3/09/2025

Os dois irmãozinhos (dos Irmãos Grimm), por Monteiro Lobato


OS DOIS IRMÃOZINHOS

Era uma vez um menino e uma menina que haviam perdido a mãe e moravam com a madrasta, muito má. Certa manhã o menino disse à irmãzinha:

— Depois que mamãe morreu nossa vida ficou uma tristeza sem fim. Por qualquer coisinha a madrasta nos bate todos os dias e se a gente chega perto dela só recebe pontapés. Comida é o que você sabe uns bicos de pão velho que nem rato pode roer. Até cachorro passa melhor do que nós — pelo menos ganha seus pedaços de carne, de vez em quando. Sabe que mais? Vou-me embora. Em qualquer parte estarei melhor do que aqui. Quer fugir comigo?

A menina quis, e os dois fugiram na manhã seguinte. De longe, quando perderam de vista a casa onde haviam nascido, abraçaram-se e choraram. Mas foram andando, andando, andando até que deram mima floresta, já quase ao cair da noite. Estavam cansadíssimos e tinindo de fome, e para dormir só viram um tico de árvore dentro do qual se arrumaram.

No dia seguinte pularam fora e o menino queixou-se de sede.

— Onde haverá água por aqui? murmurou.

— Estou ouvindo deste lado um barulhinho de ribeirão, disse a menina, e lá se foram os dois no rumo do barulhinho.

Mas a madrasta, que era bruxa, ao dar pela falta dos meninos, fez suas bruxarias e descobriu que estavam na floresta. De malvada, então, encantou todas as fontes e rios em redor deles para desse modo matá-los de sede. Assim foi que ao chegarem ao ribeirão os meninos ouviram a água murmurar: "Quem beber de mim será virado em tigre." A menina assustou-se e segurou o irmãozinho.

— Não beba dessa água, disse ela, porque você virará tigre e me comerá.

— Ai de mira! exclamou o menino. Estou a morrer de sede, mas não beberei dessa água. Vamos ver outra fonte.

Mais adiante encontraram outra fonte, cuja água dizia: "Quem beber de mim virará lobo."

— Não beba dessa água, irmãzinho, que você virará lobo e me comerá.

— Ai de mim! exclamou o menino morrendo de sede, mas não beberei aqui. Vamos ver outra. Mas dessa outra beberei, aconteça o que acontecer. Não suporto por mais tempo esta sede horrível.

Logo adiante encontraram outra fonte cuja água dizia: "Quem beber de mim virará cabrito."

— Não beba, irmãozinho! pediu a menina, porque você virará cabrito e fugirá de mim.

Mas foi inútil. O menino debruçou-se na fonte e bebeu até não poder mais. Imediatamente perdeu a forma humana e transformou-se num cabritinho.

A menina pôs-se a chorar e o cabritinho também.

— Console-se, minha irmã, disse este. Nunca abandonarei você e hei de prestar muitos serviços.

A menina amarrou-lhe ao pescoço, feito coleira, um colar de ouro que era a única lembrança da sua boa mãe; depois teceu com embiras uma corda, cuja ponta amarrou na coleira — e continuou a caminhar pela floresta puxando o cabritinho.

Não longe dali encontraram uma choupana abandonada, mas onde podiam viver.

— Oh, já temos casa! disse a menina, e entrou. Deu uma vista de olhos pelos cômodos e tratou de arrumar duas camas de musgos e folhas secas, uma para ela, outra para o cabritinho. Depois correu pelos arredores para colher frutas do mato e capim bem verde, e desse modo arranjou comida para si e para o irmãozinho encantado. Acostumaram-se a viver ali. Saíam sempre juntos em busca de frutas silvestres, e o cabritinho pulava na frente tosando quanta erva tenra encontrava. Chegaram até a sentirem-se felizes. E assim correram meses.

Certo dia um príncipe foi caçar naquela floresta, acompanhado de numerosa comitiva. O som das buzinas e o latido dos cachorros vieram logo sobressaltar os dois irmãozinhos.

— Minha irmã, disse o cabrito, estou querendo assistir a essa caçada. Deixe-me sair. Não tenha medo, que não deixarei que me apanhem.

A menina resistiu quanto pôde, mas era tal a insistência do cabritinho que afinal lhe abriu a porta e disse:

— Pois vá. Mas prometa voltar ao cair da noite, e quando voltar bata na porta e diga: — "Mana, sou eu!" Só assim abrirei.

O cabritinho saiu aos pinotes e breve chegou à zona da caçada, onde foi visto pelos caçadores. O príncipe deu ordem para que o apanhassem. Mas foi inútil; assim que um dos homens lhe ia pondo a mão, ele escapava num salto agilíssimo e fugia. Nem os cães puderam com o danadinho; corria tanto que logo distanciava os melhores corredores. Ao cair da noite voltou para casa e bateu, dizendo. — "Mana, sou eu!"

A menina, que passara o dia numa grande aflição, abriu a porta e cobriu-o de beijos.

No dia seguinte continuou a caçada e o cabritinho foi de novo para lá. Mostrou-se imprudentíssimo, a ponto de passar rente ao príncipe, o qual lhe percebeu no pescoço o colar de ouro. Isso só serviu para mais acirrar no príncipe o desejo de possuir o estranho animalzinho. Mas a sua ligeireza o livrava de todos os botes — embora não o livrasse de ser ferido numa das patas por uma ponta de flecha (nesse tempo os caçadores só caçavam com arco e flecha.) O atirador então o perseguiu de perto e chegou até à casinha, em cuja porta pôde vê-lo parar e gritar aflito: — "Mana, sou eu!"

Assombrado com aquele prodígio, o atirador correu a contar tudo ao príncipe. Enquanto isso a menina lavava-lhe a pata ferida e fazia uma atadura com uma tira de sua saia.

— Agora deite-se e descanse, disse ela ao terminar.

O cabritinho dormiu a noite inteira e no outro dia levantou-se completamente curado e querendo ir ver os caçadores novamente.

— Não, respondeu a menina. Você agora vai ficar aqui comigo. Ontem os caçadores feriram sua patinha e hoje poderão matá-lo.

— Se você me obriga a ficar aqui, tornou o cabritinho, será pior, porque morrerei mais depressa. Não posso ouvir latidos de cachorro e sons de buzina. Fico que nem louco.

E lá se foi pela terceira vez meter-se entre os caçadores. Quando o príncipe o viu, disse aos seus homens:

— Persigam-no sem cessar, mas não quero que o maltratem!

Assim fizeram os caçadores e, enquanto o perseguiam, o príncipe dirigiu-se para a casinha que o atirador havia descoberto na véspera. Chegando lá, murmurou as palavras ouvidas: "Mana, sou eu!" e a menina imediatamente veio abrir.

Mas ficou assombrada de ver diante de si um príncipe recoberto de sedas e ouros, que a olhava com olhos enternecidos. Realmente, o príncipe nunca vira em sua corte uma carinha mais gentil e mimosa.

— Encantadora criança, disse ele, quer vir morar comigo em meu palácio?

— Não posso, respondeu a menina. Não posso deixar esta casa antes do meu cabritinho voltar. Jamais o abandonarei, ainda que em troca do mais belo trono do mundo.

Justamente nesse instante o cabritinho apareceu aos pinotes.

Ao vê-lo chegar-se, o príncipe disse:

— Não seja essa a dúvida. A menina poderá conservá-lo consigo toda a vida.

Então a menina aceitou o convite e partiu atrás do príncipe, conduzindo pela corda o cabritinho. Chegando ao palácio o príncipe entregou-a à sua mãe, dizendo que iria casar-se com ela.

 

Tempos depois realizou-se o casamento, com grande alegria do povo e da corte. Ao cabritinho foi dado um grande parque, onde podia cabriolar o dia inteiro e pastar as mais finas ervas.

A história desses acontecimentos chegou aos ouvidos da madrasta má, que até então estivera convencida de que os meninos haviam sido devorados pelos Mos na floresta. Furiosíssima, jurou destruir a felicidade da menina.

Quando a jovem rainha teve o primeiro filho, a diaba disfarçou-se em mendiga e foi rondar o palácio. Lá ficou até dar jeito de penetrar num jardim onde a rainha costumava passear sozinha. Ao vê-la chegar pediu-lhe uma esmola. A rainha abriu a bolsa — e nesse momento a bruxa deu-lhe com uma vara de condão, fazendo que a coitada se visse a cem léguas dali, metida num calabouço horrendo, cujos guardas eram dragões.

 Quando as aias vieram buscar a rainha e viram que tinha desaparecido, foi uma tristeza geral no palácio e em todo o reino. O príncipe mandou que mil homens a procurassem por toda parte. Tudo inútil. Ninguém descobria o paradeiro da rainha.

Mas a madrasta não possuía um poder completo, de modo que em certo dia, quando a prisioneira declarou que desejava ver o seu filhinho, foi obrigada a levá-la ao palácio pelos ares. A rainha aproximou-se do berço e beijou a linda criança; depois foi acariciar o cabritinho que dormia no mesmo quarto. Em seguida retirou-se e lá se foi pelos ares, carregada pelos diabos que andavam a serviço da bruxa. A ama da criança assistira a tudo, mas ficou como petrificada e sem ânimo de contar nada a ninguém de medo que a metessem num hospício.

Na noite seguinte a rainha apareceu de novo e depois de beijar a criança e o cabritinho, exclamou, no momento de partir:

— Que vai ser do meu filho e do meu cabritinho? Só poderei voltar aqui mais uma vez depois, nunca mais...

A ama, então, encheu-se de coragem e narrou tudo ao rei, o qual a princípio julgou que a mulher houvesse enlouquecido. Mas apesar disso resolveu passar a noite em guarda no quarto próximo, para verificar com seus próprios olhos se havia verdade naquilo ou não. E viu tudo. Viu a rainha chegar, beijar o filho, beijar depois o cabritinho e dizer muito triste:

 — Que vai ser do meu filho e do meu cabritinho? Desta vez vou-me embora para sempre...

Nesse momento o rei entrou no quarto e tomou-lhe as mãos, chamando-lhe pelo nome.

O encanto quebrou-se imediatamente e os diabos a serviço da bruxa correram para o inferno.

 A rainha, então, contou toda a sua história ao rei, que fez prender a bruxa e assá-la numa boa fogueira. No momento em que ela expirou, rompeu-se o encanta-mento que havia feito para o irmãozinho da antiga menina — e o cabritinho recuperou a forma humana.

Foi uma alegria imensa, e o rei decretou grandes festas para comemorar o feliz desenlace daquele drama.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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