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4/20/2025

A maioridade (Conto histórico), de Paulo Setúbal


A MAIORIDADE

Período fundamente característico da nossa história, período proceloso, efervescente de bravias lutas parlamentares, foi o daqueles dias ásperos em que se discutiu e se decretou, como medida de salvação publica, a maioridade de D. Pedro II. É curioso e útil relembrá-lo.

A regência não conseguira sopitar de vez o desabalado espírito revolucionário que então sacudia o país. Havia, por toda a parte, forte anseio de fragmentação. O Brasil tentava, por mil formas, quebrar-se em pedaços autônomos, esboroar-se.

Feijó, apesar da sua voluntariedade rija, não arrancara da alma das massas aquele insidioso estopim de rebelião, que a toda hora se mostrava pronto para explodir. Prova-o, com eloquência, a subida do regente Araújo Lima. Mal assumira o poder, quando ainda os adversários do padre de ferro festejavam a reviravolta política, as províncias, sem razões sérias, já se punham a rebelar-se com armas na mão. Estouraram motins no Rio Grande. Nas Alagoas. Em Goiás. Na Paraíba.

Mais do que simples motins, revoluções de caráter temeroso, revoluções com chacina e fúria, explodem na Bahia e no Maranhão.

Que significava aquilo? Por que tão rubro descontentamento?

É que os regentes tinham um feitio acentuadamente partidário. Eram eles o fruto de correntes políticas triunfantes.

Os vencidos, os que iam para o ostracismo, esses não suportavam de cara alegre a vitória dos que subiam. Daí aquele ininterrupto arrebentar de revoltas. Viu--se claro, no meio da tormenta, que só havia um remédio de apaziguar a fervedura: era pôr nas mãos onipotentes de um só homem, e de homem que estivesse acima dos partidos, um poder centralizador absoluto.

Foi então que surgiu a ideia de se criar uma ditadura legal.


DITADURA LEGAL

Naqueles tempos, diante daquela rajada de fatos subversivos, já se pensou (o que hoje muita gente pensa e apregoa!) que a salvação do Brasil estava num ditador forte. Estava numa individualidade masculinizada, absorvente, que piloteasse o país, com mãos de ferro, à Mussolini. Nem se diga que isso ficou em meras palavras. Não! No parlamento, em mais de uma sessão, discutiu-se gravemente a possibilidade do ditador legal.

Martim Francisco, o velho e ardoroso Martim, que tornara a entrar na política, é quem combate com mais violência a ditadura:

"É uma idéa disparatada! Tanto mais disparatada quanto se sabe que são os amigos do throno os que a inculcam e defendem!"

Mas o deputado Barreto Pedroso discorda. Vem à tribuna. E defende, desassombrado, a necessidade de um ditador. Vale a pena, neste passo, ler os anais:

O Sr. Barreto Pedroso: "Para provar que existia o pensamento de se querer uma dictadura, foi trazido aqui um artigo, no qual se dizia que as circumstancias do paiz reclamavam medidas fortes, excepcionaes. O autor do artigo, diante disso, não tinha duvida em acceitar a dictadura legal". Que quer isso dizer? Que o autor do artigo reconhecia bem que os nossos males publicos não se podiam curar com as leis que temos, com essas nossas leis fracas e brandas. O epiteto legal unido á palavra dictadura, exclue tudo o que possa haver de odioso nessa materia. Ora, senhor presidente, eu confesso, sem medo, que é isso exactamente o que eu quero... (Grande sussurro na sala. Cruzam vozes). Direi aos senhores deputados: eu quero a dictadura legal! Quero a dictadura legal para evitar a dictadura despotica, a dictadura militar! (Continua o sussurro; muitos apartes. Varios deputados pedem a palavra...)"

Deduz-se claramente que a opinião, para chegar a esse extremo exagero de pedir um ditador, é porque não via na Regência, com o seu partidarismo e personalismo, o aparelhamento capaz de manietar as erupções que se desencadeavam sanhudas pelas Províncias. Urgia solucionar a situação. Pensou-se em dar à princesa Januária, que completara os dezoito anos, as atribuições de dirigir o Império até que o príncipe herdeiro alcançasse a idade legal. Mas era uma solução fragílima. Não agradara a ninguém. Como poderia uma menina, sem o menor trato dos negócios públicos, deslindar uma situação que reclamava pulsos de gigante?

"Nesse caso, exclamavam, em logar da princeza, façamos logo o principe sentar-se no throno! É rapaz ainda, não ha duvida. Tem quasi quinze annos: mas quinze annos solidos e desempenados! É um rapaz varonil! Decretemos, portanto, a maioridade delle; façamol-o imperador desde já!"


O CLUBE DA MAIORIDADE

A ideia alastrou-se. Toda a gente acreditou que, com a maioridade de D. Pedro, o país entraria num período menos arrepiado, sem aquele crivo de motins e rebeliões.

Sem mais delongas, segundo nos conta a interessantíssima memória de Araripe Júnior, "Noticia sobre a maioridade", fundou-se no Rio um clube secreto para impulsionar e realizar o plano. Pertenceram a esse clube os nomes mais fulgurantes do parlamento de então. Basta citar os de Antônio Carlos, Martim Francisco, Montezuma, Clemente Pereira, Hollanda Cavalcanti, José Mariano, Alencar, Limpo de Abreu. Esses homens foram os que, na sombra, tramaram a grande medida política. Era um caso melindroso e dos mais perigosos: ia a maioridade deitar por terra o Regente, isto é, o homem culminante, o todo-poderoso da hora.

Mas os conjurados não se atemorizavam. Aliciaram quase todos os seus colegas de representação. Trabalharam à socapa, com ardor.


Um dia, enfim, numa sessão memorável da Câmara, o deputado Montezuma lançou e defendeu o ruidoso, o célebre projeto:

"O Congresso Nacional decreta:

Art. unico: S. M. o Imperador D. Pedro II é reconhecido maior, desde já".

Aquilo foi como fogo em palha. O decreto atiçou labaredas. As sessões tornaram-se agitadíssimas.

Rolou, durante dias, aos escachoos, toda aquela oratória flamante dos parlamentares do tempo. Houve um deputado que fez loucuras a favor da maioridade. Foi o deputado Navarro. Discutiu. Gritou. Disse desaforos. Tornou-se durante um minuto, o nome apoteosado da arraia-miúda carioca.


O DEPUTADO NAVARRO

Navarro era uma rajada. A violência destemerosa, e pouco urbana, dos seus discursos, arrancava aplausos delirantes às galerias.

A paixão que ele pôs em defender a maioridade foi realmente sem peias. É profundamente pitoresca a página dos seus rebuliços. Eis os anais:

"Sr. Navarro: Commissão? Qual commissão, senhor presidente! Vamos proclamar a maioridade já! Acabemos com isso... (pedem vozes que o presidente o chame á ordem; o snr. Navarro com desplante). Não ha força para isso! Continuo... Todos estamos dominados pelo enthusiasmo que se tem apoderado de nós na questão da maioridade do Snr. D. Pedro II. E isso porque, como todos sabem, é com manobras e artificios que uma camarilha perfida quer subjugar-nos. Quem não vê que este resto corrompido e infame de ministerio... (grandes protestos, vozes, o presidente declara que o orador está fora da ordem). Estou na ordem; estou falando sobre a urgencia, mas ás vezes escapam expressões fortes. Continuo...

Porventura, senhores, ainda temos governo? Não temos governo. Nem é mais possivel um arranjo ministerial com o actual regente. Os amigos o atrahiçoam. (E virando-se para Carneiro Leão). Ouvistes? Vós o atrahiçoaes! Vós já o atrahiçoastes para cumulo da vossa infamia! (Vozes, protestos, o presidente soa o timpano). Sim, (continua Navarro, aos berros) agora? o que nos resta, senhores? Uma coisa só: a maioridade. Sim, a maioridade do Snr. D. Pedro II (barulho e vivas na galeria, o presidente pede ordem), o Sr. Navarro:

Fora a camarilha! Viva a maioridade de D. Pedro II! (Os espectadores dão vivas, agitam lenços. Navarro avança para Carneiro Leão, os deputados agarram-n'o. Continuam vivas. No meio do tumulto ecoa, muytas vezes, a voz do presidente ordem! Silencio!").

Essa página, como se vê, pinta a tempestade que a maioridade desencadeou no Congresso. Durante dois dias a discussão estrondejou, fragorosa. O regente Araújo Lima viu que a ondada era grossa demais. Teve apenas uma saída: lavrou um decreto mandando adiar as sessões do Congresso para daí a seis meses.


O DECRETO

Estavam os congressistas na Câmara quando entrou o oficial do paço com o decreto do adiamento. O secretário leu-o. Os deputados viram bem que aquilo era um golpe de força. Araújo Lima não tinha maioria para evitar a sua queda. Usara então, no caso, de uma violência rasteira. Mas os deputados não se conformaram com ela. E rompem gritos de todas as bocas:

Governo conspirador! Regência inepta! Traição! Violência!

Álvares Machado, representante paulista, brada da tribuna:

Protesto contra esse ato praticado por um governo ilegal, intruso, usurpador, ao qual é lícito a todo o brasileiro resistir: vamos para o campo!

As galerias fremem. A indignação sacoleja a todos. Antônio Carlos declara:

Não reconheço, como legal, este ato do governo. O regente é um usurpador desde o dia 11 de março. É um traidor! É um infame o atual ministério! Quero que estas palavras fiquem gravadas como protesto.

O delírio chega ao auge com as palavras candentes do Andrada. O tumulto engrossa. Nisto, em meio ao alarido, toma-se a deliberação de ir ao senado. Lá, junto com os senadores, os deputados deliberariam.

Antônio Carlos ergue-se. E com tonitruância:

Quem for patriota e brasileiro, siga comigo para o Senado! Abandonemos esta câmara prostituída!

O povo inteiro, incendiado pela patriotada, tocou a caminho do Senado.


D. PEDRO II

O Senado também se revoltou com o decreto da regência. Novos tumultos e alaridos. Para solucionar a questão, alvitrou-se, enfim, que se mandasse a D. Pedro uma deputação de cinco senadores e três deputados. Antônio Carlos redigiu uma mensagem ao futuro soberano.

A comissão partiu rumo de S. Cristóvão. O herdeiro do trono atendeu-a prontamente. Ouviu a deputação com forte interesse.

Nisto, enquanto os emissários falam, o mordomo-mor, interrompendo-os, vem avisar a D. Pedro que Araújo Lima está no salão contíguo. O regente quer dizer com urgência uma palavra a S. Alteza.

D. Pedro pede licença. Vai ter com o regente. É que Araújo Lima, ao saber da deputação, precipitara-se também à cata do Imperador. E ali, com muita política e jeito:

 Alteza! Mandei adiar as sessões do Congresso, é verdade. Mas não para impedir a maioridade de V. Alteza; nunca! Mandei adiar as sessões somente com este fim: o de preparar, com solenidade, as festas para reconhecimento da maioridade de V. Majestade, a 2 de dezembro. Quer V. Majestade, por acaso, entrar no exercício das suas funções antes disso?

Dizia a tradição da época que o Príncipe respondera ao regente, com firmeza:

Quero já!

Negou D. Pedro, mais tarde, que houvesse retorquido a Araújo Lima com essa cortante rudeza. Mas isso importa pouco. O fato é que D. Pedro e o regente concordaram ali, sem mais protelação, na medida proposta pelo congresso: a maioridade imediata!

O Príncipe voltou para o salão. Declarou, aos deputados e senadores, a deliberação que havia já tomado com o regente. Foi um júbilo só: o congresso vencera a cartada!


23 DE JULHO DE 1840

A sessão do parlamento foi brilhantíssima. Todos os senadores presentes. Todos os deputados. As galerias atulhadas de povo. E o presidente, de pé, diante da assembleia também de pé:

Eu, como órgão da representação nacional, em assembleia geral, declaro desde já maior a S. M. I. o Sr. D. Pedro II, e no pleno exercício dos seus direitos constitucionais.

E ao mesmo tempo, com ênfase:

Viva o Sr. D. Pedro II!

Foi, pela assembleia um viva fragoroso.


IMPERADOR!

Nesse mesmo dia, às três horas da tarde, estrondam à porta do Senado clarins e rufos. Ouve-se o estacar seco de um coche. João Taylor agarra a portinhola. Abre-a. Salta de dentro um moço claro, muito galhardo.

O povo uiva. Há vivas atordoantes. Clarins e tambores não cessam. Um popular, destacando-se, faz, no meio do rebuliço, uma saudação fogosa. O moço entra. Palmas. Músicas. Flores tombando em chuva das galerias.

A comissão condu-lo à mesa da presidência.. Aí, com a mão sobre os evangelhos, D. Pedro, a voz límpida e fresca, presta, diante da assembleia, o juramento protocolar:

Eu, Pedro II, imperador constitucional do Brasil...

Assim, na sessão memorável, subia ao trono brasileiro aquele adolescente de menos de quinze anos. Era ele, o rapaz desempenado, quem iria, com fulgores únicos, nortear o país por cinquenta anos a fio.

 
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Mulheres na vida do patriarca (Conto histórico), de Paulo Setúbal

MULHERES NA VIDA DO PATRIARCA

Mulheres na vida do Patriarca? Sim, senhor! Inútil arregalar assim os olhos. É isso mesmo: mulheres na vida de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. Eu sei que a coisa é de melindre. Muita gente não há de querer acreditar-me E com razão!

José Bonifácio, naqueles soltos desbragamentos do primeiro império, destaca-se nítido pela rija austeridade de costumes. Não houve tempo de moralidades mais fáceis do que os pitorescos nove anos de Pedro I. A corte dava um exemplo alto. D. Pedro, enrolado no seu manto de tucano, enchia o Império com o fragor das suas aventuras picarescas.

No meio daquela estúrdia, nota chocante, surge a personalidade carrancuda do Patriarca. José Bonifácio é a Severidade. É a Intransigência. É a Moralidade. É, numa palavra, a Virtude.

O Imperador e o Patriarca, por isso mesmo, avultam num contraste rudíssimo. A gente sente em D. Pedro o filho de D. Carlota Joaquina, a erótica, a rainha desbragada. A gente sente em José Bonifácio o velho sangue honestíssimo do paulista, o homem pacato, em cuja vida nunca floriu uma pecadora novela de coração.

Mas o velho Andrada, como todos os homens , não teria também a sua hora sentimental? Não teria também o seu caso de amor? Talvez... Talvez tivesse tido, não o seu caso de amor, mas os seus casos de amor. Pois são dois os nomes de mulheres que perpassam, levemente, na vida seca daquele grave homem d'Estado.

* * *

Desterrado do Brasil, José Bonifácio foi viver em França. Asilou-se, pobre e em plena desgraça, numa casota de campo ao pé de Talance. Aí compunha os seus versos. Aí refundia os seus trabalhos notabilíssimos sobre mineralogia. Aí escrevia, quase diariamente, cartas ao seu melhor, ao seu mais certo amigo. Era ele, como toda a gente sabe, o conselheiro Vasconcelos Drummond.

Fora Drummond o diretor do "Tamoio" o famoso, o violentíssimo defensor da Constituinte. Por esse motivo, nem houve nunca outro, D. Pedro também o desterrara.

Drummond instalou-se em Paris. E é em Paris que recebia aquelas preciosas cartas de Talance. Nelas, nesses documentos vivos de intimidade, o Patriarca despia a alma, punha-a nua em frente ao amigo. Que cartas! Fagulham nessas letras as iras do homem público. Fervem aí ironias farpadíssimas. Borbulham os mais causticantes comentários. E acima de tudo, mais do que tudo, andam por elas saudades desesperadoras do Brasil. O assunto predileto é política. Assim: "Hoje revesti-me de resolução estoica e ahi vão estas desconcertadas regras. Principiemos por politica, já que ella nos deve interessar muito, visto o nosso estado..

Não há fato público do Brasil que não receba uma flechada de Talance. Não escapa coisa alguma. Lá vem sempre o veneno:

"Porque sabiria do ministerio o bambo mulato, pesadão e basbaque? Quem ficará afinal com a pasta?"

Ou, então:

"Que novidades ha no Brasil? Como vão e que fazem as Camaras? Que é feito da nomeação dos novos'diplomatas? Só se resolveu confiar o Pedra-Parda em encarregado de negocios e Antonio Telles em levar a Gran-Cruz para o Francisco burro?"

E mais além:

"Ainda não sei da lista dos novos deputados da Provincia. Mas se foram tão bem escolhidos como os do Rio, adeus Imperio! O que valerá é que são poltrões e bestas...”

Quando, a 12 de outubro de 1826, apareceram os célebres decretos de D. Pedro, elevando a altas nobrezas uma chusma de servidores vulgares, veio, entre as mercês, o título de Viscondessa de Santos à senhora D. Domitila de Castro.

José Bonifácio não se conteve. Pulou! Aquilo foi um ferrão de vespa na sua vaidade. E lá desabafou ao amigo:

"Quem julgaria possível que, nas actuaes circumstancias, havería a Gran-Pata por tantos ovos duma vez, como 19 viscontes e 22 barões? Nunca o João pariu tanto na plenitude do poder autocratico! E quem sonharia, então, que a mixella Domitila seria Viscondessa de Santos? Viscondessa da patria dos Andradas! Que insulto mais desmiolado!"

O nome de Domitila vem sempre à tona. Esvoaça impertinente pelas cartas do velho Andrada. O político não perde vasa.

"Bem feito que o Carneiro fallisse em dois milhões e o orangotango Simplicio extorquisse trinta contos... Que faz D. Pedro em tudo isto? Creio que está enfeitiçado pela mãe da Domitila que em S. Paulo sempre passou por bruxa".

Ou então:

"A morte da Imperatriz penalizou-o assaz. Pobre criatura! Mas estes successos devem trazer consequencias ponderosas á Domitila...”

Foi nessas cartas, tão íntimas, onde o velho Andrada se transbordava com encantadora simplicidade, onde vinham à luz as suas zangas de homem d'Estado, onde fervilhavam os seus velhos ódios, que perpassaram, num lampejo fugaz, secreto desafogo de alma, os dois nomes de mulher que talvez enfeitassem por um momento aquela existência de homem virtuoso.

Quem são elas? Uma francesa e uma brasileira. Bonitas? Não sei. Feias? Não sei. Sei apenas que uma foi Mademoiselle Fanchette; a outra Elisa, tutelada de Madame Delaunay.

Mademoiselle Fanchette...  É o primeiro nome que extravasa naquelas intimidades. Parece ter sido amizade velha, coisa de mocidade. Vasconcelos Drummond topou a criatura em Paris. Estava infelicíssima. Quase na miséria. E ela, ao que se deduz, falou ainda com quentura do Andrada. Daí o enternecimento do velho, o desejo violento de querer amparar-lhe a desdita. Lá está o tópico:

"Passemos agora a coisas menos eventuaes e enigmaticas. Agradeço-lhe immenso o ter se avistado com a "minha antiga Fanchette". Está muito velha? Não o mostra a imaginação acalorada. Pobrezinha! Eu sou ainda muito sensivel ao amor que me conserva...”

E logo, em outro trecho, muito penalizado:

"Si Fanchette está na miseria, realmente, queira, meu amigo, dar-lhe cem francos e desculpar-me com as minhas acanhadas circumstancias. Verei com o tempo si poderei fazer mais. Dê-lhe mil saudades e deite agua fria na fervura, para que não faça alguma doidice que me inquiete. Seu, muito amigo, Andrada".

Bem se vê, por esses transbordamentos, a afeição que ligava o ermitão de Talance à sua Fanchette.

Há nele sincero desespero em não poder ajudá-la na desdita. Este desespero punge-o. E o Andrada exclama na carta seguinte:

"Passemos á tua carta de 18. A sorte da boa Fanchette que tanto interessou á sua sensibilidade tambem me tem melancolizado muytissimo. Pobre mulher! Porque o meu destino cruel não me ha de permitir mostrar-lhe toda a minha amizade? Socegue, meu amigo, a sua imaginação exaltada e diga-lhe que não creia vir a correspondencia della alterar a bôa harmonia domestica. Não sei qual será o meu futuro! Si poderei voltar ao Brasil ou ir para a outra parte da America; em todo caso, farei todos os esforços para a apertar ainda uma vez nos meus braços..."

Quem era essa Fanchette?

Que há de amoroso neste caso? A correspondência não o diz. Nem mesmo elucidam se José Bonifácio foi a Paris "apertá-la ainda uma vez nos seus braços". Apenas, na carta de 27 de agosto, põe ele a Vasconcelos Drummond uma pergunta ansiada:

"E Fanchette? Recebeu os cem francos?"

A história para aí. O nome da francesinha, naquelas páginas políticas, zune como uma abelha doirada. Zune e passa. E a gente fica imaginando apenas, com surpresa, que houve, na existência do homem carrancudo, uma afeição romanesca. Afeição tão doce, tão macia, que teve o milagroso condão de fazer vibrar, com os seus cabelos brancos, aquele coração de ministro duríssimo.

* * *

Elisa... Quem é? Uma pessoa vaga. Pessoa, no entanto, metida seriamente na vida íntima do Patriarca. Parece, contudo, que há nesta história coisas melindrosas. Uma aventura mais grave, de consequências mais comprometedoras. As referências ao caso são poucas.

Mas vêm com tanto mistério, são tão sibilinas, que embasbacam a gente. Assim, numa carta de 1837, lança José Bonifácio um "post-scriptum". Aí, dentro dum largo parêntesis, em letras grande, isto: "Reservado". Que será? Logo, com a imaginação esporeada, a gente corre a ver que diabo será esse "reservado". E dá com isto:

"Queira mandar esta a Madame Delaunay e procure ver com attenção a uma senhora que foi com ella visital-o cuja idade é de trinta e quatro annos e se chama Elisa. Veja se tem as feições que se pareçam com as minhas, ou com as de minha familia. Mas tudo isto deve ser feito com dissimulação e melindre". Offereça de minha parte a Madame Delaunay cem francos, que tudo será embolsado quando cá chegar".

Eis um reservado beliscante. José Bonifácio manda dar dinheiro a uma senhora e ao mesmo tempo manda analisar, com disfarce e melindre, as feições de uma tal Elisa moça que vive com essa senhora a fim de verificar se esta moça tem "as feições dele, José Bonifácio, ou as de sua família"... Que mistério é esse? Que significa isto? Será que o Patriarca tinha uma filha bastarda? Impossível dizer.

O próprio Vasconcelos Drummond não conseguiu, por carta, uma elucidação do mistério. O Patriarca só pôde responder-lhe:

"O negocio, meu amigo, é delicado; e o romance muitissimo complicado".

No entanto, a fim de bem estudar as feições de Elisa, insistia com o amigo:

"Traga-me o retrato de Elisa. Quero vel-o! £ um retrato que madame Delaunay prometteu enviar-me".

Eis que, nesse ínterim, chegam a Talance certas cartas, de que o Patriarca logo manda notícia a Vasconcelos Drummond:

"Recebi uma carta da Delaunay. Recebi, tambem, outra de Elisa. A de Elisa é muito bem escripta e com muita ternura e sizo. Diga-lhes que espero, apenas, pela chegada de V.  Mercê para responder-lhes melhor".

As mulheres, porém, não esperaram a resposta. Meteram-se no comboio e tocaram para Talance. Aboletaram-se nos arredores da terreola. Deixaram-se ficar longo tempo ao lado do Patriarca. E ele escrevia a Drummond:

"Diga-me aqui: como vae de amores? E a proposito: cá veio ter madame Delaunay e aqui está ha perto de um mez. Porém eu tenho guardado silencio absoluto sobre o romance de Elisa"...

 

Eis tudo. Ninguém mais penetrou nas intimidades dessa aventura.

Vasconcelos Drummond não recebeu, por escrito, uma única linha esclarecedora. Talvez o amigo só viesse a saber dos detalhes dessa novela em Talance. E isto naquele dia em que o velho Andrada, muito bem humorado, mandou-lhe um convite para comerem juntos, em amorável tête-a-tête, o tutu de feijão dos nossos avós. O convite dizia graciosamente:

"Nhonhô Antonio:

Eu fico hoje sosinho. Si mecê, meu sinhozinho de França, prefere comer pirão e feijão com toicinho, aos quitutes do grandissimo senhor dom Luiz de las Panreas, cá o espero; sinão Deus ajude a Mecê.

Seu moleque, ANDRADA".

Nesse jantar, tão brasileiro, comido no exílio, num cantinho ignorado da França, de certo José Bonifácio narrou ao amigo o romance complicado da Delaunay. O Conselheiro Drummond, diante de tutu de feijão, de certo ter-se-ia inteirado das razões por que o Patriarca tanto ansiava saber se Elisa tinha parecença com ele ou parecença com gente de sua família. Mas Vasconcelos Drummond, se ouviu a confidência, foi a única pessoa que soube do romance. A posteridade não conseguiu desvendar o mistério. Ficou, apenas, conhecendo essa obscura página romântica da vida do Patriarca.

E quem diria que o Patriarca, na sua vida, tivesse tido páginas românticas?


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Um casamento retumbante (Conto histórico), de Paulo Setúbal


UM CASAMENTO RETUMBANTE

"O BANDO"

Nunca se vira coisa igual! O povo abria olhos tontos. De todos os becos, em chusma, corria gente num alvoroço. E toda a gente pasmava-se diante do bando. Era, realmente, um bando luzidíssimo o que lá ia, com rojão e música, pelas ruazinhas emosquitadas daquele pobre Rio de 1810. Que fausto! Os dois almotacés anunciadores do pregão vinham montados nos cavalos brancos das cavalariças do Rei. Ladeavam-nos, muito garridos, os oficiais da Câmara, com as suas capas "bandadas de seda branca" e os seus chapéus de plumas vistosas, rebrilhando de lentejoulas. Duas bandas de música. Atrás, um esquadrão de cavalaria. Vinham afinal, fechando o acompanhamento, "treze azemolas carregadas de fogo do ar".

Tudo aquilo, festivo e estrepitoso, ondeava pelo Rio afora. De quando em quando, em frente à Igreja da Lampadosa, ou rente ao chafariz do Largo do Moura, o cortejo estacava. Um criado de galão tomava das azêmolas grande um molho de rojões. Logo, no ar luminoso, estouravam, derramando-se em lágrimas, os fogos do ar. Que era aquilo? Os almotacés, alto e a bom som, apregoavam então o edital do Rei:

Desposórios do Sereníssimo Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Infante de Espanha, com a Sereníssima Senhora D. Maria Tereza de Bragança, Princesa de Portugal!

E lia o edital em que se anunciava ao povo, para o dia 13 de maio, a realização das bodas. O povo ouvia. Estrondavam palmas. A música rompia. Rojões de novo. E o bando, sob aquele zabumba, rumava para a Rua do Piolho.

 

O INFANTE

D. João VI trouxera de Portugal a família inteira. Vieram os dois filhos varões: o Príncipe D. Pedro, herdeiro do trono; e D. Miguel, filho segundo, apenas infante. Vieram também as filhas: D. Maria Tereza, Princesa da Beira, a primogênita; e as infantas: D. Maria Isabel, D. Maria Francisca, D. Isabel Maria, D. Maria de Assunção, D. Ana de Jesus Maria.

Ora, com os príncipes e as princesas, também aportara aqui um rapaz encantador, muito galhardo, vinte e dois anos, olhos romanticamente verdes: era D. Pedro Carlos de Bourbon, infante de Espanha, sobrinho de D. Carlota Joaquina. O moço irradiava simpatias vencedoras. Chocava pelo desgarre do porte atrevidamente viril. Tipo lindo. Um verdadeiro derrubador de corações!

D. João VI, contam as crônicas, teve para com este sobrinho ternuras comovidas. Amava-o como a um filho. Fê-lo Almirante General da Marinha Real Portuguesa. Cobriu-o de honras. D. Pedro Carlos, na corte do Rei, foi o mais valido dos infantes.

 

A PRINCESA

Tinha D. Maria Tereza o renome de princesa fascinante. Todos os que a viram, sem discrepar, traçaram dela um retrato galantíssimo.

Lá diz o cronista:

"D. Maria Thereza, princeza da Beira, era linda. Era mesmo lindissima. Muito elegante. O ar soberano, parecendo à primeira vista soberba! Seus olhos, quando se fixavam, eram encantadores. Tinha muito espirito. Falava corrente o francez e o hespanhol. Sustentava com graça qualquer conversação. Tinha muitas habilidades; era perfeita em obras de agulha. Chegou ao Rio de Janeiro com quinze annos já era uma beleza!".

D. Maria Tereza não foi apenas bela. Foi, acima de tudo, a filha amada, a princesa do coração de D. João VI. Foi a confidente mais íntima do pai. Conta Mello Moraes:

"D. João VI amava-a muito; amava-a com destaque. Conversava com ella as coisas mais reservadas. Discutia com ella negocios de Estado. E, muytas vezes, fazia-a sua secretaria, por ser preguiçoso em escrever".

Tal era D. Maria Tereza. Tal era a encantadora princesa que ia se casar com D. Pedro Carlos, rapaz de olhos verdes, o mais belo dos infantes de Espanha. 


A PAIXÃO

D. Maria Tereza não fora destinada para o primo. Quando viera de Portugal, toda a gente sabia, a Princesa da Beira já viera noiva. E noiva de quem? Noiva de Fernando VII, rei de Espanha!

O casamento não tivera outra razão a não ser a "razão d'Estado". Mero ajuste de gabinetes. Não entrara nele sombra de afeição.

Mas a Princesa da Beira era, mais do que princesa, profundamente mulher. Criaturazinha deliciosa, muito trêfega, tinha D. Maria Tereza um coração de fogo dentro do peito.  E o coração bateu-lhe desabalado por D. Pedro Carlos. O primo fascinara-a. Aqueles olhos verdes, aquele garbo, aquele... D. Maria Tereza não pôde recalcar a sua flama: amou-o com doidice. Amou-o largadamente, perdidamente. D. João notou aquilo. Que fazer? O Rei teve dó da filha. E condescendeu.. .

É o bisbilhoteiro das intimidades de S. Cristóvão quem nos conta:

"O casamento de D. Maria Thereza estava contractado com o tio Fernando VII. Mas depois que aqui chegou enamorou-se muito do primo, o infante de. D. Pedro Carlos, que tinha vinte e dois annos de edade. E se quizeram tanto que D. João VI, como era muito amigo da filha e do sobrinho, não se mostrava zangado pelo namoro de ambos".

D. Carlota Joaquina, ao contrário, enfurecera-se com a paixão. Aquilo era desnorteio. Era falta de juízo. A filha estava talhada para rainha: que loucura essa de casar com infante! Mas não houve razão que abalasse a princesa. O capricho de D. Maria Tereza tomou proporções assustadoras. D. João não teve por onde sair: quebrou o casamento da filha com Fernando VII e ajustou-o com D. Pedro Carlos.  Eis o caso:

"D. Carlota desesperava porque não queria o casamento. Dizia que a filha não tinha pressa e esperaria pela restauração da Hespanha, porque o dominio de Bonaparte não duraria muyto. E dizia mais que a sua filha, podendo ser rainha de Hespanha, não era para ser mulher de infante. Mas nada disso foi capaz de destruir a paixão da filha pelo primo. O pae, vendo que ambos se amavam muito, concordou no casamento. E este se realizou no dia 13 de Maio de 1810, tendo a princesa dezesete annos e o infante vinte e cinco por completar".

Assim, como se vê, a princesinha desdenhou um trono. Preferiu casar-se liricamente. Foi um dos mais típicos casamentos por paixão de que há memória na crônica dos príncipes.


13 DE MAIO

A 13 de maio, aniversário de D. João, realizaram-se as bodas. O regente, segundo o protocolo, recebeu, no beija-mão clássico, os cumprimentos da corte. Depois, com pompas desmedidas, começaram as festas dos esponsais. Conta o padre Gonçalves dos Santos na suas Memórias:

"Findo o beija-mão, armou-se ás pressas uma riquissima "teia", ligando o Paço á Capella Imperial. Era uma teia de seiscentos e cincoenta palmos de  comprido e dezeseis de largura. Nella só se divisavam sedas, galões de ouro, alcatifas da Persia. De espaço a espaço pendiam nella lampeões de vidro, que eram em numero de noventa e oito, com duas vellas de cera cada um. Na Praça, por toda a quadra, as janelas estavam  guarnecidas de cortinados de seda, e tambem as portas, o que tudo fazia muito agradavel vista, parecendo recinto um magnifico Salão. As paredes do interior do Paço estavam forradas de damasco; finos tapetes se estenderam até a porta. A Capella Real tambem estava ricamente alcatifada. Soberbos lustros de crystaes ornavam o pateo do Paço. E tanto aqui, como na Capella, viam-se muitos tocheiros com grandes tochas de cera. Levantaram-se quatro coretos: dois na porta do Paço, dois na porta da Capella. Em frente ao mar erigiu-se uma grande machina de architectura para servir á iluminação e aos fogos. Emfim tudo respirava grandeza e magnificencia, como convinha a uma Festividade Nupcial e Real, a primeira que o novo Mundo viu realizar na corte do Brasil".


O SÉQUITO

Cinco horas da tarde. As fortalezas estrondam. Repicam todos os campanários. Anda por tudo uma alacridade férvida. É a hora dos desposórios. Pela teia, magnífico, ondula o séquito real. Ei-lo, como o fixou o cronista.

"Uma banda de musicos, precedida de soldados da Guarda Real, rompia a marcha. Após ella, seguiamse os Porteiros da Canna, indo seis delles com as maças de prata ao hombro. Logo depois, mui luzidos, os Reis d'Armas, os Arautos, os Passavantes. Vinham em seguida as Pessoas de Nobreza, que não são convidadas por aviso da Secretaria d'Estado. Depois, os Moços de Camara, os Officiaes da Casa Real, o Corregedor do Crime. Seguiam-se, emfim, os Grandes do Reino, que foram convidados por aviso, e a quem o Principe Regente mandou cobrir, segundo a etiqueta. Vinha, nesse passo, todo o Corpo Diplomatico, em grande gala".


OS NOIVOS

O séquito ondeia luminosamente. Vai pela "teia" um farfalho de sedas. Chispam afogadeiras e borboletas cravejadas. Entrecruzam-se, num burburinho elegante, becas e dragonas, fardões bordeaux e casacos de riço verde.  É aí, no meio desses fulgores e louçanias, que passam os noivos. Acompanha-os luzidíssima guarda de honra. Fale o padre cronista:

"Finalmente, após tão magnifico cortejo D. João, o Principe Regente, Nosso Senhor, trazia pela mão o Serenissimo Noivo, Senhor Infante D. Pedro Carlos, acompanhado dos Senhores: D. Pedro, Principe da Beira, e D. Miguel, Infante de Portugal.

Logo após, D. Carlota Joaquina, Serenissima Senhora Princeza do Brasil, tambem trazia pela mão a Serenissima Noiva, a Senhora D. Maria Thereza. E a Noiva, pela sua formosura rara, pela riqueza dos ves-tidos, preciosidades das joias, belleza do taxa a todos. E encantava tanto que levava após si olhos e corações, tudo enlevado.

Suas Altezas tinham de um lado o Conde de Caparica, do outro, o Exmo. D. Manuel de Souza.

Sustentava a cauda a Excellentissima Camareira-mór.

Seguiam-se as Infantas; e eram ellas: D. Maria Izabel. D. Maria Francisca, D. Izabel Maria. Vinha, tambem, a Sereníssima Princeza D. Maria Francisca Benedicta, irman de D. João, Nosso Senhor, levada pelo braço do Exmo. Marquez do Lavradio. Sustentava-lhe a cauda a Excellentissima Marqueza de Luminares: ia esta senhora seguida de quatro Damas, as Excellentissima D. Maria Eugenia, da casa do Redondo, D. Maria do Resgate, da casa Valladares, D. Maria de Almeida, da casa do Lavradio, D. Barbara da Cunha, da casa do Povolide. Fechav o sequito a Guarda-Real".

Impossível maior pompa, nem mais rigorosa etiqueta, nem grandeza mais pasmosa. Aquele pobre Rio, aquela cidadezinha colonial, suja e triste, viu assombrada os desposórios estonteantes E o ato, na Capela Real, teve lustre de embasbacar. Assim:


O ATO

O cortejo magnífico alcança enfim a Capela Real. D. José Caetano, o bispo capelão, mitrado e solene, espera à porta as Pessoas Reais. D. João VI traz pela mão o infante D. Pedro Carlos; D. Carlota Joaquina traz a Princesa D. Maria Tereza. Entram. Rompe no coro a música de Marcos Portugal.

Os Regentes ajoelham-se. Toda a gente ajoelha-se. Um minuto de oração.

D. João e D. Carlota, com protocolos severíssimos, sentam-se em seguida no trono. O trono é todo de damasco e prata. É nesse instante que o senhor Bispo Capelão desce do seu sólio. O mestre de cerimônias põe-lhe a mitra à cabeça. Entrega-lhe o báculo de ouro. Serve de assistente do grande ato o Monsenhor Decano; servem de acólitos todos os monsenhores. É o momento.

D. João, erguendo-se, toma o noivo pela mão e vai apresentá-lo ao bispo. D. Carlota Joaquina, ao mesmo tempo, toma a noiva pela mão condu-la até o altar.

O senhor Bispo levanta-se. Levantam-se os monsenhores. Levanta-se a corte.

Lá diz o cronista: "Os Reaes contrahentes puzeram-se as mãos uma sobre a outra em cima da estola do Excellentissimo Bispo Capellão-Mor e pronunciaram as palavras do seu mutuo consentimento; ao depois, pondo-se os Serenissimos Desposados de joelhos, lhes deu o Excellentissimo Bispo as bençãos nupciaes em canto sollene; findas as quaes, voltaram os regentes para o throno e principiou o Te Deum.


AS FESTAS

O séquito Real tornou para o Paço. D. João e D. Carlota vinham alumiados por grandes tochas, que os Moços da Câmara soerguiam. Eram oito horas da noite. O terreiro do Paço cintilava. "Estava tão esclarecido, diz a chronica, pela profusão de luzes, que não se invejava a claridade do dia".

Foi então, após tão alta cerimônia, que D. João encaminhou os noivos aos aposentos da mãe.

D. Maria I, a Louca, recebeu-os. A rainha tinha o ar estúpido. D. João disse-lhe:

A Maria Tereza acaba de se casar com o Pedro Carlos...

E a louca:

Ahn! ahn!

Eles vieram beijar a mão de Vossa Majestade.

A louca estendeu-lhes a mão idiotamente.

Ahn!

Os noivos beijaram a mão da rainha. Iam sair. Nisto, muito séria, D. Maria I gritou para D. João:

Queres as minhas joias? É para Maria Tereza? É? Pode dá-las... Pode dá-las...

E riu-se com um riso alvar.

Os três personagens, com as suas galas, deixaram os aposentos entristecedores da louca.

Eram nove horas. Suas Altezas seguiram para o teatro. Iam assistir ao estrondoso espetáculo da noite. Prossegue o cronista:

"O theatro estava ornado com magnificencia. Achava-se alli toda a Nobreza, convidada por especial convite; e, acima de tudo, dava na vista o grande numero de Senhoras ricamente adornadas. Logo após a entrada dos Serenissimos Noivos, os comicos passaram a desempenhar um novo Drama intitulado "Triumpho da America", drama esse expressamente composto para ser representado nessa faustissima noite".


OS DIAS SEGUINTES

"Os dias seguintes (vae expondo o padre Gonçalves) segunda e terça-feira, continuaram a ser de grande gala na corte. As fortalezas e os vasos de guerra embandeiraram-se de novo. Houve salvas ao amanhecer, salvas ao meio-dia, salvas á noite. As luminarias foram geraes; os sinos repicaram sem cessar. No Paço houve, nestas duas noites, grande Serenata na Sala do Cravo, em presença do Principe, Nosso Senhor, e de toda a familia real. Concorreram a ellas toda a Fidalguia, os Ministros Extrangeiros, assim como as Pessoas de maior representação da corte, além das Damas do Paço, e muitas senhoras illustres, que para isso tiveram licença".

No dia seguinte, quarta-feira, realizou-se um beija-mão em honra dos desposados. Houve então, para o povo, grandissimas festas no Terreiro do Paço.


NO TERREIRO DO PAÇO

Construiu-se, no Terreiro, imenso bosque. Viam-se nele bizarras arquiteturas "enfeitadas de bambolins de velludo carmezim com forro de arminho", onde se destacavam em cores fortes o retrato de D. João e de D. Carlota. Rebrilhavam por toda parte dísticos em versos. Eram deste teor:

Ouves Príncipe, soando
Do teu povo as aclamações?
Elas irão redobrando
Nas futuras gerações:
Faz-se imortal quem, reinando,
Reina sobre os corações.

Aí, para júbilo do poviléu, armaram-se divertimentos mirabolantes. Todas as noites subiam ao céu fogos de artifício. Acendiam-se luminárias faustosíssimas. Exibiu-se e isto foi nota de alto destaque exibiu-se uma congada pitoresca.

Os negros dançaram diante dos regentes. A corte achou muitíssima graça "nesses africanos, enfeitados ao uso do seu paiz natal, que, ao som de seus instrumentos estrepitosos e barbaros, applaudiram, como puderam, o feliz consorcio de suas altezas".

Mas os regozijos não ficaram apenas no Paço. Todas as cidades timbraram em solenizar as bodas com pompas únicas. Mas a que mais brilhou, a que deu festas verdadeiramente memoráveis, foi, como era natural, a cidade do Rio de Janeiro.


A CIDADE DO RIO

Conta-nos o cronista:

"Querendo a cidade do Rio de Janeiro festejar os Reaes Desposorios, o illustrissimo conselheiro, Inten dente Geral da Policia, Paulo Fernandes Vianna, tomou a seu cargo a direcção e a execução de todo o festejo; e assim se construíu, debaixo de suas ordens, no campo de Sant'Anna, uma praça que levou a palma a todas quantas já se fizeram nesta cidade. Basta dizer que os camarotes occupavam dois andares e eram em numero de trezentos e quarenta e oito. O Camarim Real, com cincoenta e dois palmos de frente, era, no exterior, pintado a oleo com muito primor, e, no interior, rica mente forrado de damasco, velludo e ouro".

Marcou-se para 12 de outubro a festa da cidade. Chegou o dia.

Que dia! D. João passou no seu coche dourado, ao som das trombetas da guarda real. D. Carlota Joaquina seguia-o. Todos os principais e todas as princesas também seguiam-no com estrondo. A corte inteira correu a festa atordoante.

"As damas, pelo seu ornato e pela sua riqueza, realçavam a magnificencia do amphitheatro, e tudo fazia um espectaculo muytissimo brilhante, superior a tudo quanto se tinha visto até então".

Começaram os divertimentos. Os numeros eram bizarrissimos. Constavam eles de carros alegóricos, os mais fantasiosos, animados de danças extravagantes.

Assim, representava o primeiro carro um repuzo enorme. Este repuxo esguichava água caprichosamente por todo o lado. Vinha à frente um magote de índios, com seu cacique, todos enfeitados de plumas, dançando e pulando ao fragor de inúbias e de maracás.

O segundo carro, confeccionaram-no os "Ourives do ouro e da prata".

"Vinham nelle uns Chinas, vestidos de ricas sedas do seu paiz, uns de azul claro e outros de amarello. Estes Chinas, descendo do carro, executaram no meio da praça dansas muito engraçadas...

Os negociantes de molhados, por seu turno, ofereceram um carro "muy elegante, conduzindo uns dansarinos, que no traje imitavam os antigos portuguezes, os quaes pelo asseio e riqueza do vestuario, mereceram geraes applausos".

E lá vai o cronista: "Após delle, entrou o quarto carro, representando uma Ilha do Mar Pacifico, com dansa de Indios proprios, que os Caldeireiros, Latoeiros e Ferreiros offertáram. Entrou logo o quinto carro, fingindo um Castello, sobre o qual tremulava a Real Bandeira Portugueza: deu este Castello uma salva Real na Augusta Presença de Suas Altezas; e sahindo de dentro delle um militar executou com muita certeza varías evoluções. Este carro foi offertado por dois Officiaes de Carpinteiro, que fizeram a obra do Curro".

"Rematou esta pomposa entrada dos carros, um grande escaller, cuja maruja vinha cantando; e, havendo desembarcado, fizeram uma muy divertida dansa. Finalmente entráram pela Praça os Ciganos a cavallo, trazendo as mulheres na garupa; trajavam todos ricos vestidos agaloados de ouro e prata; e, descendo dos cavallos, formaram na frente do Camarim Real, uma dansa ao som de instrumentos, que foi grandemente applaudida pelo acerto e prímor de sua execução".


OS MACACOS

Os carros passavam. E por todo o anfiteatro, ruidosamente, espalhafatosamente, corriam mascarados. Mas os mascarados não tiveram grande êxito. O chiste da festa, o chiste de suprema graça, foram os macacos. Nem houve nada igual. Apareceram a fazer trejeitos, a pular, a guinchar, tão cômicos! Arrancavam gargalhadas de toda gente. No final dos seus saracoteios, trepando uns sobre os ombros dos outros, desenrolaram eles ao público, imprevistamente, os retratos dos dois noivos. Eis o caso:

"Entre outras muytas dansas, que se apresentaram no Curro, deu muito prazer a dos macacos, não só pelo ridiculo das suas figuras, saltos e tregeitos pantomimicos, mas tambem pelo desenvolvimento da mesma dansa, que, sendo toda ella de mimica, rematou com formarem um circulo, e sobre os hombros de quatro, se puzeram em pé outros quatro, fazendo um grupo, sobre o qual se firmou um pequeno macaco: e este então desenrolou os Retratos dos Serenissimos Consortes, e os mostrou aos Espectadores entre repetidos applausos, em que rompeu toda a nobilissima Assembléa".


AINDA FESTAS!

Mas os regozijos não pararam aí. Houve mais festas. Ainda festas! Durante quatro dias o anfiteatro retumbou com as mesmas pompas. Correu-se uma cavalhada famosíssima. Lidaram nela pimpões e galhardos, trinta e dois cavalheiros. Todos riquissimamente vestidos, "uns com bordaduras de ouro, outros com bordaduras de prata sobre as casacas, que era de fino belbutim". Depois, com o maior successo, tourearam-se vários touros "animaes muy ageis e bravos". Nelas, fez prodigios o Neto, famoso toureiro. Todos os espectadores prorrompiam em delirios quando "apparecia o Neto, muy bem montado, com o sequito dos capinhas".

Queimaram-se depois os mais fulgurantes fogos de artifício, fogos do ar, como diz o cronista.

Assim, com esses festejos desmedidos, famosos, seria enfadonho, seria não mais acabar, o relembrar aqui as pompas que, além da corte, se organizaram no Brasil inteiro. D. João, como para popularizar-se, timbrou em dar ao povo, com esbanjamento, estrondosos regozijos. Panem et circenses.


O EPÍLOGO

D. Pedro Carlos e D. Maria Tereza viveram dois anos em lua-de-mel. Foi-lhes a vida sem arrepios nem brusquezas. Nasceu-lhe um filho: D. Sebastião. D. João sonhou dar ao netinho um reino. Seria, segundo projetos abortados, o Reino da Província Cisplatina.

Ao fim, porém, de dois anos, o destino subitamente quebrou a felicidade do casal amoroso: D. Pedro Carlos foi atacado de bexigas. Não houve meio de salvá-lo. Morreu a 26 de maio de 1812.

D. Maria Tereza passou quase toda a sua viuvez na corte do Pai. Em 1817, foi pedida em casamento pelo grão duque da Toscana, Fernando, irmão do Imperador da Áustria.

"D. João VI não aprovou porque o pretendente tinha filhos do primeiro matrimonio e o rei não queria que os de sua filha fossem filhos segundos. Demais, tendo ella de ir para a Europa, podia fazer vantajoso casamento".

Conta Mello Moraes que D. Pedro não tolerava a irmã. Lá está:

"D. Maria Thereza soffreu muito do irmão D. Pedro que lhe fazia as maiores desfeitas".

Por que esse rancor à viúva de Pedro Carlos? Não se sabe. Coisas de família. E lá remata o escritor, na sua Crônica Geral, o fim de D. Maria Thereza:

"A casa real sentiu muito essa perda (a morte de D. Pedro Carlos). Mas correu o tempo... E a viuva, para matar saudades, passou-se para a fazenda do Macaco, hoje Villa Izabel, onde achou consolação e conforto à sua viuvez".

 
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A dissolução da constituinte (Conto histórico), de Paulo Setúbal


A DISSOLUÇÃO DA CONSTITUINTE

Acabo de receber longa e interessantíssima carta. O seu autor, pessoa forçosamente erudita em coisas e particularidades de História Pátria, oculta-se sob o significativo pseudônimo de Um Monarquista Verdadeiro.

Nessa carta, vastas laudas datilografadas, o Monarquista Verdadeiro esforça-se, com o seu melhor esforço, em demonstrar os heroísmos de D. Pedro I, a sua forte atuação no Brasil, a sua moralidade e, sobretudo, a nenhuma influência que sobre ele exerceram os validos e as mulheres. Sobre este ponto, a nenhuma interferência dos validos e das mulheres, o distinto missivista faz a sua tecla preferida, tangendo-a alto, documentando-a com fartura nas mais carrancudas citações. Entre outras muitas coisas, diz-me o Monarquista Verdadeiro:

"Grave injustiça V. S. commette nos seus escriptos, exhibindo a Marqueza de Santos com influencia sem diques no espirito de D. Pedro. Ha factos, então, que V. S. lança e que estão fora de qualquer verdade historica, como por exemplo: o facto de haver a Marqueza tramado a dissolução da Assembléa Constituinte"

"Onde V. S. viu isto? Como pode V. S. escrever uma coisa destas? Pobre Domitilla de Castro! Viveu sempre, como politica, em innegavel mediocridade, não interveiu nos incidentes da vida publica; e agora, passado quasi um seculo vem V. S. fazel-a responsável por innumeros favores e empregos, e, sobretudo, como cabeça da dissolução da Constituinte. Que pecado commetteu V. S. Ora, Alberto Rangel já desfez essa lenda; Alberto Rangel demonstrou... etc."

É verdade. Alberto Rangel, na parte de empregos e favores políticos, tentou eximir a Marquesa de Santos de qualquer interferência. Mas nessa parte, justamente, a Domitila de Castro é franca, é categoricamente indefensável. Vejamos.

* * *

Principiemos pela própria Marquesa. V. S., senhor Monarquista Verdadeiro, decerto sabe que a Domitila de Castro era trivial mulherinha de São Paulo, a quem o marido (o alferes Felício Mendonça) meteu duas facadas na coxa. Duas facadas, meu amigo! E isso ali na fonte de Santa Luzia, perto da rua Conde de Sarzedas, que V. S. conhece perfeitamente. Pois bem. Vem D. Pedro, enamora-se da moça, agarra-a, leva-a para o Rio, bota-a de cama e mesa. Mas não é só: eleva-a, dum dia para outro, à alta honraria de Primeira Dama da Imperatriz. Fica aí? Capaz! Não se contenta com a retumbante mercê: fê-la com escândalo de toda a gente Viscondessa de Santos! E é só? Não! Ainda há mais: concedeu-lhe, num dia memorável, concedeu-lhe a estrondosa graça de Marquesa de Santos! Isto, Sr. Monarquista, a Domitila.

E os parentes? Veja um pouco. Comecemos pelos mais próximos:

D. Pedro elevou a filha primogênita da Domitila a Isabel Maria a Duquesa. Ouviu bem? A Duquesa! Foi a menina a célebre Duquesa de Goiás. O título mais alto do Império.

Elevou também a segunda filha, que morreu na infância, às mesmas culminâncias. Foi a Duquesa do Ceará.

Mas as mercês não pararam na Domitila e nos filhos. Transbordaram. É só ver os fatos.

Os pais da Domitila, o velho João de Castro e D. Escolástica Bonifácia, foram agraciados com o título de viscondes. Foram os viscondes de Castro. A irmã e o cunhado a Maria Benedita e o Delfim Pereira arranjaram-se com a nobreza de barões. Foram os barões de Sorocaba. Ainda não é tudo. Os irmãos da Domitila, num só dia, receberam a graça de "moços fidalgos da casa Imperial"!

E que falar, Sr. Monarquista Verdadeiro, daquela fieira de Toledo Ribas que tiveram promoção e acesso em todos os seus empregos? E que falar do Magessi, que veio do Mato Grosso com a reputação em pandarecos e a Domitila, mesmo assim, conseguiu fazê-lo presidente da Província Cisplatina?

Seria longo enumerar aqui, um por um, os parentes e amigos da Marquesa que receberam o bafejo das suas mãos onipotentes. Esta pobre crônica não comporta a lista imensa. Seria enfadonho o rol. Basta o que ficou acima.

Vamos, contudo, ao fato que o missivista diz "NÃO SER VERDADE". É o fato de haver eu dito que a Domitila influenciou decisivamente na dissolução da Assembleia Constituinte. "Onde V. S. viu isto?", exclama. E eu passo a responder.

* * *

Vasconcelos Drummond deixou as suas "memórias". Não há, para estudo do Primeiro Império, documento tão curioso. Pessoa absolutamente proba, comparsa dos acontecimentos, amigo de D. Pedro, amigo dos Andradas, o conselheiro Drummond tem, nas suas memórias, autoridade incontrastável. Isso é ponto pacífico. Pois é lá, nessas memórias (Annaes da Bib. Nac. Vol. XIII) que se encontra isto:

"Tudo estava preparado para a dissolução da Constituinte. A famosa Domitilla já estava na amplitude do seu poder, rodeada de vis e baixos cortezãos aduladores, imperando sobre o espirito mal avisado do Principe. A Domitilla não foi extranha ao projecto da dissolução: ao contrário, era a representante assalariada pelos chamados republicanos desta conjuração"...

Mais ainda: no dia da dissolução da assembleia transbordou-se a alegria da Domitila. Todo o mundo sabe que D. Pedro, e os que o circundavam, ornaram-se estrondosamente de ramos de café. Era a forma de exteriorizarem os seus júbilos. A Domitila, como eles, enfeitou-se com espavento. Estava radiosa com a dissolução. Eis o tópico, fls. 76:

"O Imperador ornou o seu chapéu de um frondoso ramo de folhas de café. O mesmo fizeram os officiaes e os generaes. Villela Barbosa, posto não fosse militar combatente, tambem ornou o seu chapéu de ramos de café. O mesmo fez Clemente Ferreira França. Até a Domitilla ornou-se com um ramo exhorbitante no peito"...

Ora, qual a razão desta alegria, Senhor Monarquista Verdadeiro? É fácil responder: é que a Marquesa fora parte magna no ato despótico. Trabalhara por ele. Contribuíra decisivamente, contribuíra com todos os seus feitiços, para que D. Pedro dissolvesse a assembleia. É o velho Drummond quem a acusa, com esta declaração categórica e de pasmar:

"Figurava á testa do partido republicano um moço sem talento, mas activo e rancoroso. Era filho da provincia da Bahia e nascido de paes humildes e pobres. Exercendo um cargo subalterno na magistratura de São Paulo, ahi se casou com uma viuva rica. A riqueza augmentou-lhe a actividade e não sei se a violencia do caracter tambem.

"Tal era o homem, que por parte dos republicanos, mais activamente trabalhou para dissolução da Assembléa Constituinte. A Domitilla foi quem mais lhe serviu nesta empreza. É para mim caso averiguado que esta mulher, que tantos males causou ao Brasil, delle recebera doze contos de réis em paga do seu trabalho. É para mim caso averiguado porque VI, LI COM ESTES OLHOS, UMA CARTA escripta por mão augusta em que isto assim se relatava. Era uma carta escripta pela excelsa e virtuosa Imperatriz D. Leopoldina a José Bonifácio em Novembro ou Dezembro de 1827".

Eis aí, Sr. Monarquista Verdadeiro, a fonte onde se abeberaram os meus escritos. Não inventei o ter a Domitila intervindo diretamente na dissolução. Ocultei apenas que ela tivesse ganho, para isso, a soma de doze contos. Fui benigno, isso sim. Mas não fui contra a verdade histórica. Concorda?

 
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D. Amélia e a política (Conto histórico), de Paulo Setúbal


D. AMÉLIA E A POLÍTICA

Durante apenas dois anos de reinado — 1829 a 1831 — que poderia ter feito D. Amélia na política do Brasil? Quase nada. O poderio dela cifrou-se, nesse par de anos, em nortear para um caminho mais moralizado o caráter boêmio do Imperador. D. Amélia venceu integralmente o marido. A sua formosura, apregoada com tubas altas por todos os contemporâneos, teve filtros venenosos, que amalucaram o coração enamorado do moço vulcânico.

Daí, desse predomínio, as suas vitórias. Vitórias frágeis, na aparência; mas, na realidade, dificílimas de serem conquistadas.

Assim, foi D. Amélia, de parceria com Barbacena, a única que teve o supremo arrojo de tramar — de tramar e conseguir! — a expulsão do célebre Chalaça do Brasil.

Também conseguiu ela (e isto foi outro serviço grande) arredar do marido, de João Pinto da Rocha, aquele valido detestável, falcatrueiro cínico, que desmoralizava o trono e o Imperador.

João Pinto da Rocha partiu da corte para um emprego na Europa. Lá, após muitas aventuras, meteu uma bala nos ouvidos.

Foi também D. Amélia, com ríspida dignidade e compostura, quem conseguiu lançar fora do Paço definitivamente tudo quanto lembrasse a Marquesa de Santos. Assim, na manhã seguinte à chegada, a duquezinha de Goiás, a bastarda que D. Pedro reconhecera, teve ordem de sair imediatamente de S. Cristóvão. Saiu a meninazinha, a toque de caixa, com as suas açafatas D. Josefa e D. Bárbara, primas da Marquesa de Santos. Instalaram-se todas em Niterói, na casa que foi de D. João VI.

Dizem uns — e Mello Moraes o afirma — que D. Amélia se bateu para que D. Pedro não abdicasse o trono de Portugal na filha D. Maria da Glória. Isto porque sempre afagara a ideia de que D. Pedro viesse a ser um dia Imperador do Brasil e Rei de Portugal. Até onde vai a verdade dessa afirmativa?

Impossível responder. Não há, em documento sério, a comprovação dessa atitude política de D. Amélia. Pouco importa tal atitude. Mesmo que a Imperatriz tivesse se esforçado por unir as duas coroas, o fato é que não o conseguiu. O sete de abril derrubou-a do trono. Obrigou-a a partir, ao lado do marido, para aquela imensa epopeia que D. Pedro, cavaleiro e herói, realizou em Portugal.


FORA DO BRASIL

D. Amélia, enquanto o marido batalhava no Porto, viveu em Paris. Ficou lá, vigilante, ao lado de D. Maria da Glória, a rainha de Portugal.

D. Pedro, num sonho de visionário, arregimentou o seu exercitozinho para atacar o mano Miguel. Correm por aí muitíssimo contadas as façanhas do bragança nessa página formidável da sua vida.

D. Pedro — sabe-o toda gente — teve o supremo gosto de triunfar. E, triunfante, senhor de Lisboa, mandou buscar em Paris a filha Maria da Glória para lhe entregar o trono que conquistara.

Veio para Lisboa, com a rainhazinha, a senhora D. Amélia. Assistiu ela aí as vitórias do marido. Acompanhou-o naqueles gozos embriagantes. Foi ao Porto. Viu, dentro de coches agaloados, os delírios com que a heroica cidade recebera o seu ídolo. Depois...

Depois foram os fracassos. Foram os sucessos políticos. A impopularidade de D. Pedro. A vaia. Os apupos. Os punhados de lama. Toda aquela escumalha de ingratidão popular que fervilhou contra o homem que fora o deus da véspera.

Começa então o martírio do Bragança. É a doença que vem, são as hemoptises, o quebramento das forças, o leito.

D. Amélia, em meio a tudo, doce e boa, a afagar o marido com mãos de veludo! D. Amélia, em meio a tudo, acompanha-o transe a transe, inabalável, única na constância e no carinho!


O PRÍNCIPE AUGUSTO

A rainha D. Maria II, com os seus quinze anos, loiros e frescos, principiou a governar os seus Estados.

Timbrou a menina, desde logo, em tratar com altas deferências a madrasta e ex-imperatriz.

D. Amélia, porém, deixou a companhia da rainha e alojou-se nas Janelas Verdes. As relações entre ambas iam num mar de rosas. Contribuiu para isso, não pouco, o casamento de D. Maria II com o príncipe Augusto.

O príncipe Augusto era irmão de D. Amélia. Acompanhara a irmã ao Brasil. Morou no Rio muito tempo. Levou daí saudades e deixou aí amigos.

Trouxera ele da sua pátria um homem culto, seu mestre e filósofo, que foi o conde de Nejaud. Além deste, o Dr. Casanova, médico de nota.

Eram estes três personagens — o príncipe, o conde, o médico — os mais assíduos frequentadores da casa de José Bonifácio. Com o patriarca, numa daquelas boas cavaqueiras que lá havia, foi que o Dr. Casanova se abriu nesta audaciosa confissão, que as crônicas registram.

"Saiba, meu amigo, que o Imperador do Brasil é um louco!"

O velho Andrada achou aquilo muito forte. Pro curou atenuar. Fez ver ao Dr. Casanova que muitos dos atos estroinas de D. Pedro eram o fruto de más companhias, de maus conselhos, de visão errada...

Pode ser, atalhou o grave médico, "mas o estado actual do Imperador, afianço-o, resente-se de alienação mental muito pronunciada".

Isso são detalhes que interessarão decerto os psiquiatras que quiserem um dia estudar a vida do Imperador.

Vamos nós preocuparmo-nos com o príncipe Augusto. Viveu ele no Rio os dois anos que aí vivera a Imperatriz.

D. Pedro estimava-o muito.

Fê-lo alta patente das forças brasileiras e nomeou-o duque: duque de Santa Cruz. O príncipe Augusto foi o único duque do primeiro Reinado. Assim como Caxias foi o único duque do Segundo. Quando os Imperadores partiram, o príncipe Augusto também partiu. Seguiu por toda a parte a irmã. Afinal, em Lisboa, pela mão hábil de D. Amélia, foi tramado o casamento do príncipe com dona Maria da Glória, já rainha de Portugal. Casaram-se. Príncipe consorte, o irmão de D. Amélia teve posição relevantíssima na Corte. Mas essa posição durou pouco: Augusto de Leuchtemberg, algum tempo após, morria de febres bravas.

Tratou a política, sem demora, de casar a soberana com novo príncipe de casa reinante. A escolha foi rápida. Decidiram as cortes por Fernando de Saxe Coburgo Gotha. Foi este o segundo marido de D. Maria II, a rainhazinha brasileira.


DONA AMÉLIA E DONA MARIA II

Depois da morte do irmão, esfriaram as relações entre D. Amélia e D. Maria II. Por quê? Rivalidades, ciumezinhos, intrigas, pequenos nadas de mulher a mulher.

Talvez, no coração de D. Amélia, houvesse fundo espinho. É que, do casamento com D. Pedro, nascera também uma menina. Chamava-se Amélia, tal como a mãe. A ex-imperatriz, no entanto, via essa outra, e não a filha, sentada no trono e refulgindo! Lá diz, com razão, Alberto Pimentel, na Corte de D. Pedro IV:

"Não havia, nem era facil haver, uma intimidade sem nuvens entre a madrasta e a enteada. D. Amelia fora, é certo, uma esposa dedicadissima. No Brasil, mostrara-se carinhosa para com os filhos de D. Pedro; despedira-se delles com sincera saudade. Mas, agora, no fundo do seu coração, sentiria a magua de ver-se reduzida, pella morte do marido, a uma figura secundaria, de ver a sua filha numa obscuridade rellativa, ao passo que D. Maria da Gloria, sua enteada, era a rainha, cingia a coroa, cuja conquista ella propria, a Imperatriz, regára com as suas lagrimas de esposa ausente e sobresaltada durante a campanha da liberdade".

Dia a dia, entre as duas mulheres, acentuavam-se diferenças, que mais as separavam. Até no modo de vestir andavam ambas desencontradas. Basta ler o chistoso cronista:

"Phrases soltas revelavam quanto a rainha e a imperatriz divergiam na maneira de pensar. Por D. Amelia gostava de usar vestidos pretos exemplo : com muytos e altos bordados a ouro. Gostava de pôr brilhantes em profusão. D. Maria da Gloria, não; e quando a via assim, costumava dizer:

Ahi vem a mamã succumbida de enfeites"!

Não é preciso dizer mais. Isto mostra, à evidência, a rivalidade que se abriu, até nas miudezas, entre a imperatriz e a rainha.


O MARQUÊS DE REZENDE

D. Maria II, como se compreende, era o foco. Todo o mundo se voltava para as necessidades. O Paço coalhava-se de áulicos. Os cortesãos, aqueles mesmos que se rastejavam outrora aos pés de D. Amélia, puseram-se a desertar dia a dia dos salões tristes das janelas verdes.

Com a morte do príncipe Augusto, então, a debandada foi única. D. Amélia sentiu o amargo travor da desvalia. Teve apenas a Imperatriz, na desdita, a alta fortuna de encontrar um amigo. Um único, é verdade, mas, ao menos, teve um! E esse foi o velho Marquês de Rezende. Companheiro devotadíssimo de D. Pedro, camarista e confidente, o Marquês não se esqueceu jamais do antigo senhor. Também não ocultou jamais a sua dedicação à causa constitucional. Apregoava-a sem rodeios. Certa vez, em Viena, encontraram-se D. Miguel e o Marquês de Rezende. O velho não se embaraçou. Disse rudemente ao inimigo do seu amo:

Nada de cortesias, senhor! Nós não temos, certamente, afeição um pelo outro...

Homem franco assim, com um feitio áspero desses por certo não arrancaria ligeiramente do seu coração as amizades fortes que se enraizassem nele, como se enraízam gravatás em chão bravo.


AS LIMAS E O COCHE

D. Maria II não morria de amores pelo Marquês de Rezende, o cortesão de D. Amélia. Havia dito mesmo, num momento leviano, esta frase que foi ouvida:

Quando meu pai morrer, o Rezende não sentará mais na minha mesa.

O Marquês soube. Foi ele, desde então, quem timbrou em não aceitar, nunca mais, o menor favor da rainha. Alberto Pimentel nos conta dois episódios, ingênuos em si, mas muito expressivos, do turronismo do velho.

Ouçamos o historiador:

"D. Amelia instou com Rezende para que elle ficasse a seu serviço. O Marquez ficou, porque pertencia á Corte velha, e D. Amelia representava o passado".

"Na presença de dona Maria II, mostrava-se o Marquez respeitoso, mas retrahido. Fazia questão de não acceitar nenhum favor do Paço das Necessidades, e, sobretudo, em não se sentar a mesa da rainha. Altiva como seu pae, D. Maria incommodava-se com aquella obstinação. Certa vez, terminado o jantar nas Necessidades, D. Amelia chegou de visita, acompanhada pelo Marquez.

É agora, disse a rainha para alguem; o Rezende vae quebrar o seu protesto.

E offereceu-lhe, gentilmente, umas das excellentes limas, que estavam na mesa:

O Marquez é guloso! Certamente, não recusará estas boas limas que lhe offereço...

Devem ser excellentes, respondeu o velho, examinando-as; e eu já não as como ha muito tempo. A ultima vez — ainda me recordo foi na minha Quinta das Lapas. Ha quanto tempo! Mas, minha senhora, a idade vae se oppondo aos caprichos do guloso. Hoje, todas as cautellas são poucas...

Uma só, Marquez!

Tenho pena, minha senhora: devem ser deliciosas; a apparencia é optima. Realmente, não podem ter melhor cara!

E pousou as limas na bandeja".

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"Doutra vez, estando juntas, D. Maria e D. Amelia, foi preciso mandar alguem a S. Vicente, a toda pressa. Se o Marquez me fizesse esse favor... disse a rainha; eu mandava pôr uma carruagem.

Sim, minha senhora, eu vou! Mas a pé. Faz-me muito bem o andar. Os medicos me recommendam isso — que ande muito. E eu vou, eu vou...

Foi a pé, com sacrificio, para não se aproveitar da carruagem do Paço!"

Foi neste homem, neste leal servidor de cabelos brancos, que se resumiu a corte de D. Amélia. Foi o seu último cortesão. Mas foi um cortesão que valeu por todos os outros.


O FIM

Viveu D. Amélia placidamente o final de sua vida. Morava isolada. Fazia muitas esmolas. Teve, anos passados, necessidade de ir a Alemanha levar a filha com o fim de consultar médicos. Mandaram eles a pequerrucha para a Madeira, a ares. Aí morreu a princesinha. Apagou-se o único traço de ligação que havia entre Braganças e Beauharnais.

D. Amélia viveu, daí em diante, um crepúsculo sereno. D. Pedro deixou-a rica. Assim, amparada e tranquila, aquela boneca loura, que foi, por dois anos, a Imperatriz do Brasil, viu chegar certo dia a velha feia, toda ossos, que fecha as pálpebras da gente com mãos muito compridas e muito geladas.


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