma ideia.

— Já sei. Tenho aqui perto um rapaz, de nome Conrado que pastoreia os meus gansos. Ela poderá ajudá-lo.

E foi desse modo que a linda princesa se viu trans-formada em guardadora de gansos.

Mas a embusteira ainda não estava sossegada. Era preciso dar cabo de Falante. Em certo momento disse ao noivo:

— Poderá fazer-me um favor, querido?

— Com o maior prazer, respondeu o príncipe.

Quero que cortem a cabeça do cavalo em que vim montada. Esse animal aborreceu-me muito pelo caminho.

Na realidade o que ela queria era ver-se livre da única testemunha do seu crime, e foi, pois, com grande satisfação que soube da morte do generoso cavalo.

A princesa também soube do triste fato e tirando do bolsinho a única moeda de ouro que conservava, deu-a ao matador para que pendurasse a cabeça do cavalo num arco de pedra através do qual costumava passar diariamente com os seus gansos. Desse modo teria o consolo de ver sempre a cabeça do amado corcel.

No dia seguinte, muito cedo, ao transpor o arco atrás do bando de gansos, a pobre princesa exclamou num suspiro:

— Ah, Falante! Nunca imaginei que você tivesse tão triste fim!

E a cabeça de cavalo respondeu:

— Também nunca imaginei vê-la sofrer assim! Se sua mãe soubesse...

Para além do arco havia uma grande pastagem onde os gansos passavam o dia. Lá chegando a princesa sentou-se na relva e soltou aos ventos a sua maravilhosa cabeleira de ouro. Aquilo deslumbrou de tal modo ao pobre Conrado que ele se agarrou às madeixas e pôs-se a puxá-las com toda a força para arrancar alguns cachos. A princesa então cantou este verso:

Sopra bem forte, amigo vento!
Leva a rolar por esse prado
O chapeuzinho de Conrado.
E não permitas que ele o pegue
Antes de pronto o meu penteado.


No mesmo instante começou a soprar um vento fortíssimo, que levou para longe o chapéu de Conrado e o fez disparar na corrida pelo campo afora. Quando finalmente conseguiu apanhar o chapéu e voltou, já, a princesa estava penteada e ele sem meios de lhe roubar um dos cobiçados cachos. Isto o enfureceu, e durante o resto do dia os dois não mais trocaram uma só palavra. Guardaram os gansos em silêncio, voltando para o palácio ao cair da noite.

No outro dia, pela manhã, passaram de novo sob o arco e a princesa repetiu as palavras da véspera:

— Ah, Falante! Nunca esperei que você tivesse tão triste fim!

E a cabeça respondeu:

— Também nunca imaginei vê-la sofrer assim. Se sua mãe soubesse...

Chegados ao campo e soltos os gansos, a princesa desfez novamente a cabeleira para penteá-la — e Conrado novamente sentiu a tentação de roubar um cacho. Mas assim que avançou a moça repetiu o verso:

Sopra bem forte, amigo vento!
Leva a rolar por esse prado
O chapeuzinho de Conrado.
E não permitas que ele o pegue
Antes de pronto o meu penteado.

O vento obedeceu; soprou forte e levou longe o chapéu de Conrado, com ele atrás. Quando voltou a princesa já se penteara. Conrado emburrou e não disse palavra o resto do dia.

De volta ao palácio o rapaz foi ter com o rei, ao qual declarou que não desejava continuar guardando gansos em companhia daquela moça.

— Por quê? indagou o rei.

— Oh! ela me aborrece todo o dia.

O rei insistiu e Conrado contou tudo. Contou que todas as manhãs, ao passarem pelo arco, ela dizia uma palavra para a cabeça do cavalo e que essa cabeça dava uma resposta. Depois contou a história do vento que lhe levava o chapéu pelos campos em fora.

O rei ficou muito impressionado e resolveu tirar aquilo a limpo. Para isso ordenou que Conrado a levasse ao campo, como de costume, enquanto ele iria investigar.

Na manhã seguinte, muito cedo, o rei foi esconder-se atrás do arco para ouvir a conversa da pastorinha com a cabeça do cavalo. Depois correu ao campo e ficou escondido numa moita — e também assistiu a toda cena do cabelo, do vento e do chapéu de Conrado. Viu com os próprios olhos a pastorinha sentar-se na relva e desatar a deslumbrante cabeleira de puro ouro. Viu Conrado avançar para ela a fim de roubar um cacho. E viu-a abrir a boca formosíssima e repetir aquele verso:

Sopra bem forte, amigo vento!
Leva a rolar por esse prado
O chapeuzinho de Conrado.
E não permitas que ele o pegue
Antes de pronto o meu penteado.

Mal a princesa acabou de dizer o verso, o rei sentiu a brisa leve transformar-se em vento forte, que lá levou a rolar pelos campos além o chapeuzinho de Conrado. Tudo exato como o rapaz contara.

O rei voltou ao palácio sèriamente impressionado, e à, noite, quando a pastorinha regressou, mandou-a vir à sua presença para que explicasse a significação de tudo aquilo.

— Nada posso dize; majestade, nem a vós nem a ninguém, pois jurei calar-me e se quebrar o juramento perderei a vida.

 O rei insistiu e vendo que eram inúteis todos os esforços, declarou:

— Bem. Já que não quer contar-me o misterioso segredo, confie-o ao fogo da lareira. Desse modo desaba-fará as suas mágoas.

Disse e retirou-se, deixando a moça sozinha na sala onde ardia um bom fogo na lareira. A princesa aproximou-se do fogo e contou a sua história inteirinha, porque, como bem dissera o rei, só desse modo poderia desabafar o coração.

— Ai de mim! exclamou ela. De que me serve ser filha de rei, se me vejo abandonada de todos? E tudo por causa duma aia perversa que me traiu, que me fez perder o lenço mágico, que me forçou a trocar os vestidos reais pelos dela para desse modo enganar ao príncipe meu noivo. Enquanto isso me vejo forçada a guardar gansos no pasto em companhia dum pobre rapaz! Oh, se minha mãe soubesse, o seu coração partir-se-ia de dor!

O rei, entretanto, tinha ficado escondido atrás da lareira e pôde assim ouvir toda a confissão da triste princesa. Ficou revoltado com a infâmia da aia e preparou um plano de vingança. Para isso ordenou que recolhessem a pastorinha ao palácio e a vestissem com o mais lindo vestido da corte. Depois chamou o príncipe e pô-lo a par de tudo, apresentando-lhe a sua verdadeira noiva.

O príncipe sentiu-se deslumbrado pela beleza da moça e mandou anunciar uma grande festa no parque do palácio. Fez nele armar uma plataforma para um banquete e no dia da festa apareceu ladeado das duas princesas, a verdadeira e a falsa. Esta última não pôde reconhecer a sua ama traída e também ignorava que o seu embuste já havia sido descoberto.

Findo o banquete, e quando os convivas se achavam no auge da animação, o rei dirigiu-se à falsa princesa e contou uma história muito semelhante à dela, perguntando que castigo mereceria uma criada que se comportasse assim. Fez a coisa dum modo muito natural, de jeito que a embusteira de nada desconfiasse.

— Na minha opinião, respondeu ela, uma criatura tão vil a ponto de cometer semelhante horror, devia ser posta dentro duma barrica cheia de pontas de pregos e rolada morro abaixo.

— Pois assim se faça. Essa criada traidora é você!

A sentença foi imediatamente cumprida e o príncipe desposou a princesa verdadeira, com a qual viveu na mais completa felicidade.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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