
Vou contar a história de três
pobres soldados que, depois de concluída a guerra, voltaram para casa a pedir
esmolas pelo caminho. Tinham caído numa miséria horrível e já haviam andado
léguas e léguas, aborrecidíssimos com a falta de sorte, quando chegaram a uma
espessa floresta que tinha de ser atravessada. Por ela se meteram e foram indo
por entre a paulama, cai aqui, tropeça ali, até que a noite os colheu. Não
havia remédio senão dormir debaixo das árvores. De medo das feras combinaram
então que enquanto dois dormissem um ficaria montando guarda com o olho bem
arregalado.
Passadas umas tantas horas, o que
estivesse de guarda acordaria um dos outros para o substituir e desse modo
todos se revezariam.
Assim foi feito. Tiraram a sorte; o
sorteado ficou de sentinela e os outros ferraram no sono, junto à fogueira que
haviam acendido.
Lá pelo meio da noite apareceu um
anãozinho vestido de vermelho. Chegou, espiou e disse para a sentinela:
— Quem é você?
— Um amigo, respondeu o soldado.
— Que espécie de amigo?
— Sou um velho e infeliz soldado;
eu e mais esses dois que estão a dormir estivemos na guerra, e agora vamos indo
para casa. Infelizmente estamos na maior miséria, sofrendo falta de tudo e
obrigados a viver de esmolas. Brrr! Está fria a noite, não? Venha sentar-se
perto deste foguinho para aquecer-se, meu caro senhor anão.
Obrigado, bom amigo, agradeceu a
figurinha. Vejo que tem boa alma e quero ajudá-lo. Tome isto — esta minha capa,
disse tirando de sobre os ombros a sua velha capa vermelha. Cada vez que
desejar qualquer coisa basta vesti-la e dizer o que quer. Seu desejo será imediatamente
satisfeito, concluiu o anão desaparecendo.
O soldado ficou muito contente, e
mais ainda de já ser hora de acordar um dos outros para o revezar. Acordou esse
outro e foi dormir.
O anãozinho apareceu para a nova
sentinela e fez as mesmas perguntas; vendo que também tinha bom coração,
deu-lhe uma bolsa mágica, que não se esvaziava nunca por mais moedas de ouro
que fossem tiradas de dentro.
Quando chegou a vez do terceiro
soldado ficar de sentinela, o anãozinho apareceu pela última vez e a cena se
repetiu. O terceiro soldado ganhou uma corneta encantada; seu toque juntava
imediatamente todo um exército, que ficaria às ordens do corneteiro para tudo
quanto ele ordenasse.
Pela manhã cada soldado contou a
sua história. e mostrou o dom recebido. Eram muito camaradas os três, de modo
que combinaram não se separarem nunca e vi-verem irmãmente. Também combinaram
dar uma volta em redor do mundo, usando apenas a bolsa mágica. A capa e a
cometa ficariam para mais tarde.
Assim fizeram e andaram a correr
mundo por longo tempo, gastando quanto queriam porque a bolsa era na verdade
inesgotável. Por mais que a despejassem permanecia sempre cheinha de belas
moedas de ouro. Por fim enjoaram de correr mundo e manifestaram o desejo de
viver sossegados num grande castelo. O soldado da capa, então, jogou esse dom sobre
os ombros e disse em voz alta o que queria. Imediatamente surgiu ante seus
olhos um maravilhoso castelo circundado de parques e com uma pradaria linda,
cheia de carneiros, cabras, bois e cavalos. Os portões logo se abriram como por
encanto, e eles puderam penetrar na magnífica morada.
Ali passaram a viver regaladamente,
servidos por numerosa criadagem e com tudo quanto podiam desejar. Um dia,
porém, cansaram-se de tanto sossego e quiseram aventuras. Mandaram pôr uma
carruagem riquíssima, vestiram-se com as melhores roupas e lá se foram de
visita a um rei vizinho. Esse rei possuía uma filha única e como julgasse que
os três soldados fossem três príncipes, filhos dalgum reino próximo, recebeu-os
com grandes atenções, na esperança de que um deles se casasse com a princesa.
Houve muitas festas e passeios. Num
destes passeios, em que o segundo soldado caminhava ao lado da princesa,
reparou ela na bolsa que lhe via sempre à cintura e perguntou que bolsa era
aquela. O bobalhão caiu na tolice de contar a história toda; e aliás se não
contasse dava na mesma, porque a tal princesa era uma bruxa das que adivinham
tudo. Por isso já havia adivinhado que cada um dos visitantes era dono dum
objeto mágico de imenso valor. E como além de bruxa fosse ambiciosíssima, a
princesa armou logo um plano para lograr os soldados. Começou mandando fazer
uma bolsa igualzinha àquela e num dia em que pilhou o soldado de jeito, deu-lhe
um vinho por ela mesma preparado, que o fez dormir em meio minuto. Em seguida
tirou-lhe da cinta a bolsa mágica e pôs no lugar a imitação.
Terminada a visita os três soldados
despediram-se e regressaram ao castelo. Logo depois houve necessidade de
dinheiro e a bolsa falhou. Tiradas as moedas que estavam dentro, não se encheu
mais, como acontecia antes.
— Hum! já sei! murmurou o segundo
soldado. Caí na asneira de contar a história da bolsa mágica àquela princesa e
a diaba trocou-a por outra, depois de me haver dado vinho com dormideira. Foi
ela! Foi a princesa ladra! E agora? que vai ser de nós? e desesperou, chorando
e arrancando os cabelos.
— Não se amofine desse modo, amigo,
disse-lhe o primeiro soldado. Vou lá num ápice e trago a bolsa, quer ver? e
lançando a capa ao ombro manifestou em voz alta o desejo de ser transportado incontinenti
para os aposentos da princesa.
Assim aconteceu. Em menos de um
segundo viu-se no quarto da princesa, que estava a empilhar as moedas de ouro
que ia despejando da maravilhosa bolsa. O soldado lerdeou; em vez de agarrar a
bolso e fugir, ficou de boca aberta a contemplar a cena. Nisto a princesa
percebeu a sua presença e botou a boca no mundo.
— Socorro! Socorro! Um ladrão no
meu quarto! Acudam!
Ouvindo tais berros, todos da corte
correram para os aposentos da princesa e lançaram-se contra o burríssimo
soldado, que, tomado de pavor, fugiu com quantas pernas tinha. Nem se lembrou
da capa mágica, o bobo; fugiu pela janela, como fogem os gatunos, e tão desastradamente
que a preciosa capa enganchou num prego e lá ficou.
A princesa ladra sorriu.
— Ótimo. Já tinha a bolsa e agora
tenho a capa. Falta só a cometa.
Quando o primeiro soldado chegou ao
castelo, mais morto que vivo, estropiado da carreira, não achou outra coisa a
fazer senão entregar-se ao desespero. No meio das suas lamentações, porém, o da
corneta disse:
— Não se aflija tanto, amigo. Vou
dar um arranjo nisso, e tocou a sua cometa mágica.
Imediatamente surgiu um enorme
exército de infantes e cavaleiros. O terceiro soldado pôs-se à frente dos
batalhões e deu ordem de marcha contra o reino vizinho. Lá chegando cercou o
palácio do rei e intimou-o a entregar os objetos roubados, sob pena de arrasar
tudo. O rei sentiu-se apavorado e foi falar com a filha.
— Minha filha, é preciso entregar a
bolsa e a, capa, se não estou perdido.
— Espere, meu pai. Tenho um plano
muito bom na cabeça, disse ela piscando — e foi vestir-se de mulher do povo.
Enfiou uma cesta de quitanda no braço e chamando uma aia lá se foi para o
acampamento inimigo.
Cantava muito bem, essa princesa
bruxa, de modo que com os quitutes da cesta e com cantarolas fez logo que os
soldados acudissem todos para vê-la. Até o próprio comandante geral não
resistiu e veio comprar coisas da cesta. Assim que o viu por ali e se
certificou da barraca em que ele estava acampado, a esperta princesa piscou
para a aia, e a aia foi sorrateiramente e entrou na barraca e furtou a cometa.
Feito isto, voltaram as duas muito lampeiras para o palácio.
Tudo mudou sem demora. O exército
sitiante foi desaparecendo e os três soldados tiveram de voltar a pé para o
castelo. Mas que castelo nada! Sumira-se também o castelo, e eles se acharam
tão pobres e desajudados como no começo.
Sentaram-se no chão, muito tristes,
parafusando num meio de arrumar a vida. Por fim um deles disse:
— Camaradas, acho que o melhor é
separar-nos e que cada qual lá se arrume como puder. Adeus!
Disse isso e tomou pela esquerda,
enquanto os outros dois tomaram pela direita, sempre juntos.
O soldado solitário foi andando,
andando, andando, até que esbarrou de novo na mesma floresta do começo.
Meteu-se por entre as árvores e caminhou o dia inteiro; logo que anoiteceu,
deitou-se debaixo duma árvore e ferrou no sono.
Ao romper da aurora abriu os olhos
e com grande alegria viu que tinha dormido debaixo duma macieira carregadinha
de belas maçãs maduras. Sua fome era das boas, de modo que só pensou em encher
o papo. Comeu uma, duas, três maçãs; quando ia comer a quarta, não pôde;
qualquer coisa o impedia de a levar à boca.
— Que será isto?
Apalpou-se e viu que o misterioso
embaraço era nada mais nada menos que o seu próprio nariz, o qual crescera e
estava ainda crescendo dum modo espantoso. Chegou ao umbigo, depois chegou ao
chão, e como continuasse a crescer e fosse ficando cada vez mais pesado, teve ele
de deitar-se. E o nariz continuou a crescer e foi crescendo e caminhando por
ali afora, por entre as árvores. Por fim a ponta desse formidável nariz ficou a
uma distância que poderia ser calculada em meia légua.
Enquanto isso os outros soldados,
depois de muitas voltas, também vieram ter àquela floresta. Súbito um deles
tropeçou numa coisa mole.
— Que será isto? exclama, surpreso.
Olha, examina: era uma ponta de
nariz!
— Camarada, isto é positivamente um
nariz humano. Vamos seguindo por ele afora que havemos de encontrar o dono.
Era mais fácil caminhar por cima do
nariz do que pelo chão, de modo que os dois lhe pularam em cima e foram
caminhando em procura do dono.
— Lá está o dono do nariz! exclamou
o soldado que seguia na frente. Está deitado, o pobre!
Mais uns passos e o reconheceram.
— Que é isso, camarada? Que loucura
essa de espichar o nariz pela mata a dentro?
O mísero contou tudo e deixou os
companheiros perplexos. Que fazer? Caminhar carregando um nariz daqueles era
impossível. Tentaram acomodá-lo sobre o lombo de um burro que viram pastando
por ali. O burro não aguentou a carga. Tentaram enrolá-lo, como se enrola cipó.
Doía muito.
Os dois soldados sentaram-se no
chão junto ao infeliz camarada e coçaram a cabeça. Que fazer? Que fazer?
Nisto apareceu o anãozinho de
vermelho.
— Que há? perguntou rindo-se.
— É este nosso companheiro que está
virando só nariz. Pelo amor de Deus, veja se há um conserto para tamanho
despropósito, porque nós positivamente não sabemos o que fazer.
— É simples, respondeu o anão. Tragam
uma pêra daquela pereira e dêem-lhe a comer. Estas maçãs encompridam nariz e as
peras encurtam.
Os soldados correram a colher peras
e deram-nas ao companheiro. O mísero comeu-as quase sem mastigar e incontinenti
o imenso nariz foi encolhendo até ficar do tamanho primitivo.
— Muito bem, disse o anão. Agora já
sabem o que há a fazer. Levem um sortimento dessas maçãs ao reino da princesa
gatuna e vinguem-se. E tratem de não ser bobos como da primeira vez.
Os soldados agradeceram ao bondoso
anão e partiram, combinando o seguinte: o segundo soldado se disfarçaria em
camponês e iria oferecer as maçãs à princesa ladra, tudo fazendo para que ela
as comesse.
Ao chegar à corte todos se
admiraram da beleza das frutas e quiseram adquiri-las.
— Não, disse o soldado. Maçãs como
estas não são para qualquer. Só uma princesa poderá comê-las.
A princesa soube e mandou vir o
camponês à sua presença.
— Que lindas! exclamou, já com água
na boca. Quanto é?
— Para Vossa Alteza, nada.
Permita-me que as dê de presente.
A princesa nem teve tempo de
agradecer; ferrou os dentes numa, e comeu três num instantinho.
E foi aquele desastre. O seu lindo
nariz começou a crescer, a crescer, a crescer tanto que logo não cabia no
quarto e teve de enfiar-se pela janela. Continuou a crescer e alcançou o parque
e foi indo por ele além até légua e meia dali.
O rei ficou horrorizado com a
estranha doença da filha e fez uma proclamação ao seu povo, prometendo as
maiores recompensas a quem descobrisse um remédio para o misterioso mal.
Mas ninguém se atreveu a
apresentar-se. Para os médicos o remédio único seria cortar o nariz — mas se a
princesa morresse? Nenhum teve ânimo de fazer a operação.
Nisto apresentou-se o segundo
soldado, vestido de médico, e declarou possuir um tratamento infalível para
nariz de légua e meia. Foi introduzido nos aposentos da princesa, onde, depois
de fingir cuidadoso exame, receitou-lhe mais um pedaço de maçã, ficando de
voltar o dia seguinte.
A princesa tomou o remédio e ficou
muito desapontada porque o nariz deu de crescer ainda mais durante a noite.
No dia seguinte o falso médico
examinou de novo a doente e deu-lhe um pedacinho de pêra — um pedacinho só, e
retirou-se, ficando de voltar no dia seguinte. Dessa vez o remédio fez efeito e
o nariz da princesa amanheceu alguns metros mais curto. Para judiar dela o
falso médico deu-lhe em seguida mais um pedaço de maçã — e desse modo foi
alternando maçã e pêra por mais duma semana. Por fim declarou ao rei:
— Há qualquer coisa furtada neste
aposento, que destrói o efeito do meu remédio. Se os objetos furtados não forem
restituídos aos donos, a filha de Vossa Majestade ficará toda a vida de nariz
de légua e meia, sem cura possível.
A princesa protestou; disse que
não, que era mentira, que não havia em seu quarto nada que não lhe pertencesse.
— Muito bem, exclamou o falso
médico. Mas apesar do que diz Vossa Alteza, estou certo de que há aqui três
coisas furtadas e enquanto não forem restituídas aos donos, o vosso augusto
nariz irá crescendo sempre, até dar volta ao mundo.
O rei, apavorado, ordenou à filha
que entregasse os furtos — e a princesa não teve outro remédio. A bolsa, a capa
e a corneta mágicas foram entregues ao médico, para serem restituídas aos
respectivos donos.
Então o falso médico deu à doente
uma pêra inteirinha, que ela comeu com toda a gula — e no mesmo instante o
nariz principiou a encolher até ficar do tamanho que era.
O soldado não esperou por mais.
Lançou a capa ao ombro e murmurou:
— Para o castelo! e no mesmo
instante viu-se no castelo ao lado dos dois companheiros.
Daí por diante viveram bastante
felizes e só saíam de vez em quando, em passeios de carro por perto. Nunca mais
se meteram a visitar os reinos vizinhos.
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Pesquisa,
transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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