3/12/2025

Pele de Urso (Irmãos Grimm) por Monteiro Lobato



PELE DE URSO

Era uma vez um rapaz muito corajoso, de nome Al Miguel. Desde menino o seu maior desejo sempre fora ser soldado e ao chegar em idade própria alistou-se num batalhão. Logo depois veio uma guerra, na qual se comportou muito bem, combatendo sempre nas primeiras linhas. Quando a guerra acabou, Miguel viu-se dispensado e recebeu em paga dos seus serviços uma pequena soma de dinheiro.

De volta para a terra natal, Miguel já não encontrou os velhos pais, mortos durante a guerra; só viu na casa os dois únicos irmãos que tinha, aos quais pediu que o deixassem ficar por ali até que viesse nova guerra. Miguel só sabia guerrear.

— Impossível, meu caro! responderam eles. Vivemos com grande aperto e não podemos sustentar uma criatura que nada entende dos trabalhos do campo.

O pobre soldado ficou muito triste. Viu-se abandonado no mundo, sem profissão e possuidor apenas de uma espingarda. Como iria agora ganhar a vida?

Coçou a cabeça num grande desânimo e pôs-se a andar ao acaso. Logo adiante sentou-se debaixo duma árvore.

— Sou já muito velho para aprender um ofício, começou a refletir, e se me ponho a mendigar, todos dirão que é uma vergonha um homem forte como eu viver da caridade pública. Tenho de morrer de fome.

Nisto ouviu atrás de si um rumor. Voltou-se: era um homem com ares de fidalgo, de casaco verde e cascos em vez de pés.

— Conheço a sua situação, disse-lhe o homem e posso arrumar a sua vida; mas primeiro tenho de tirar a prova se é mesmo valente.

— Pois tire a prova, respondeu Miguel, que na verdade era muito valente. Já enfrentei a morte inúmeras vezes sem nunca tremer.

— Nesse caso, olhe lá! disse o homem apontando para o outro lado.

Miguel olhou e viu a poucos passos um enorme urso de boca aberta, pronto para arremessar-se.

— Olá! exclamou alegremente. Vou já fechar essa bocarra para sempre —e apontando a espingarda deu um tiro certeiro que fulminou o urso.

— Muito bem! aprovou o homem de casaco verde. Vejo que é de fato corajoso, mas essa prova não basta. Há ainda outra.

— Aceito quantas quiser, tornou o soldado, menos alguma em que tenha de vender minha alma ao diabo.

A segunda prova é esta: durante sete anos não tomará banho, não penteará o cabelo, não cortará as unhas, não fará a barba, e também não rezará nem se-quer um Padre-Nosso. Se morrer nesse intervalo a sua alma ficará me pertencendo; se não morrer, estará salvo para sempre. Durante os sete anos eu lhe fornecerei dinheiro aos montes. Aceita?

Miguel vacilou uns momentos; mas refletiu que, corajoso como era, havia de dar jeito de livrar-se dos perigos durante aquele prazo de sete anos e depois vi-veria rico e feliz E resolveu aceitar a proposta.

O fidalgo, então, "que era o próprio diabo em pessoa", despiu o casaco verde, que entregou ao soldado, dizendo:

— Este casaco não se estraga nunca e quem o veste encontrará os bolsos sempre cheios de moedas de ouro.

Em seguida tirou a pele do urso e disse:

— Leve também isto, que servirá de capote, cobertor e cama, pois durante os sete anos só poderá deitar-se no chão.

Disse e desapareceu.

Miguel foi logo examinar os bolsos do casaco verde e viu que realmente estavam cheios de moedas de ouro Sentiu grande contentamento e, jogando aos ombros a pele do urso, pôs-se de novo a caminho para correr mundo.

Nos primeiros tempos levou vida regalada, e como havia sido soldado, não se incomodava de dormir no chão. Passado um ano, porém, começou a transformar-se num verdadeiro bicho nojento. Os cabelos pareciam uma maçaroca de vassoura de cozinha e as unhas até o atrapalhavam, de tão longas. O rosto e o corpo tornaram-se de tal modo imundos que lembravam um monte de esterco. Arroz plantado nele devia dar muito bem. Miguel ficou um verdadeiro monstro. Mal aparecia, as mulheres e as crianças disparavam aos gritos de socorro. Ele, entretanto, dava muitas esmolas aos necessitados, em troca de, em suas orações, pedirem a Deus que o não deixasse morrer antes dos sete anos; também gastava bom dinheiro nas hospedarias, de modo que o povo acabou acostumando-se com a sua sujeira e feiúra.

No quarto ano daquela vida chegou certa vez a uma estalagem desconhecida. O dono assustou-se e passou mão dum porrete para impedi-lo de entrar. Miguel com toda a humildade pediu um lugarzinho na cocheira, mas nem nisso quis o homem consentir, alegando que iria espantar os cavalos. Por fim, ao ver que Miguel tinha dinheiro, deu-lhe licença de ficar mim lenheiro do quintal, mas com a condição de não mostrar-se a nenhum dos hóspedes.

O pobre Miguel já andava muito sentido da repulsa que inspirava a toda gente, e arrependido de ter aceitado a proposta do homem de casaco verde. Estava naquele dia a refletir nisso quando ouviu soluços no quarto próximo. O seu bom coração levou-o a ir ver o que era. Abriu a porta, espiou e deu com um velho que estorcia as mãos de desespero. Ao avistar aquele monstro, o velho quis fugir — mas Miguel lhe falou bondosa-mente, conseguindo sossegá-lo.

— E agora, meu velho, conte-me porque está assim desesperado.

O velho contou que tinha feito maus negócios e a sua casinha ia ser vendida em leilão para pagamento de dívidas. Em vista disso viera àquela cidade implorar o socorro dum parente rico; fora, porém, muito mal recebido, e agora estava sem dinheiro até para pagar a hospedagem. Momentos antes a dona da casa o viera ameaçar de prisão.

— Se eu fosse só no mundo, concluiu ele, não seria nada, mas tenho três filhas em casa. Que vai ser das coitadinhas, meu Deus!

Aquelas desgraças comoveram Miguel, que disse:

— Não se amofine, meu caro. Vou arrumar sua vida.

— No dia seguinte, cedo, foi ter com o estalajadeiro ao qual pagou a hospedagem do velho; depois deu a este uma bolsa de moedas de ouro com uma quantia muito maior que a necessária para a liquidação das suas dívidas.

O velho ficou assombrado a ponto de perder a fala. Por fim rompeu num acesso de choro — choro de alegria.

— Como poderei provar a minha gratidão ao meu generoso salvador? Escute. Minhas filhas são maravilhosamente belas. Quererá casar-se com alguma? A sua aparência, meu amigo, é desanimadora, mas quando as meninas souberem do bom coração que tem e do que fêz por mim, nenhuma se recusará a aceitá-lo como esposo.

Aquela proposta agradou a Miguel, que lá se foi com o velho para a terra onde ele morava. Quando chegaram e Miguel entrou na casinha, a filha mais velha quase morreu de susto. E como o pai lhe falasse em casamento, horrorizou-se, declarando que antes preferia morrer a casar-se com semelhante monstro. E sumiu-se da sala.

A filha do meio apareceu em seguida e mostrou-se mais animosa na presença de Miguel. Mas quando seu pai lhe propôs o casamento, riu-se com ironia.

— Que lindo noivo, meu pai! Nem figura humana tem. Prefiro casar-me com o macaco que anda a dançar pela cordinha aí nas ruas. Ao menos sabe fazer caretas engraçadas...

Finalmente chegou a vez da filha mais criança.

— Meu pai, disse ela, se o senhor fez tal promessa a esse homem e ele é realmente o nosso salvador, estou pronta para aceitá-lo como esposo. Vejo que é feio só por fora, pois possui um grande coração e isso é tudo.

Essas palavras encheram Miguel de alegria, sem que ninguém o percebesse. Estava tão recoberto de pêlos e sujeira que era impossível notar-se qualquer ex-pressão em seu rosto. Tomou ele um anel de ouro, que partiu em dois pedaços; num escreveu o seu próprio nome e o entregou à menina; noutro escreveu o nome de Marta, que era o dela, e guardou-o consigo.

— Conserve este pedaço de anel, menina, porque tenho de partir e correr mundo por mais três anos. Se um mês depois de passados três anos eu não reaparecer, a menina estará livre de qualquer compromisso. Será sinal de que morri. Mas durante esse tempo nunca deixe de pedir a Deus pela conservação da minha vida.

Disse adeus e partiu. A. noiva trajou-se logo de preto, declarando que só usaria essa cor até que Miguel voltasse. Coitadinha! As irmãs caçoavam dela todo o tempo. "Casar-se com um urso!" dizia uma. "Vai devorá-la já na primeira noite." E a outra dizia: "Cuidado! Nada de comer doces perto dele. Os ursos são doidinhos por doce, e o seu "marido" pode avançar." Ou então: "Os ursos dançam muito bem e é bom que a noiva aprenda desde já a bela dança do urso!"

Lá no fundo do seu quartinho a menina chorava em segredo, mas nunca respondia às caçoadas das irmãs. Em vez disso pedia fervorosamente a Deus pela vida do horrível noivo.

Miguel prosseguiu na sua vida errante; ia fazendo o bem por onde passava, desse modo aumentando o número dos que por ele pediam em suas orações. Isso fez que Deus o protegesse contra todos os perigos que o diabo não cessava de lhe ir armando pelo caminho. E, assim, correram os três últimos anos.

Na véspera de completar-se o prazo, Miguel dirigiu-se para aquela árvore onde sete anos antes se encontrara com o homem do casaco verde. Sentou-se embaixo e ficou atento. Súbito, uma rajada de vento sacudiu a floresta — e pela segunda vez o diabo apresentou-se diante de Miguel. Estava visivelmente de muito mau humor.

— Ande lá! gritou-lhe o diabo. Devolva-me o meu casaco verde, vamos!

— Mais devagar! respondeu Miguel. Antes disso tem de pôr-me como eu era.

Nada mais justo, e o diabo não teve dúvida em cortar-lhe o cabelo, a barba e as unhas, e limpar-lhe a cara e o corpo inteiro do cascão de sujeira velha. Quando o serviço terminou, Miguel apareceu ainda mais bonito do que antes. Parecia até um general.

Em seguida o diabo afastou-se noutra rajada de vento, aborrecidíssimo com o logro, e Miguel foi juntar as moedas de ouro que durante as suas viagens enterrara em diversos pontos. Formou um montão enorme, e com esse dinheiro adquiriu um formoso castelo rodeado de lindo parque. Depois vestiu-se de veludos e rendas, como um grande fidalgo, e numa carruagem das mais belas, puxada por quatro cavalos da mais fina raça, dirigiu-se à humilde casinha da sua noiva.

Bateu. Entrou e disse que parara ali apenas para beber um copo d’água. Ficaram todos admiradíssimos de ver tão opulento fidalgo e ofereceram-lhe o melhor quarto para descansar. O velho tratou logo de apresentar as meninas. Miguel mostrou-se admirado de tanta beleza e disse que se consideraria muito feliz se pudesse casar-se com uma delas.

Imediatamente as duas de mais idade correram para seus quartos a fim de vestirem os melhores vestidos e enfeitarem-se da melhor maneira. Só a mais nova, sempre entrajada de preto, não se mexeu do lugar, muito tristonha. O conde então (todos tomaram Miguel por um poderoso conde) pediu licença para beber à saúde dela e ao tocarem os copos deixou cair no de Marta o pedaço de anel que trazia o seu nome.

Marta bebeu e vendo qualquer coisa a brilhar no fundo do copo, mostrou-se admirada. Olhou bem: era o anel de noivado! Comovidíssima e com o coração aos pulos, tirou do seio a outra metade do anel, e juntou-as. Deu certo!

— Sossegue, Marta! disse então Miguel. Sou eu mesmo. Sou o seu noivo de três anos atrás. Graças ao bom Deus readquiri minha forma primitiva e aqui estou para dar cumprimento à minha palavra. Quero ser o esposo fiel daquela que se apiedou de mim num tempo em que todos me tinham asco.

Nesse momento entraram as irmãs mais velhas, enfeitadíssimas de quanta fita, renda e jóia havia. Vinham radiantes; mas ao darem com o "conde" festejando a caçula, perceberam tudo e caíram de costas desmaiadas. Tamanho foi o desespero de ambas, que nesse mesmo dia a mais velha se atirou a um poço e a outra tomou veneno.

À noite alguém bateu na vidraça. Miguel abriu. Era o diabo, sempre no mesmo disfarce do casaco verde.

— Atirei no que vi e matei o que não vi, disse ele piscando infernalmente um Olho. Não apanhei a sua alma, Senhor Miguel, mas em compensação fisguei as almas das duas meninas...


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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