Período fundamente característico da nossa história, período proceloso, efervescente de bravias lutas parlamentares, foi o daqueles dias ásperos em que se discutiu e se decretou, como medida de salvação publica, a maioridade de D. Pedro II. É curioso e útil relembrá-lo.
A regência não conseguira sopitar de vez o desabalado espírito revolucionário que então sacudia o país. Havia, por toda a parte, forte anseio de fragmentação. O Brasil tentava, por mil formas, quebrar-se em pedaços autônomos, esboroar-se.
Feijó, apesar da sua voluntariedade rija, não arrancara da alma das massas aquele insidioso estopim de rebelião, que a toda hora se mostrava pronto para explodir. Prova-o, com eloquência, a subida do regente Araújo Lima. Mal assumira o poder, quando ainda os adversários do padre de ferro festejavam a reviravolta política, as províncias, sem razões sérias, já se punham a rebelar-se com armas na mão. Estouraram motins no Rio Grande. Nas Alagoas. Em Goiás. Na Paraíba.
Mais do que simples motins, revoluções de caráter temeroso, revoluções com chacina e fúria, explodem na Bahia e no Maranhão.
Que significava aquilo? Por que tão rubro descontentamento?
É que os regentes tinham um feitio acentuadamente partidário. Eram eles o fruto de correntes políticas triunfantes.
Os vencidos, os que iam para o ostracismo, esses não suportavam de cara alegre a vitória dos que subiam. Daí aquele ininterrupto arrebentar de revoltas. Viu--se claro, no meio da tormenta, que só havia um remédio de apaziguar a fervedura: era pôr nas mãos onipotentes de um só homem, e de homem que estivesse acima dos partidos, um poder centralizador absoluto.
Foi então que surgiu a ideia de se criar uma ditadura legal.
DITADURA LEGAL
Naqueles tempos, diante daquela rajada de fatos subversivos, já se pensou (o que hoje muita gente pensa e apregoa!) que a salvação do Brasil estava num ditador forte. Estava numa individualidade masculinizada, absorvente, que piloteasse o país, com mãos de ferro, à Mussolini. Nem se diga que isso ficou em meras palavras. Não! No parlamento, em mais de uma sessão, discutiu-se gravemente a possibilidade do ditador legal.
Martim Francisco, o velho e ardoroso Martim, que tornara a entrar na política, é quem combate com mais violência a ditadura:
— "É uma idéa disparatada! Tanto mais disparatada quanto se sabe que são os amigos do throno os que a inculcam e defendem!"
Mas o deputado Barreto Pedroso discorda. Vem à tribuna. E defende, desassombrado, a necessidade de um ditador. Vale a pena, neste passo, ler os anais:
— O Sr. Barreto Pedroso: "Para provar que existia o pensamento de se querer uma dictadura, foi trazido aqui um artigo, no qual se dizia que as circumstancias do paiz reclamavam medidas fortes, excepcionaes. O autor do artigo, diante disso, não tinha duvida em acceitar a dictadura legal". Que quer isso dizer? Que o autor do artigo reconhecia bem que os nossos males publicos não se podiam curar com as leis que temos, com essas nossas leis fracas e brandas. O epiteto — legal — unido á palavra dictadura, exclue tudo o que possa haver de odioso nessa materia. Ora, senhor presidente, eu confesso, sem medo, que é isso exactamente o que eu quero... (Grande sussurro na sala. Cruzam vozes). Direi aos senhores deputados: eu quero a dictadura legal! Quero a dictadura legal para evitar a dictadura despotica, a dictadura militar! (Continua o sussurro; muitos apartes. Varios deputados pedem a palavra...)"
Deduz-se claramente que a opinião, para chegar a esse extremo exagero de pedir um ditador, é porque não via na Regência, com o seu partidarismo e personalismo, o aparelhamento capaz de manietar as erupções que se desencadeavam sanhudas pelas Províncias. Urgia solucionar a situação. Pensou-se em dar à princesa Januária, que completara os dezoito anos, as atribuições de dirigir o Império até que o príncipe herdeiro alcançasse a idade legal. Mas era uma solução fragílima. Não agradara a ninguém. Como poderia uma menina, sem o menor trato dos negócios públicos, deslindar uma situação que reclamava pulsos de gigante?
— "Nesse caso, exclamavam, em logar da princeza, façamos logo o principe sentar-se no throno! É rapaz ainda, não ha duvida. Tem quasi quinze annos: mas quinze annos solidos e desempenados! É um rapaz varonil! Decretemos, portanto, a maioridade delle; façamol-o imperador desde já!"
O CLUBE DA MAIORIDADE
A ideia alastrou-se. Toda a gente acreditou que, com a maioridade de D. Pedro, o país entraria num período menos arrepiado, sem aquele crivo de motins e rebeliões.
Sem mais delongas, segundo nos conta a interessantíssima memória de Araripe Júnior, "Noticia sobre a maioridade", fundou-se no Rio um clube secreto para impulsionar e realizar o plano. Pertenceram a esse clube os nomes mais fulgurantes do parlamento de então. Basta citar os de Antônio Carlos, Martim Francisco, Montezuma, Clemente Pereira, Hollanda Cavalcanti, José Mariano, Alencar, Limpo de Abreu. Esses homens foram os que, na sombra, tramaram a grande medida política. Era um caso melindroso e dos mais perigosos: ia a maioridade deitar por terra o Regente, isto é, o homem culminante, o todo-poderoso da hora.
Mas os conjurados não se atemorizavam. Aliciaram quase todos os seus colegas de representação. Trabalharam à socapa, com ardor.
Um dia, enfim, numa sessão memorável da Câmara, o deputado Montezuma lançou e
defendeu o ruidoso, o célebre projeto:
— "O Congresso Nacional decreta:
Art. unico: S. M. o Imperador D. Pedro II é reconhecido maior, desde já".
Aquilo foi como fogo em palha. O decreto atiçou labaredas. As sessões tornaram-se agitadíssimas.
Rolou, durante dias, aos escachoos, toda aquela oratória flamante dos parlamentares do tempo. Houve um deputado que fez loucuras a favor da maioridade. Foi o deputado Navarro. Discutiu. Gritou. Disse desaforos. Tornou-se durante um minuto, o nome apoteosado da arraia-miúda carioca.
O DEPUTADO NAVARRO
Navarro era uma rajada. A violência destemerosa, e pouco urbana, dos seus discursos, arrancava aplausos delirantes às galerias.
A paixão que ele pôs em defender a maioridade foi realmente sem peias. É profundamente pitoresca a página dos seus rebuliços. Eis os anais:
"Sr. Navarro: Commissão? Qual commissão, senhor presidente! Vamos proclamar a maioridade já! Acabemos com isso... (pedem vozes que o presidente o chame á ordem; o snr. Navarro com desplante). Não ha força para isso! Continuo... Todos estamos dominados pelo enthusiasmo que se tem apoderado de nós na questão da maioridade do Snr. D. Pedro II. E isso porque, como todos sabem, é com manobras e artificios que uma camarilha perfida quer subjugar-nos. Quem não vê que este resto corrompido e infame de ministerio... (grandes protestos, vozes, o presidente declara que o orador está fora da ordem). Estou na ordem; estou falando sobre a urgencia, mas ás vezes escapam expressões fortes. Continuo...
Porventura, senhores, ainda temos governo? Não temos governo. Nem é mais possivel um arranjo ministerial com o actual regente. Os amigos o atrahiçoam. (E virando-se para Carneiro Leão). Ouvistes? Vós o atrahiçoaes! Vós já o atrahiçoastes para cumulo da vossa infamia! (Vozes, protestos, o presidente soa o timpano). Sim, (continua Navarro, aos berros) agora? o que nos resta, senhores? Uma coisa só: a maioridade. Sim, a maioridade do Snr. D. Pedro II (barulho e vivas na galeria, o presidente pede ordem), o Sr. Navarro:
Fora a camarilha! Viva a maioridade de D. Pedro II! (Os espectadores dão vivas, agitam lenços. Navarro avança para Carneiro Leão, os deputados agarram-n'o. Continuam vivas. No meio do tumulto ecoa, muytas vezes, a voz do presidente ordem! Silencio!").
Essa página, como se vê, pinta a tempestade que a maioridade desencadeou no Congresso. Durante dois dias a discussão estrondejou, fragorosa. O regente Araújo Lima viu que a ondada era grossa demais. Teve apenas uma saída: lavrou um decreto mandando adiar as sessões do Congresso para daí a seis meses.
O DECRETO
Estavam os congressistas na Câmara quando entrou o oficial do paço com o decreto do adiamento. O secretário leu-o. Os deputados viram bem que aquilo era um golpe de força. Araújo Lima não tinha maioria para evitar a sua queda. Usara então, no caso, de uma violência rasteira. Mas os deputados não se conformaram com ela. E rompem gritos de todas as bocas:
— Governo conspirador! Regência inepta! Traição! Violência!
Álvares Machado, representante paulista, brada da tribuna:
— Protesto contra esse ato praticado por um governo ilegal, intruso, usurpador, ao qual é lícito a todo o brasileiro resistir: vamos para o campo!
As galerias fremem. A indignação sacoleja a todos. Antônio Carlos declara:
— Não reconheço, como legal, este ato do governo. O regente é um usurpador desde o dia 11 de março. É um traidor! É um infame o atual ministério! Quero que estas palavras fiquem gravadas como protesto.
O delírio chega ao auge com as palavras candentes do Andrada. O tumulto engrossa. Nisto, em meio ao alarido, toma-se a deliberação de ir ao senado. Lá, junto com os senadores, os deputados deliberariam.
Antônio Carlos ergue-se. E com tonitruância:
— Quem for patriota e brasileiro, siga comigo para o Senado! Abandonemos esta câmara prostituída!
O povo inteiro, incendiado pela patriotada, tocou a caminho do Senado.
D. PEDRO II
O Senado também se revoltou com o decreto da regência. Novos tumultos e alaridos. Para solucionar a questão, alvitrou-se, enfim, que se mandasse a D. Pedro uma deputação de cinco senadores e três deputados. Antônio Carlos redigiu uma mensagem ao futuro soberano.
A comissão partiu rumo de S. Cristóvão. O herdeiro do trono atendeu-a prontamente. Ouviu a deputação com forte interesse.
Nisto, enquanto os emissários falam, o mordomo-mor, interrompendo-os, vem avisar a D. Pedro que Araújo Lima está no salão contíguo. O regente quer dizer com urgência uma palavra a S. Alteza.
D. Pedro pede licença. Vai ter com o regente. É que Araújo Lima, ao saber da deputação, precipitara-se também à cata do Imperador. E ali, com muita política e jeito:
— Alteza! Mandei adiar as sessões do Congresso, é verdade. Mas não para impedir a maioridade de V. Alteza; nunca! Mandei adiar as sessões somente com este fim: o de preparar, com solenidade, as festas para reconhecimento da maioridade de V. Majestade, a 2 de dezembro. Quer V. Majestade, por acaso, entrar no exercício das suas funções antes disso?
Dizia a tradição da época que o Príncipe respondera ao regente, com firmeza:
— Quero já!
Negou D. Pedro, mais tarde, que houvesse retorquido a Araújo Lima com essa cortante rudeza. Mas isso importa pouco. O fato é que D. Pedro e o regente concordaram ali, sem mais protelação, na medida proposta pelo congresso: a maioridade imediata!
O Príncipe voltou para o salão. Declarou, aos deputados e senadores, a deliberação que havia já tomado com o regente. Foi um júbilo só: o congresso vencera a cartada!
23 DE JULHO DE 1840
A sessão do parlamento foi brilhantíssima. Todos os senadores presentes. Todos os deputados. As galerias atulhadas de povo. E o presidente, de pé, diante da assembleia também de pé:
— Eu, como órgão da representação nacional, em assembleia geral, declaro desde já maior a S. M. I. o Sr. D. Pedro II, e no pleno exercício dos seus direitos constitucionais.
E ao mesmo tempo, com ênfase:
— Viva o Sr. D. Pedro II!
Foi, pela assembleia um viva fragoroso.
IMPERADOR!
Nesse mesmo dia, às três horas da tarde, estrondam à porta do Senado clarins e rufos. Ouve-se o estacar seco de um coche. João Taylor agarra a portinhola. Abre-a. Salta de dentro um moço claro, muito galhardo.
O povo uiva. Há vivas atordoantes. Clarins e tambores não cessam. Um popular, destacando-se, faz, no meio do rebuliço, uma saudação fogosa. O moço entra. Palmas. Músicas. Flores tombando em chuva das galerias.
A comissão condu-lo à mesa da presidência.. Aí, com a mão sobre os evangelhos, D. Pedro, a voz límpida e fresca, presta, diante da assembleia, o juramento protocolar:
— Eu, Pedro II, imperador constitucional do Brasil...
Assim, na sessão memorável, subia ao trono brasileiro aquele adolescente de menos de quinze anos. Era ele, o rapaz desempenado, quem iria, com fulgores únicos, nortear o país por cinquenta anos a fio.
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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