Durante
apenas dois anos de reinado — 1829 a 1831 — que poderia ter feito D. Amélia na política do
Brasil? Quase nada. O poderio dela cifrou-se, nesse par de anos, em nortear
para um caminho mais moralizado o caráter boêmio do Imperador. D. Amélia venceu
integralmente o marido. A sua formosura, apregoada com tubas altas por todos os
contemporâneos, teve filtros venenosos, que amalucaram o coração enamorado do
moço vulcânico.
Daí,
desse predomínio, as suas vitórias. Vitórias frágeis, na aparência; mas, na
realidade, dificílimas de serem conquistadas.
Assim,
foi D. Amélia, de parceria com Barbacena, a única que teve o supremo arrojo de
tramar — de tramar e conseguir! — a expulsão do célebre Chalaça do Brasil.
Também
conseguiu ela (e isto foi outro serviço grande) arredar do marido, de João
Pinto da Rocha, aquele valido detestável, falcatrueiro cínico, que desmoralizava
o trono e o Imperador.
João
Pinto da Rocha partiu da corte para um emprego na Europa. Lá, após muitas
aventuras, meteu uma bala nos ouvidos.
Foi
também D. Amélia, com ríspida dignidade e compostura, quem conseguiu lançar
fora do Paço definitivamente tudo quanto lembrasse a Marquesa de Santos. Assim,
na manhã seguinte à chegada, a duquezinha de Goiás, a bastarda que D. Pedro
reconhecera, teve ordem de sair imediatamente de S. Cristóvão. Saiu a
meninazinha, a toque de caixa, com as suas açafatas D. Josefa e D. Bárbara,
primas da Marquesa de Santos. Instalaram-se todas em Niterói, na casa que foi
de D. João VI.
Dizem
uns — e Mello Moraes o afirma — que D. Amélia se bateu para que D. Pedro não
abdicasse o trono de Portugal na filha D. Maria da Glória. Isto porque sempre
afagara a ideia de que D. Pedro viesse a ser um dia Imperador do Brasil e Rei
de Portugal. Até onde vai a verdade dessa afirmativa?
Impossível
responder. Não há, em documento sério, a comprovação dessa atitude política de
D. Amélia. Pouco importa tal atitude. Mesmo que a Imperatriz tivesse se
esforçado por unir as duas coroas, o fato é que não o conseguiu. O sete de
abril derrubou-a do trono. Obrigou-a a partir, ao lado do marido, para aquela
imensa epopeia que D. Pedro, cavaleiro e herói, realizou em Portugal.
FORA DO BRASIL
D.
Amélia, enquanto o marido batalhava no Porto, viveu em Paris. Ficou lá,
vigilante, ao lado de D. Maria da Glória, a rainha de Portugal.
D.
Pedro, num sonho de visionário, arregimentou o seu exercitozinho para atacar o
mano Miguel. Correm por aí muitíssimo contadas as façanhas do bragança nessa
página formidável da sua vida.
D.
Pedro — sabe-o toda gente — teve o supremo gosto de triunfar. E, triunfante,
senhor de Lisboa, mandou buscar em Paris a filha Maria da Glória para lhe
entregar o trono que conquistara.
Veio
para Lisboa, com a rainhazinha, a senhora D. Amélia. Assistiu ela aí as
vitórias do marido. Acompanhou-o naqueles gozos embriagantes. Foi ao Porto.
Viu, dentro de coches agaloados, os delírios com que a heroica cidade recebera
o seu ídolo. Depois...
Depois
foram os fracassos. Foram os sucessos políticos. A impopularidade de D. Pedro.
A vaia. Os apupos. Os punhados de lama. Toda aquela escumalha de ingratidão
popular que fervilhou contra o homem que fora o deus da véspera.
Começa
então o martírio do Bragança. É a doença que vem, são as hemoptises, o
quebramento das forças, o leito.
D.
Amélia, em meio a tudo, doce e boa, a afagar o marido com mãos de veludo! D.
Amélia, em meio a tudo, acompanha-o transe a transe, inabalável, única na
constância e no carinho!
O PRÍNCIPE AUGUSTO
A
rainha D. Maria II, com os seus quinze anos, loiros e frescos, principiou a
governar os seus Estados.
Timbrou
a menina, desde logo, em tratar com altas deferências a madrasta e
ex-imperatriz.
D.
Amélia, porém, deixou a companhia da rainha e alojou-se nas Janelas Verdes. As
relações entre ambas iam num mar de rosas. Contribuiu para isso, não pouco, o
casamento de D. Maria II com o príncipe Augusto.
O
príncipe Augusto era irmão de D. Amélia. Acompanhara a irmã ao Brasil. Morou no
Rio muito tempo. Levou daí saudades e deixou aí amigos.
Trouxera
ele da sua pátria um homem culto, seu mestre e filósofo, que foi o conde de
Nejaud. Além deste, o Dr. Casanova, médico de nota.
Eram
estes três personagens — o príncipe, o conde,
o médico — os mais assíduos frequentadores da
casa de José Bonifácio. Com o patriarca, numa daquelas boas cavaqueiras que lá
havia, foi que o Dr. Casanova se abriu nesta audaciosa confissão, que as
crônicas registram.
— "Saiba, meu
amigo, que o Imperador do Brasil é um louco!"
O
velho Andrada achou aquilo muito forte. Pro curou atenuar. Fez ver ao Dr.
Casanova que muitos dos atos estroinas de D. Pedro eram o fruto de más companhias,
de maus conselhos, de visão errada...
— Pode ser, atalhou
o grave médico, "mas o estado actual do Imperador, afianço-o, resente-se
de alienação mental muito pronunciada".
Isso
são detalhes que interessarão decerto os psiquiatras que quiserem um dia
estudar a vida do Imperador.
Vamos
nós preocuparmo-nos com o príncipe Augusto. Viveu ele no Rio os dois anos que
aí vivera a Imperatriz.
D.
Pedro estimava-o muito.
Fê-lo
alta patente das forças brasileiras e nomeou-o duque: duque de Santa Cruz. O
príncipe Augusto foi o único duque do primeiro Reinado. Assim como Caxias foi o
único duque do Segundo. Quando os Imperadores partiram, o príncipe Augusto
também partiu. Seguiu por toda a parte a irmã. Afinal, em Lisboa, pela mão
hábil de D. Amélia, foi tramado o casamento do príncipe com dona Maria da
Glória, já rainha de Portugal. Casaram-se. Príncipe consorte, o irmão de D.
Amélia teve posição relevantíssima na Corte. Mas essa posição durou pouco:
Augusto de Leuchtemberg, algum tempo após, morria de febres bravas.
Tratou
a política, sem demora, de casar a soberana com novo príncipe de casa reinante.
A escolha foi rápida. Decidiram as cortes por Fernando de Saxe Coburgo Gotha.
Foi este o segundo marido de D. Maria II, a rainhazinha brasileira.
DONA AMÉLIA E DONA MARIA II
Depois
da morte do irmão, esfriaram as relações entre D. Amélia e D. Maria II. Por quê?
Rivalidades, ciumezinhos, intrigas, pequenos nadas de mulher a mulher.
Talvez,
no coração de D. Amélia, houvesse fundo espinho. É que, do casamento com D.
Pedro, nascera também uma menina. Chamava-se Amélia, tal como a mãe. A
ex-imperatriz, no entanto, via essa outra, e não a filha, sentada no trono e
refulgindo! Lá diz, com razão, Alberto Pimentel, na Corte de D. Pedro IV:
"Não
havia, nem era facil haver, uma intimidade sem nuvens entre a madrasta e a
enteada. D. Amelia fora, é certo, uma esposa dedicadissima. No Brasil,
mostrara-se carinhosa para com os filhos de D. Pedro; despedira-se delles com
sincera saudade. Mas, agora, no fundo do seu coração, sentiria a magua de
ver-se reduzida, pella morte do marido, a uma figura secundaria, de ver a sua
filha numa obscuridade rellativa, ao passo que D. Maria da Gloria, sua enteada,
era a rainha, cingia a coroa, cuja conquista ella propria, a Imperatriz, regára
com as suas lagrimas de esposa ausente e sobresaltada durante a campanha da
liberdade".
Dia
a dia, entre as duas mulheres, acentuavam-se diferenças, que mais as separavam.
Até no modo de vestir andavam ambas desencontradas. Basta ler o chistoso
cronista:
"Phrases
soltas revelavam quanto a rainha e a imperatriz divergiam na maneira de pensar.
Por D. Amelia gostava de usar vestidos pretos exemplo : com muytos e altos
bordados a ouro. Gostava de pôr brilhantes em profusão. D. Maria da Gloria,
não; e quando a via assim, costumava dizer:
— Ahi vem a mamã
succumbida de enfeites"!
Não
é preciso dizer mais. Isto mostra, à evidência, a rivalidade que se abriu, até
nas miudezas, entre a imperatriz e a rainha.
O MARQUÊS DE REZENDE
D.
Maria II, como se compreende, era o foco. Todo o mundo se voltava para as
necessidades. O Paço coalhava-se de áulicos. Os cortesãos, aqueles mesmos que
se rastejavam outrora aos pés de D. Amélia, puseram-se a desertar dia a dia dos
salões tristes das janelas verdes.
Com
a morte do príncipe Augusto, então, a debandada foi única. D. Amélia sentiu o
amargo travor da desvalia. Teve apenas a Imperatriz, na desdita, a alta fortuna
de encontrar um amigo. Um único, é verdade, mas, ao menos, teve um! E esse foi
o velho Marquês de Rezende. Companheiro devotadíssimo de D. Pedro, camarista e
confidente, o Marquês não se esqueceu jamais do antigo senhor. Também não
ocultou jamais a sua dedicação à causa constitucional. Apregoava-a sem rodeios.
Certa vez, em Viena, encontraram-se D. Miguel e o Marquês de Rezende. O velho
não se embaraçou. Disse rudemente ao inimigo do seu amo:
—Nada de cortesias, senhor! Nós não
temos, certamente, afeição um pelo outro...
Homem
franco assim, com um feitio áspero desses por certo não arrancaria ligeiramente
do seu coração as amizades fortes que se enraizassem nele, como se enraízam
gravatás em chão bravo.
AS LIMAS E O COCHE
D.
Maria II não morria de amores pelo Marquês de Rezende, o cortesão de D. Amélia.
Havia dito mesmo, num momento leviano, esta frase que foi ouvida:
— Quando meu pai
morrer, o Rezende não sentará mais na minha mesa.
O
Marquês soube. Foi ele, desde então, quem timbrou em não aceitar, nunca mais, o
menor favor da rainha. Alberto Pimentel nos conta dois episódios, ingênuos em
si, mas muito expressivos, do turronismo do velho.
Ouçamos
o historiador:
"D.
Amelia instou com Rezende para que elle ficasse a seu serviço. O Marquez ficou,
porque pertencia á Corte velha, e D.
Amelia representava o passado".
"Na
presença de dona Maria II, mostrava-se o Marquez respeitoso, mas retrahido.
Fazia questão de não acceitar nenhum favor do Paço das Necessidades, e,
sobretudo, em não se sentar a mesa da rainha. Altiva como seu pae, D. Maria incommodava-se
com aquella obstinação. Certa vez, terminado o jantar nas Necessidades, D.
Amelia chegou de visita, acompanhada pelo Marquez.
— É agora, disse a
rainha para alguem; o Rezende vae quebrar o seu protesto.
E
offereceu-lhe, gentilmente, umas das excellentes limas, que estavam na mesa:
— O Marquez é
guloso! Certamente, não recusará estas boas limas que lhe offereço...
— Devem ser excellentes, respondeu o
velho, examinando-as; e eu já não as como ha muito tempo. A ultima vez — ainda me recordo foi na minha Quinta das Lapas. Ha
quanto tempo! Mas, minha senhora, a idade vae se oppondo aos caprichos do
guloso. Hoje, todas as cautellas são poucas...
— Uma só, Marquez!
— Tenho pena, minha
senhora: devem ser deliciosas; a apparencia é optima. Realmente, não podem ter
melhor cara!
E
pousou as limas na bandeja".
.........................................................................................................
"Doutra
vez, estando juntas, D. Maria e D. Amelia, foi preciso mandar alguem a S. Vicente,
a toda pressa. Se o Marquez me fizesse esse favor... disse a rainha; eu mandava
pôr uma carruagem.
— Sim, minha senhora,
eu vou! Mas a pé. Faz-me muito bem o andar. Os medicos me recommendam isso — que ande muito. E eu vou, eu vou...
Foi
a pé, com sacrificio, para não se aproveitar da carruagem do Paço!"
Foi
neste homem, neste leal servidor de cabelos brancos, que se resumiu a corte de
D. Amélia. Foi o seu último cortesão. Mas foi um cortesão que valeu por todos
os outros.
O FIM
Viveu
D. Amélia placidamente o final de sua vida. Morava isolada. Fazia muitas
esmolas. Teve, anos passados, necessidade de ir a Alemanha levar a filha com o
fim de consultar médicos. Mandaram eles a pequerrucha para a Madeira, a ares.
Aí morreu a princesinha. Apagou-se o único traço de ligação que havia entre
Braganças e Beauharnais.
D.
Amélia viveu, daí em diante, um crepúsculo sereno. D. Pedro deixou-a rica.
Assim, amparada e tranquila, aquela boneca loura, que foi, por dois anos, a
Imperatriz do Brasil, viu chegar certo dia a velha feia, toda ossos, que fecha
as pálpebras da gente com mãos muito compridas e muito geladas.
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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