A DISSOLUÇÃO DA CONSTITUINTE
Acabo de receber longa e
interessantíssima carta. O seu autor, pessoa forçosamente erudita em coisas e
particularidades de História Pátria, oculta-se sob o significativo pseudônimo
de Um Monarquista Verdadeiro.
Nessa carta, vastas laudas
datilografadas, o Monarquista Verdadeiro
esforça-se, com o seu melhor esforço, em demonstrar os heroísmos de D. Pedro I,
a sua forte atuação no Brasil, a sua moralidade e, sobretudo, a nenhuma influência que sobre ele exerceram
os validos e as mulheres. Sobre este ponto, a nenhuma interferência dos
validos e das mulheres, o distinto missivista faz a sua tecla preferida,
tangendo-a alto, documentando-a com fartura nas mais carrancudas citações. Entre
outras muitas coisas, diz-me o Monarquista
Verdadeiro:
"Grave injustiça V. S. commette nos seus escriptos, exhibindo a Marqueza de Santos com influencia sem diques no espirito de D. Pedro. Ha factos, então, que V. S. lança e que estão fora de qualquer verdade historica, como por exemplo: o facto de haver a Marqueza tramado a dissolução da Assembléa Constituinte"
"Onde V. S. viu isto? Como pode V. S. escrever uma coisa destas? Pobre Domitilla de Castro! Viveu sempre, como politica, em innegavel mediocridade, não interveiu nos incidentes da vida publica; e agora, passado quasi um seculo vem V. S. fazel-a responsável por innumeros favores e empregos, e, sobretudo, como cabeça da dissolução da Constituinte. Que pecado commetteu V. S. Ora, Alberto Rangel já desfez essa lenda; Alberto Rangel demonstrou... etc."
É verdade. Alberto Rangel, na parte de empregos e favores políticos, tentou eximir a Marquesa de Santos de qualquer interferência. Mas nessa parte, justamente, a Domitila de Castro é franca, é categoricamente indefensável. Vejamos.
* * *
Principiemos pela própria Marquesa. V. S., senhor Monarquista Verdadeiro, decerto sabe que a Domitila de Castro era trivial mulherinha de São Paulo, a quem o marido (o alferes Felício Mendonça) meteu duas facadas na coxa. Duas facadas, meu amigo! E isso ali na fonte de Santa Luzia, perto da rua Conde de Sarzedas, que V. S. conhece perfeitamente. Pois bem. Vem D. Pedro, enamora-se da moça, agarra-a, leva-a para o Rio, bota-a de cama e mesa. Mas não é só: eleva-a, dum dia para outro, à alta honraria de Primeira Dama da Imperatriz. Fica aí? Capaz! Não se contenta com a retumbante mercê: fê-la com escândalo de toda a gente Viscondessa de Santos! E é só? Não! Ainda há mais: concedeu-lhe, num dia memorável, concedeu-lhe a estrondosa graça de Marquesa de Santos! Isto, Sr. Monarquista, a Domitila.
E os parentes? Veja um pouco. Comecemos pelos mais próximos:
D. Pedro elevou a filha primogênita da Domitila — a Isabel Maria — a Duquesa. Ouviu bem? A Duquesa! Foi a menina a célebre Duquesa de Goiás. O título mais alto do Império.
Elevou também a segunda filha, que morreu na infância, às mesmas culminâncias. Foi a Duquesa do Ceará.
Mas as mercês não pararam na Domitila e nos filhos. Transbordaram. É só ver os fatos.
Os pais da Domitila, o velho João de Castro e D. Escolástica Bonifácia, foram agraciados com o título de viscondes. Foram os viscondes de Castro. A irmã e o cunhado — a Maria Benedita e o Delfim Pereira — arranjaram-se com a nobreza de barões. Foram os barões de Sorocaba. Ainda não é tudo. Os irmãos da Domitila, num só dia, receberam a graça de "moços fidalgos da casa Imperial"!
E que falar, Sr. Monarquista Verdadeiro, daquela fieira de Toledo Ribas que tiveram promoção e acesso em todos os seus empregos? E que falar do Magessi, que veio do Mato Grosso com a reputação em pandarecos e a Domitila, mesmo assim, conseguiu fazê-lo presidente da Província Cisplatina?
Seria longo enumerar aqui, um por um, os parentes e amigos da Marquesa que receberam o bafejo das suas mãos onipotentes. Esta pobre crônica não comporta a lista imensa. Seria enfadonho o rol. Basta o que ficou acima.
Vamos, contudo, ao fato que o missivista diz "NÃO SER VERDADE". É o fato de haver eu dito que a Domitila influenciou decisivamente na dissolução da Assembleia Constituinte. "Onde V. S. viu isto?", exclama. E eu passo a responder.
* * *
Vasconcelos Drummond deixou as suas "memórias". Não há, para estudo do Primeiro Império, documento tão curioso. Pessoa absolutamente proba, comparsa dos acontecimentos, amigo de D. Pedro, amigo dos Andradas, o conselheiro Drummond tem, nas suas memórias, autoridade incontrastável. Isso é ponto pacífico. Pois é lá, nessas memórias (Annaes da Bib. Nac. Vol. XIII) que se encontra isto:
— "Tudo estava preparado para a dissolução da Constituinte. A famosa Domitilla já estava na amplitude do seu poder, rodeada de vis e baixos cortezãos aduladores, imperando sobre o espirito mal avisado do Principe. A Domitilla não foi extranha ao projecto da dissolução: ao contrário, era a representante assalariada pelos chamados republicanos desta conjuração"...
Mais ainda: no dia da dissolução da assembleia transbordou-se a alegria da Domitila. Todo o mundo sabe que D. Pedro, e os que o circundavam, ornaram-se estrondosamente de ramos de café. Era a forma de exteriorizarem os seus júbilos. A Domitila, como eles, enfeitou-se com espavento. Estava radiosa com a dissolução. Eis o tópico, fls. 76:
"O Imperador ornou o seu chapéu de um frondoso ramo de folhas de café. O mesmo fizeram os officiaes e os generaes. Villela Barbosa, posto não fosse militar combatente, tambem ornou o seu chapéu de ramos de café. O mesmo fez Clemente Ferreira França. Até a Domitilla ornou-se com um ramo exhorbitante no peito"...
Ora, qual a razão desta alegria, Senhor Monarquista Verdadeiro? É fácil responder: é que a Marquesa fora parte magna no ato despótico. Trabalhara por ele. Contribuíra decisivamente, contribuíra com todos os seus feitiços, para que D. Pedro dissolvesse a assembleia. É o velho Drummond quem a acusa, com esta declaração categórica e de pasmar:
"Figurava á testa do partido republicano um moço sem talento, mas activo e rancoroso. Era filho da provincia da Bahia e nascido de paes humildes e pobres. Exercendo um cargo subalterno na magistratura de São Paulo, ahi se casou com uma viuva rica. A riqueza augmentou-lhe a actividade e não sei se a violencia do caracter tambem.
"Tal era o homem, que por parte dos republicanos, mais activamente trabalhou para dissolução da Assembléa Constituinte. A Domitilla foi quem mais lhe serviu nesta empreza. É para mim caso averiguado que esta mulher, que tantos males causou ao Brasil, delle recebera doze contos de réis em paga do seu trabalho. É para mim caso averiguado porque VI, LI COM ESTES OLHOS, UMA CARTA escripta por mão augusta em que isto assim se relatava. Era uma carta escripta pela excelsa e virtuosa Imperatriz D. Leopoldina a José Bonifácio em Novembro ou Dezembro de 1827".
Eis aí, Sr. Monarquista Verdadeiro, a fonte onde se abeberaram os meus escritos. Não inventei o ter a Domitila intervindo diretamente na dissolução. Ocultei apenas que ela tivesse ganho, para isso, a soma de doze contos. Fui benigno, isso sim. Mas não fui contra a verdade histórica. Concorda?
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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