3/09/2025

O Nariz de Légua e Meia (dos Irmãos Grimm), por Monteiro Lobato


 
O NARIZ DE LÉGUA E MEIA

Vou contar a história de três pobres soldados que, depois de concluída a guerra, voltaram para casa a pedir esmolas pelo caminho. Tinham caído numa miséria horrível e já haviam andado léguas e léguas, aborrecidíssimos com a falta de sorte, quando chegaram a uma espessa floresta que tinha de ser atravessada. Por ela se meteram e foram indo por entre a paulama, cai aqui, tropeça ali, até que a noite os colheu. Não havia remédio senão dormir debaixo das árvores. De medo das feras combinaram então que enquanto dois dormissem um ficaria montando guarda com o olho bem arregalado.

Passadas umas tantas horas, o que estivesse de guarda acordaria um dos outros para o substituir e desse modo todos se revezariam.

Assim foi feito. Tiraram a sorte; o sorteado ficou de sentinela e os outros ferraram no sono, junto à fogueira que haviam acendido.

Lá pelo meio da noite apareceu um anãozinho vestido de vermelho. Chegou, espiou e disse para a sentinela:

— Quem é você?

— Um amigo, respondeu o soldado.

— Que espécie de amigo?

— Sou um velho e infeliz soldado; eu e mais esses dois que estão a dormir estivemos na guerra, e agora vamos indo para casa. Infelizmente estamos na maior miséria, sofrendo falta de tudo e obrigados a viver de esmolas. Brrr! Está fria a noite, não? Venha sentar-se perto deste foguinho para aquecer-se, meu caro senhor anão.

Obrigado, bom amigo, agradeceu a figurinha. Vejo que tem boa alma e quero ajudá-lo. Tome isto — esta minha capa, disse tirando de sobre os ombros a sua velha capa vermelha. Cada vez que desejar qualquer coisa basta vesti-la e dizer o que quer. Seu desejo será imediatamente satisfeito, concluiu o anão desaparecendo.

O soldado ficou muito contente, e mais ainda de já ser hora de acordar um dos outros para o revezar. Acordou esse outro e foi dormir.

O anãozinho apareceu para a nova sentinela e fez as mesmas perguntas; vendo que também tinha bom coração, deu-lhe uma bolsa mágica, que não se esvaziava nunca por mais moedas de ouro que fossem tiradas de dentro.

Quando chegou a vez do terceiro soldado ficar de sentinela, o anãozinho apareceu pela última vez e a cena se repetiu. O terceiro soldado ganhou uma corneta encantada; seu toque juntava imediatamente todo um exército, que ficaria às ordens do corneteiro para tudo quanto ele ordenasse.

Pela manhã cada soldado contou a sua história. e mostrou o dom recebido. Eram muito camaradas os três, de modo que combinaram não se separarem nunca e vi-verem irmãmente. Também combinaram dar uma volta em redor do mundo, usando apenas a bolsa mágica. A capa e a cometa ficariam para mais tarde.

Assim fizeram e andaram a correr mundo por longo tempo, gastando quanto queriam porque a bolsa era na verdade inesgotável. Por mais que a despejassem permanecia sempre cheinha de belas moedas de ouro. Por fim enjoaram de correr mundo e manifestaram o desejo de viver sossegados num grande castelo. O soldado da capa, então, jogou esse dom sobre os ombros e disse em voz alta o que queria. Imediatamente surgiu ante seus olhos um maravilhoso castelo circundado de parques e com uma pradaria linda, cheia de carneiros, cabras, bois e cavalos. Os portões logo se abriram como por encanto, e eles puderam penetrar na magnífica morada.

Ali passaram a viver regaladamente, servidos por numerosa criadagem e com tudo quanto podiam desejar. Um dia, porém, cansaram-se de tanto sossego e quiseram aventuras. Mandaram pôr uma carruagem riquíssima, vestiram-se com as melhores roupas e lá se foram de visita a um rei vizinho. Esse rei possuía uma filha única e como julgasse que os três soldados fossem três príncipes, filhos dalgum reino próximo, recebeu-os com grandes atenções, na esperança de que um deles se casasse com a princesa.

Houve muitas festas e passeios. Num destes passeios, em que o segundo soldado caminhava ao lado da princesa, reparou ela na bolsa que lhe via sempre à cintura e perguntou que bolsa era aquela. O bobalhão caiu na tolice de contar a história toda; e aliás se não contasse dava na mesma, porque a tal princesa era uma bruxa das que adivinham tudo. Por isso já havia adivinhado que cada um dos visitantes era dono dum objeto mágico de imenso valor. E como além de bruxa fosse ambiciosíssima, a princesa armou logo um plano para lograr os soldados. Começou mandando fazer uma bolsa igualzinha àquela e num dia em que pilhou o soldado de jeito, deu-lhe um vinho por ela mesma preparado, que o fez dormir em meio minuto. Em seguida tirou-lhe da cinta a bolsa mágica e pôs no lugar a imitação.

Terminada a visita os três soldados despediram-se e regressaram ao castelo. Logo depois houve necessidade de dinheiro e a bolsa falhou. Tiradas as moedas que estavam dentro, não se encheu mais, como acontecia antes.

— Hum! já sei! murmurou o segundo soldado. Caí na asneira de contar a história da bolsa mágica àquela princesa e a diaba trocou-a por outra, depois de me haver dado vinho com dormideira. Foi ela! Foi a princesa ladra! E agora? que vai ser de nós? e desesperou, chorando e arrancando os cabelos.

— Não se amofine desse modo, amigo, disse-lhe o primeiro soldado. Vou lá num ápice e trago a bolsa, quer ver? e lançando a capa ao ombro manifestou em voz alta o desejo de ser transportado incontinenti para os aposentos da princesa.

Assim aconteceu. Em menos de um segundo viu-se no quarto da princesa, que estava a empilhar as moedas de ouro que ia despejando da maravilhosa bolsa. O soldado lerdeou; em vez de agarrar a bolso e fugir, ficou de boca aberta a contemplar a cena. Nisto a princesa percebeu a sua presença e botou a boca no mundo.

— Socorro! Socorro! Um ladrão no meu quarto! Acudam!

Ouvindo tais berros, todos da corte correram para os aposentos da princesa e lançaram-se contra o burríssimo soldado, que, tomado de pavor, fugiu com quantas pernas tinha. Nem se lembrou da capa mágica, o bobo; fugiu pela janela, como fogem os gatunos, e tão desastradamente que a preciosa capa enganchou num prego e lá ficou.

A princesa ladra sorriu.

— Ótimo. Já tinha a bolsa e agora tenho a capa. Falta só a cometa.

Quando o primeiro soldado chegou ao castelo, mais morto que vivo, estropiado da carreira, não achou outra coisa a fazer senão entregar-se ao desespero. No meio das suas lamentações, porém, o da corneta disse:

— Não se aflija tanto, amigo. Vou dar um arranjo nisso, e tocou a sua cometa mágica.

Imediatamente surgiu um enorme exército de infantes e cavaleiros. O terceiro soldado pôs-se à frente dos batalhões e deu ordem de marcha contra o reino vizinho. Lá chegando cercou o palácio do rei e intimou-o a entregar os objetos roubados, sob pena de arrasar tudo. O rei sentiu-se apavorado e foi falar com a filha.

— Minha filha, é preciso entregar a bolsa e a, capa, se não estou perdido.

— Espere, meu pai. Tenho um plano muito bom na cabeça, disse ela piscando — e foi vestir-se de mulher do povo. Enfiou uma cesta de quitanda no braço e chamando uma aia lá se foi para o acampamento inimigo.

Cantava muito bem, essa princesa bruxa, de modo que com os quitutes da cesta e com cantarolas fez logo que os soldados acudissem todos para vê-la. Até o próprio comandante geral não resistiu e veio comprar coisas da cesta. Assim que o viu por ali e se certificou da barraca em que ele estava acampado, a esperta princesa piscou para a aia, e a aia foi sorrateiramente e entrou na barraca e furtou a cometa. Feito isto, voltaram as duas muito lampeiras para o palácio.

Tudo mudou sem demora. O exército sitiante foi desaparecendo e os três soldados tiveram de voltar a pé para o castelo. Mas que castelo nada! Sumira-se também o castelo, e eles se acharam tão pobres e desajudados como no começo.

Sentaram-se no chão, muito tristes, parafusando num meio de arrumar a vida. Por fim um deles disse:

— Camaradas, acho que o melhor é separar-nos e que cada qual lá se arrume como puder. Adeus!

Disse isso e tomou pela esquerda, enquanto os outros dois tomaram pela direita, sempre juntos.

O soldado solitário foi andando, andando, andando, até que esbarrou de novo na mesma floresta do começo. Meteu-se por entre as árvores e caminhou o dia inteiro; logo que anoiteceu, deitou-se debaixo duma árvore e ferrou no sono.

Ao romper da aurora abriu os olhos e com grande alegria viu que tinha dormido debaixo duma macieira carregadinha de belas maçãs maduras. Sua fome era das boas, de modo que só pensou em encher o papo. Comeu uma, duas, três maçãs; quando ia comer a quarta, não pôde; qualquer coisa o impedia de a levar à boca.

— Que será isto?

Apalpou-se e viu que o misterioso embaraço era nada mais nada menos que o seu próprio nariz, o qual crescera e estava ainda crescendo dum modo espantoso. Chegou ao umbigo, depois chegou ao chão, e como continuasse a crescer e fosse ficando cada vez mais pesado, teve ele de deitar-se. E o nariz continuou a crescer e foi crescendo e caminhando por ali afora, por entre as árvores. Por fim a ponta desse formidável nariz ficou a uma distância que poderia ser calculada em meia légua.

Enquanto isso os outros soldados, depois de muitas voltas, também vieram ter àquela floresta. Súbito um deles tropeçou numa coisa mole.

— Que será isto? exclama, surpreso.

Olha, examina: era uma ponta de nariz!

— Camarada, isto é positivamente um nariz humano. Vamos seguindo por ele afora que havemos de encontrar o dono.

Era mais fácil caminhar por cima do nariz do que pelo chão, de modo que os dois lhe pularam em cima e foram caminhando em procura do dono.

— Lá está o dono do nariz! exclamou o soldado que seguia na frente. Está deitado, o pobre!

Mais uns passos e o reconheceram.

— Que é isso, camarada? Que loucura essa de espichar o nariz pela mata a dentro?

O mísero contou tudo e deixou os companheiros perplexos. Que fazer? Caminhar carregando um nariz daqueles era impossível. Tentaram acomodá-lo sobre o lombo de um burro que viram pastando por ali. O burro não aguentou a carga. Tentaram enrolá-lo, como se enrola cipó. Doía muito.

Os dois soldados sentaram-se no chão junto ao infeliz camarada e coçaram a cabeça. Que fazer? Que fazer?

Nisto apareceu o anãozinho de vermelho.

— Que há? perguntou rindo-se.

— É este nosso companheiro que está virando só nariz. Pelo amor de Deus, veja se há um conserto para tamanho despropósito, porque nós positivamente não sabemos o que fazer.

— É simples, respondeu o anão. Tragam uma pêra daquela pereira e dêem-lhe a comer. Estas maçãs encompridam nariz e as peras encurtam.

Os soldados correram a colher peras e deram-nas ao companheiro. O mísero comeu-as quase sem mastigar e incontinenti o imenso nariz foi encolhendo até ficar do tamanho primitivo.

— Muito bem, disse o anão. Agora já sabem o que há a fazer. Levem um sortimento dessas maçãs ao reino da princesa gatuna e vinguem-se. E tratem de não ser bobos como da primeira vez.

Os soldados agradeceram ao bondoso anão e partiram, combinando o seguinte: o segundo soldado se disfarçaria em camponês e iria oferecer as maçãs à princesa ladra, tudo fazendo para que ela as comesse.

Ao chegar à corte todos se admiraram da beleza das frutas e quiseram adquiri-las.

— Não, disse o soldado. Maçãs como estas não são para qualquer. Só uma princesa poderá comê-las.

A princesa soube e mandou vir o camponês à sua presença.

— Que lindas! exclamou, já com água na boca. Quanto é?

— Para Vossa Alteza, nada. Permita-me que as dê de presente.

A princesa nem teve tempo de agradecer; ferrou os dentes numa, e comeu três num instantinho.

E foi aquele desastre. O seu lindo nariz começou a crescer, a crescer, a crescer tanto que logo não cabia no quarto e teve de enfiar-se pela janela. Continuou a crescer e alcançou o parque e foi indo por ele além até légua e meia dali.

O rei ficou horrorizado com a estranha doença da filha e fez uma proclamação ao seu povo, prometendo as maiores recompensas a quem descobrisse um remédio para o misterioso mal.

Mas ninguém se atreveu a apresentar-se. Para os médicos o remédio único seria cortar o nariz — mas se a princesa morresse? Nenhum teve ânimo de fazer a operação.

Nisto apresentou-se o segundo soldado, vestido de médico, e declarou possuir um tratamento infalível para nariz de légua e meia. Foi introduzido nos aposentos da princesa, onde, depois de fingir cuidadoso exame, receitou-lhe mais um pedaço de maçã, ficando de voltar o dia seguinte.

A princesa tomou o remédio e ficou muito desapontada porque o nariz deu de crescer ainda mais durante a noite.

No dia seguinte o falso médico examinou de novo a doente e deu-lhe um pedacinho de pêra — um pedacinho só, e retirou-se, ficando de voltar no dia seguinte. Dessa vez o remédio fez efeito e o nariz da princesa amanheceu alguns metros mais curto. Para judiar dela o falso médico deu-lhe em seguida mais um pedaço de maçã — e desse modo foi alternando maçã e pêra por mais duma semana. Por fim declarou ao rei:

— Há qualquer coisa furtada neste aposento, que destrói o efeito do meu remédio. Se os objetos furtados não forem restituídos aos donos, a filha de Vossa Majestade ficará toda a vida de nariz de légua e meia, sem cura possível.

A princesa protestou; disse que não, que era mentira, que não havia em seu quarto nada que não lhe pertencesse.

— Muito bem, exclamou o falso médico. Mas apesar do que diz Vossa Alteza, estou certo de que há aqui três coisas furtadas e enquanto não forem restituídas aos donos, o vosso augusto nariz irá crescendo sempre, até dar volta ao mundo.

O rei, apavorado, ordenou à filha que entregasse os furtos — e a princesa não teve outro remédio. A bolsa, a capa e a corneta mágicas foram entregues ao médico, para serem restituídas aos respectivos donos.

Então o falso médico deu à doente uma pêra inteirinha, que ela comeu com toda a gula — e no mesmo instante o nariz principiou a encolher até ficar do tamanho que era.

O soldado não esperou por mais. Lançou a capa ao ombro e murmurou:

— Para o castelo! e no mesmo instante viu-se no castelo ao lado dos dois companheiros.

Daí por diante viveram bastante felizes e só saíam de vez em quando, em passeios de carro por perto. Nunca mais se meteram a visitar os reinos vizinhos.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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