Era uma vez um menino e uma menina
que haviam perdido a mãe e moravam com a madrasta, muito má. Certa manhã o
menino disse à irmãzinha:
— Depois que mamãe morreu nossa
vida ficou uma tristeza sem fim. Por qualquer coisinha a madrasta nos bate
todos os dias e se a gente chega perto dela só recebe pontapés. Comida é o que
você sabe uns bicos de pão velho que nem rato pode roer. Até cachorro passa
melhor do que nós — pelo menos ganha seus pedaços de carne, de vez em quando.
Sabe que mais? Vou-me embora. Em qualquer parte estarei melhor do que aqui.
Quer fugir comigo?
A menina quis, e os dois fugiram na
manhã seguinte. De longe, quando perderam de vista a casa onde haviam nascido,
abraçaram-se e choraram. Mas foram andando, andando, andando até que deram mima
floresta, já quase ao cair da noite. Estavam cansadíssimos e tinindo de fome, e
para dormir só viram um tico de árvore dentro do qual se arrumaram.
No dia seguinte pularam fora e o
menino queixou-se de sede.
— Onde haverá água por aqui?
murmurou.
— Estou ouvindo deste lado um
barulhinho de ribeirão, disse a menina, e lá se foram os dois no rumo do
barulhinho.
Mas a madrasta, que era bruxa, ao
dar pela falta dos meninos, fez suas bruxarias e descobriu que estavam na
floresta. De malvada, então, encantou todas as fontes e rios em redor deles
para desse modo matá-los de sede. Assim foi que ao chegarem ao ribeirão os
meninos ouviram a água murmurar: "Quem beber de mim será virado em
tigre." A menina assustou-se e segurou o irmãozinho.
— Não beba dessa água, disse ela,
porque você virará tigre e me comerá.
— Ai de mira! exclamou o menino.
Estou a morrer de sede, mas não beberei dessa água. Vamos ver outra fonte.
Mais adiante encontraram outra
fonte, cuja água dizia: "Quem beber de mim virará lobo."
— Não beba dessa água, irmãzinho,
que você virará lobo e me comerá.
— Ai de mim! exclamou o menino
morrendo de sede, mas não beberei aqui. Vamos ver outra. Mas dessa outra
beberei, aconteça o que acontecer. Não suporto por mais tempo esta sede
horrível.
Logo adiante encontraram outra
fonte cuja água dizia: "Quem beber de mim virará cabrito."
— Não beba, irmãozinho! pediu a
menina, porque você virará cabrito e fugirá de mim.
Mas foi inútil. O menino
debruçou-se na fonte e bebeu até não poder mais. Imediatamente perdeu a forma
humana e transformou-se num cabritinho.
A menina pôs-se a chorar e o
cabritinho também.
— Console-se, minha irmã, disse este.
Nunca abandonarei você e hei de prestar muitos serviços.
A menina amarrou-lhe ao pescoço,
feito coleira, um colar de ouro que era a única lembrança da sua boa mãe;
depois teceu com embiras uma corda, cuja ponta amarrou na coleira — e continuou
a caminhar pela floresta puxando o cabritinho.
Não longe dali encontraram uma
choupana abandonada, mas onde podiam viver.
— Oh, já temos casa! disse a
menina, e entrou. Deu uma vista de olhos pelos cômodos e tratou de arrumar duas
camas de musgos e folhas secas, uma para ela, outra para o cabritinho. Depois
correu pelos arredores para colher frutas do mato e capim bem verde, e desse
modo arranjou comida para si e para o irmãozinho encantado. Acostumaram-se a
viver ali. Saíam sempre juntos em busca de frutas silvestres, e o cabritinho
pulava na frente tosando quanta erva tenra encontrava. Chegaram até a
sentirem-se felizes. E assim correram meses.
Certo dia um príncipe foi caçar
naquela floresta, acompanhado de numerosa comitiva. O som das buzinas e o
latido dos cachorros vieram logo sobressaltar os dois irmãozinhos.
— Minha irmã, disse o cabrito,
estou querendo assistir a essa caçada. Deixe-me sair. Não tenha medo, que não
deixarei que me apanhem.
A menina resistiu quanto pôde, mas
era tal a insistência do cabritinho que afinal lhe abriu a porta e disse:
— Pois vá. Mas prometa voltar ao
cair da noite, e quando voltar bata na porta e diga: — "Mana, sou
eu!" Só assim abrirei.
O cabritinho saiu aos pinotes e
breve chegou à zona da caçada, onde foi visto pelos caçadores. O príncipe deu
ordem para que o apanhassem. Mas foi inútil; assim que um dos homens lhe ia
pondo a mão, ele escapava num salto agilíssimo e fugia. Nem os cães puderam com
o danadinho; corria tanto que logo distanciava os melhores corredores. Ao cair
da noite voltou para casa e bateu, dizendo. — "Mana, sou eu!"
A menina, que passara o dia numa
grande aflição, abriu a porta e cobriu-o de beijos.
No dia seguinte continuou a caçada
e o cabritinho foi de novo para lá. Mostrou-se imprudentíssimo, a ponto de
passar rente ao príncipe, o qual lhe percebeu no pescoço o colar de ouro. Isso
só serviu para mais acirrar no príncipe o desejo de possuir o estranho
animalzinho. Mas a sua ligeireza o livrava de todos os botes — embora não o
livrasse de ser ferido numa das patas por uma ponta de flecha (nesse tempo os
caçadores só caçavam com arco e flecha.) O atirador então o perseguiu de perto
e chegou até à casinha, em cuja porta pôde vê-lo parar e gritar aflito: —
"Mana, sou eu!"
Assombrado com aquele prodígio, o
atirador correu a contar tudo ao príncipe. Enquanto isso a menina lavava-lhe a
pata ferida e fazia uma atadura com uma tira de sua saia.
— Agora deite-se e descanse, disse
ela ao terminar.
O cabritinho dormiu a noite inteira
e no outro dia levantou-se completamente curado e querendo ir ver os caçadores
novamente.
— Não, respondeu a menina. Você
agora vai ficar aqui comigo. Ontem os caçadores feriram sua patinha e hoje
poderão matá-lo.
— Se você me obriga a ficar aqui,
tornou o cabritinho, será pior, porque morrerei mais depressa. Não posso ouvir
latidos de cachorro e sons de buzina. Fico que nem louco.
E lá se foi pela terceira vez
meter-se entre os caçadores. Quando o príncipe o viu, disse aos seus homens:
— Persigam-no sem cessar, mas não
quero que o maltratem!
Assim fizeram os caçadores e,
enquanto o perseguiam, o príncipe dirigiu-se para a casinha que o atirador
havia descoberto na véspera. Chegando lá, murmurou as palavras ouvidas:
"Mana, sou eu!" e a menina imediatamente veio abrir.
Mas ficou assombrada de ver diante
de si um príncipe recoberto de sedas e ouros, que a olhava com olhos
enternecidos. Realmente, o príncipe nunca vira em sua corte uma carinha mais
gentil e mimosa.
— Encantadora criança, disse ele,
quer vir morar comigo em meu palácio?
— Não posso, respondeu a menina.
Não posso deixar esta casa antes do meu cabritinho voltar. Jamais o
abandonarei, ainda que em troca do mais belo trono do mundo.
Justamente nesse instante o
cabritinho apareceu aos pinotes.
Ao vê-lo chegar-se, o príncipe
disse:
— Não seja essa a dúvida. A menina
poderá conservá-lo consigo toda a vida.
Então a menina aceitou o convite e
partiu atrás do príncipe, conduzindo pela corda o cabritinho. Chegando ao
palácio o príncipe entregou-a à sua mãe, dizendo que iria casar-se com ela.
Tempos depois realizou-se o
casamento, com grande alegria do povo e da corte. Ao cabritinho foi dado um
grande parque, onde podia cabriolar o dia inteiro e pastar as mais finas ervas.
A história desses acontecimentos
chegou aos ouvidos da madrasta má, que até então estivera convencida de que os
meninos haviam sido devorados pelos Mos na floresta. Furiosíssima, jurou
destruir a felicidade da menina.
Quando a jovem rainha teve o
primeiro filho, a diaba disfarçou-se em mendiga e foi rondar o palácio. Lá
ficou até dar jeito de penetrar num jardim onde a rainha costumava passear sozinha.
Ao vê-la chegar pediu-lhe uma esmola. A rainha abriu a bolsa — e nesse momento
a bruxa deu-lhe com uma vara de condão, fazendo que a coitada se visse a cem
léguas dali, metida num calabouço horrendo, cujos guardas eram dragões.
Quando as aias vieram buscar a rainha e viram
que tinha desaparecido, foi uma tristeza geral no palácio e em todo o reino. O
príncipe mandou que mil homens a procurassem por toda parte. Tudo inútil.
Ninguém descobria o paradeiro da rainha.
Mas a madrasta não possuía um poder
completo, de modo que em certo dia, quando a prisioneira declarou que desejava
ver o seu filhinho, foi obrigada a levá-la ao palácio pelos ares. A rainha
aproximou-se do berço e beijou a linda criança; depois foi acariciar o cabritinho
que dormia no mesmo quarto. Em seguida retirou-se e lá se foi pelos ares,
carregada pelos diabos que andavam a serviço da bruxa. A ama da criança assistira
a tudo, mas ficou como petrificada e sem ânimo de contar nada a ninguém de medo
que a metessem num hospício.
Na noite seguinte a rainha apareceu
de novo e depois de beijar a criança e o cabritinho, exclamou, no momento de
partir:
— Que vai ser do meu filho e do meu
cabritinho? Só poderei voltar aqui mais uma vez depois, nunca mais...
A ama, então, encheu-se de coragem
e narrou tudo ao rei, o qual a princípio julgou que a mulher houvesse
enlouquecido. Mas apesar disso resolveu passar a noite em guarda no quarto
próximo, para verificar com seus próprios olhos se havia verdade naquilo ou
não. E viu tudo. Viu a rainha chegar, beijar o filho, beijar depois o
cabritinho e dizer muito triste:
— Que vai ser do meu filho e do meu
cabritinho? Desta vez vou-me embora para sempre...
Nesse momento o rei entrou no
quarto e tomou-lhe as mãos, chamando-lhe pelo nome.
O encanto quebrou-se imediatamente
e os diabos a serviço da bruxa correram para o inferno.
A rainha, então, contou toda a sua história ao
rei, que fez prender a bruxa e assá-la numa boa fogueira. No momento em que ela
expirou, rompeu-se o encanta-mento que havia feito para o irmãozinho da antiga
menina — e o cabritinho recuperou a forma humana.
Foi uma alegria imensa, e o rei
decretou grandes festas para comemorar o feliz desenlace daquele drama.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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