PELE DE URSO

Era uma vez um rapaz muito
corajoso, de nome Al Miguel. Desde menino o seu maior desejo sempre fora ser
soldado e ao chegar em idade própria alistou-se num batalhão. Logo depois veio
uma guerra, na qual se comportou muito bem, combatendo sempre nas primeiras
linhas. Quando a guerra acabou, Miguel viu-se dispensado e recebeu em paga dos
seus serviços uma pequena soma de dinheiro.
De volta para a terra natal, Miguel
já não encontrou os velhos pais, mortos durante a guerra; só viu na casa os
dois únicos irmãos que tinha, aos quais pediu que o deixassem ficar por ali até
que viesse nova guerra. Miguel só sabia guerrear.
— Impossível, meu caro! responderam
eles. Vivemos com grande aperto e não podemos sustentar uma criatura que nada
entende dos trabalhos do campo.
O pobre soldado ficou muito triste.
Viu-se abandonado no mundo, sem profissão e possuidor apenas de uma espingarda.
Como iria agora ganhar a vida?
Coçou a cabeça num grande desânimo
e pôs-se a andar ao acaso. Logo adiante sentou-se debaixo duma árvore.
— Sou já muito velho para aprender
um ofício, começou a refletir, e se me ponho a mendigar, todos dirão que é uma
vergonha um homem forte como eu viver da caridade pública. Tenho de morrer de
fome.
Nisto ouviu atrás de si um rumor.
Voltou-se: era um homem com ares de fidalgo, de casaco verde e cascos em vez de
pés.
— Conheço a sua situação, disse-lhe
o homem e posso arrumar a sua vida; mas primeiro tenho de tirar a prova se é
mesmo valente.
— Pois tire a prova, respondeu
Miguel, que na verdade era muito valente. Já enfrentei a morte inúmeras vezes
sem nunca tremer.
— Nesse caso, olhe lá! disse o
homem apontando para o outro lado.
Miguel olhou e viu a poucos passos
um enorme urso de boca aberta, pronto para arremessar-se.
— Olá! exclamou alegremente. Vou já
fechar essa bocarra para sempre —e apontando a espingarda deu um tiro certeiro
que fulminou o urso.
— Muito bem! aprovou o homem de
casaco verde. Vejo que é de fato corajoso, mas essa prova não basta. Há ainda
outra.
— Aceito quantas quiser, tornou o
soldado, menos alguma em que tenha de vender minha alma ao diabo.
A segunda prova é esta: durante
sete anos não tomará banho, não penteará o cabelo, não cortará as unhas, não
fará a barba, e também não rezará nem se-quer um Padre-Nosso. Se morrer nesse
intervalo a sua alma ficará me pertencendo; se não morrer, estará salvo para
sempre. Durante os sete anos eu lhe fornecerei dinheiro aos montes. Aceita?
Miguel vacilou uns momentos; mas
refletiu que, corajoso como era, havia de dar jeito de livrar-se dos perigos
durante aquele prazo de sete anos e depois vi-veria rico e feliz E resolveu
aceitar a proposta.
O fidalgo, então, "que era o
próprio diabo em pessoa", despiu o casaco verde, que entregou ao soldado,
dizendo:
— Este casaco não se estraga nunca
e quem o veste encontrará os bolsos sempre cheios de moedas de ouro.
Em seguida tirou a pele do urso e
disse:
— Leve também isto, que servirá de
capote, cobertor e cama, pois durante os sete anos só poderá deitar-se no chão.
Disse e desapareceu.
Miguel foi logo examinar os bolsos
do casaco verde e viu que realmente estavam cheios de moedas de ouro Sentiu
grande contentamento e, jogando aos ombros a pele do urso, pôs-se de novo a
caminho para correr mundo.
Nos primeiros tempos levou vida
regalada, e como havia sido soldado, não se incomodava de dormir no chão.
Passado um ano, porém, começou a transformar-se num verdadeiro bicho nojento.
Os cabelos pareciam uma maçaroca de vassoura de cozinha e as unhas até o
atrapalhavam, de tão longas. O rosto e o corpo tornaram-se de tal modo imundos
que lembravam um monte de esterco. Arroz plantado nele devia dar muito bem.
Miguel ficou um verdadeiro monstro. Mal aparecia, as mulheres e as crianças
disparavam aos gritos de socorro. Ele, entretanto, dava muitas esmolas aos
necessitados, em troca de, em suas orações, pedirem a Deus que o não deixasse
morrer antes dos sete anos; também gastava bom dinheiro nas hospedarias, de
modo que o povo acabou acostumando-se com a sua sujeira e feiúra.
No quarto ano daquela vida chegou
certa vez a uma estalagem desconhecida. O dono assustou-se e passou mão dum
porrete para impedi-lo de entrar. Miguel com toda a humildade pediu um
lugarzinho na cocheira, mas nem nisso quis o homem consentir, alegando que iria
espantar os cavalos. Por fim, ao ver que Miguel tinha dinheiro, deu-lhe licença
de ficar mim lenheiro do quintal, mas com a condição de não mostrar-se a nenhum
dos hóspedes.
O pobre Miguel já andava muito
sentido da repulsa que inspirava a toda gente, e arrependido de ter aceitado a
proposta do homem de casaco verde. Estava naquele dia a refletir nisso quando
ouviu soluços no quarto próximo. O seu bom coração levou-o a ir ver o que era.
Abriu a porta, espiou e deu com um velho que estorcia as mãos de desespero. Ao
avistar aquele monstro, o velho quis fugir — mas Miguel lhe falou
bondosa-mente, conseguindo sossegá-lo.
— E agora, meu velho, conte-me
porque está assim desesperado.
O velho contou que tinha feito maus
negócios e a sua casinha ia ser vendida em leilão para pagamento de dívidas. Em
vista disso viera àquela cidade implorar o socorro dum parente rico; fora,
porém, muito mal recebido, e agora estava sem dinheiro até para pagar a
hospedagem. Momentos antes a dona da casa o viera ameaçar de prisão.
— Se eu fosse só no mundo, concluiu
ele, não seria nada, mas tenho três filhas em casa. Que vai ser das
coitadinhas, meu Deus!
Aquelas desgraças comoveram Miguel,
que disse:
— Não se amofine, meu caro. Vou
arrumar sua vida.
— No dia seguinte, cedo, foi ter
com o estalajadeiro ao qual pagou a hospedagem do velho; depois deu a este uma bolsa
de moedas de ouro com uma quantia muito maior que a necessária para a
liquidação das suas dívidas.
O velho ficou assombrado a ponto de
perder a fala. Por fim rompeu num acesso de choro — choro de alegria.
— Como poderei provar a minha
gratidão ao meu generoso salvador? Escute. Minhas filhas são maravilhosamente
belas. Quererá casar-se com alguma? A sua aparência, meu amigo, é desanimadora,
mas quando as meninas souberem do bom coração que tem e do que fêz por mim,
nenhuma se recusará a aceitá-lo como esposo.
Aquela proposta agradou a Miguel,
que lá se foi com o velho para a terra onde ele morava. Quando chegaram e
Miguel entrou na casinha, a filha mais velha quase morreu de susto. E como o
pai lhe falasse em casamento, horrorizou-se, declarando que antes preferia morrer
a casar-se com semelhante monstro. E sumiu-se da sala.
A filha do meio apareceu em seguida
e mostrou-se mais animosa na presença de Miguel. Mas quando seu pai lhe propôs
o casamento, riu-se com ironia.
— Que lindo noivo, meu pai! Nem
figura humana tem. Prefiro casar-me com o macaco que anda a dançar pela
cordinha aí nas ruas. Ao menos sabe fazer caretas engraçadas...
Finalmente chegou a vez da filha
mais criança.
— Meu pai, disse ela, se o senhor fez
tal promessa a esse homem e ele é realmente o nosso salvador, estou pronta para
aceitá-lo como esposo. Vejo que é feio só por fora, pois possui um grande
coração e isso é tudo.
Essas palavras encheram Miguel de
alegria, sem que ninguém o percebesse. Estava tão recoberto de pêlos e sujeira
que era impossível notar-se qualquer ex-pressão em seu rosto. Tomou ele um anel
de ouro, que partiu em dois pedaços; num escreveu o seu próprio nome e o
entregou à menina; noutro escreveu o nome de Marta, que era o dela, e guardou-o
consigo.
— Conserve este pedaço de anel,
menina, porque tenho de partir e correr mundo por mais três anos. Se um mês
depois de passados três anos eu não reaparecer, a menina estará livre de
qualquer compromisso. Será sinal de que morri. Mas durante esse tempo nunca
deixe de pedir a Deus pela conservação da minha vida.
Disse adeus e partiu. A. noiva
trajou-se logo de preto, declarando que só usaria essa cor até que Miguel
voltasse. Coitadinha! As irmãs caçoavam dela todo o tempo. "Casar-se com
um urso!" dizia uma. "Vai devorá-la já na primeira noite." E a
outra dizia: "Cuidado! Nada de comer doces perto dele. Os ursos são
doidinhos por doce, e o seu "marido" pode avançar." Ou então:
"Os ursos dançam muito bem e é bom que a noiva aprenda desde já a bela
dança do urso!"
Lá no fundo do seu quartinho a
menina chorava em segredo, mas nunca respondia às caçoadas das irmãs. Em vez
disso pedia fervorosamente a Deus pela vida do horrível noivo.
Miguel prosseguiu na sua vida
errante; ia fazendo o bem por onde passava, desse modo aumentando o número dos
que por ele pediam em suas orações. Isso fez que Deus o protegesse contra todos
os perigos que o diabo não cessava de lhe ir armando pelo caminho. E, assim,
correram os três últimos anos.
Na véspera de completar-se o prazo,
Miguel dirigiu-se para aquela árvore onde sete anos antes se encontrara com o
homem do casaco verde. Sentou-se embaixo e ficou atento. Súbito, uma rajada de
vento sacudiu a floresta — e pela segunda vez o diabo apresentou-se diante de
Miguel. Estava visivelmente de muito mau humor.
— Ande lá! gritou-lhe o diabo.
Devolva-me o meu casaco verde, vamos!
— Mais devagar! respondeu Miguel.
Antes disso tem de pôr-me como eu era.
Nada mais justo, e o diabo não teve
dúvida em cortar-lhe o cabelo, a barba e as unhas, e limpar-lhe a cara e o corpo
inteiro do cascão de sujeira velha. Quando o serviço terminou, Miguel apareceu
ainda mais bonito do que antes. Parecia até um general.
Em seguida o diabo afastou-se
noutra rajada de vento, aborrecidíssimo com o logro, e Miguel foi juntar as
moedas de ouro que durante as suas viagens enterrara em diversos pontos. Formou
um montão enorme, e com esse dinheiro adquiriu um formoso castelo rodeado de
lindo parque. Depois vestiu-se de veludos e rendas, como um grande fidalgo, e
numa carruagem das mais belas, puxada por quatro cavalos da mais fina raça,
dirigiu-se à humilde casinha da sua noiva.
Bateu. Entrou e disse que parara
ali apenas para beber um copo d’água. Ficaram todos admiradíssimos de ver tão
opulento fidalgo e ofereceram-lhe o melhor quarto para descansar. O velho
tratou logo de apresentar as meninas. Miguel mostrou-se admirado de tanta
beleza e disse que se consideraria muito feliz se pudesse casar-se com uma
delas.
Imediatamente as duas de mais idade
correram para seus quartos a fim de vestirem os melhores vestidos e
enfeitarem-se da melhor maneira. Só a mais nova, sempre entrajada de preto, não
se mexeu do lugar, muito tristonha. O conde então (todos tomaram Miguel por um
poderoso conde) pediu licença para beber à saúde dela e ao tocarem os copos
deixou cair no de Marta o pedaço de anel que trazia o seu nome.
Marta bebeu e vendo qualquer coisa
a brilhar no fundo do copo, mostrou-se admirada. Olhou bem: era o anel de
noivado! Comovidíssima e com o coração aos pulos, tirou do seio a outra metade
do anel, e juntou-as. Deu certo!
— Sossegue, Marta! disse então
Miguel. Sou eu mesmo. Sou o seu noivo de três anos atrás. Graças ao bom Deus
readquiri minha forma primitiva e aqui estou para dar cumprimento à minha
palavra. Quero ser o esposo fiel daquela que se apiedou de mim num tempo em que
todos me tinham asco.
Nesse momento entraram as irmãs
mais velhas, enfeitadíssimas de quanta fita, renda e jóia havia. Vinham
radiantes; mas ao darem com o "conde" festejando a caçula, perceberam
tudo e caíram de costas desmaiadas. Tamanho foi o desespero de ambas, que nesse
mesmo dia a mais velha se atirou a um poço e a outra tomou veneno.
À noite alguém bateu na vidraça.
Miguel abriu. Era o diabo, sempre no mesmo disfarce do casaco verde.
— Atirei no que vi e matei o que
não vi, disse ele piscando infernalmente um Olho. Não apanhei a sua alma,
Senhor Miguel, mas em compensação fisguei as almas das duas meninas...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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