MULHERES NA VIDA DO PATRIARCA
Mulheres na vida do Patriarca? Sim, senhor! Inútil arregalar assim os olhos. É isso mesmo: mulheres na vida de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. Eu sei que a coisa é de melindre. Muita gente não há de querer acreditar-me E com razão!
José Bonifácio, naqueles soltos
desbragamentos do primeiro império, destaca-se nítido pela rija austeridade de
costumes. Não houve tempo de moralidades mais fáceis do que os pitorescos nove
anos de Pedro I. A corte dava um exemplo alto. D. Pedro, enrolado no seu manto
de tucano, enchia o Império com o fragor das suas aventuras picarescas.
No meio daquela estúrdia, nota chocante, surge a personalidade carrancuda do Patriarca. José Bonifácio é a Severidade. É a Intransigência. É a Moralidade. É, numa palavra, a Virtude.
O Imperador e o Patriarca, por isso mesmo, avultam num contraste rudíssimo. A gente sente em D. Pedro o filho de D. Carlota Joaquina, a erótica, a rainha desbragada. A gente sente em José Bonifácio o velho sangue honestíssimo do paulista, o homem pacato, em cuja vida nunca floriu uma pecadora novela de coração.
Mas o velho Andrada, como todos os homens , não teria também a sua hora sentimental? Não teria também o seu caso de amor? Talvez... Talvez tivesse tido, não o seu caso de amor, mas os seus casos de amor. Pois são dois os nomes de mulheres que perpassam, levemente, na vida seca daquele grave homem d'Estado.
* * *
Desterrado do Brasil, José Bonifácio foi viver em França. Asilou-se, pobre e em plena desgraça, numa casota de campo ao pé de Talance. Aí compunha os seus versos. Aí refundia os seus trabalhos notabilíssimos sobre mineralogia. Aí escrevia, quase diariamente, cartas ao seu melhor, ao seu mais certo amigo. Era ele, como toda a gente sabe, o conselheiro Vasconcelos Drummond.
Fora Drummond o diretor do "Tamoio" o famoso, o violentíssimo defensor da Constituinte. Por esse motivo, nem houve nunca outro, D. Pedro também o desterrara.
Drummond instalou-se em Paris. E é em Paris que recebia aquelas preciosas cartas de Talance. Nelas, nesses documentos vivos de intimidade, o Patriarca despia a alma, punha-a nua em frente ao amigo. Que cartas! Fagulham nessas letras as iras do homem público. Fervem aí ironias farpadíssimas. Borbulham os mais causticantes comentários. E acima de tudo, mais do que tudo, andam por elas saudades desesperadoras do Brasil. O assunto predileto é política. Assim: "Hoje revesti-me de resolução estoica e ahi vão estas desconcertadas regras. Principiemos por politica, já que ella nos deve interessar muito, visto o nosso estado..
Não há fato público do Brasil que não receba uma flechada de Talance. Não escapa coisa alguma. Lá vem sempre o veneno:
"Porque sabiria do ministerio o bambo mulato, pesadão e basbaque? Quem ficará afinal com a pasta?"
Ou, então:
"Que novidades ha no Brasil? Como vão e que fazem as Camaras? Que é feito da nomeação dos novos'diplomatas? Só se resolveu confiar o Pedra-Parda em encarregado de negocios e Antonio Telles em levar a Gran-Cruz para o Francisco burro?"
E mais além:
"Ainda não sei da lista dos novos deputados da Provincia. Mas se foram tão bem escolhidos como os do Rio, adeus Imperio! O que valerá é que são poltrões e bestas...”
Quando, a 12 de outubro de 1826, apareceram os célebres decretos de D. Pedro, elevando a altas nobrezas uma chusma de servidores vulgares, veio, entre as mercês, o título de Viscondessa de Santos à senhora D. Domitila de Castro.
José Bonifácio não se conteve. Pulou! Aquilo foi um ferrão de vespa na sua vaidade. E lá desabafou ao amigo:
"Quem julgaria possível que, nas actuaes circumstancias, havería a Gran-Pata por tantos ovos duma vez, como 19 viscontes e 22 barões? Nunca o João pariu tanto na plenitude do poder autocratico! E quem sonharia, então, que a mixella Domitila seria Viscondessa de Santos? Viscondessa da patria dos Andradas! Que insulto mais desmiolado!"
O nome de Domitila vem sempre à tona. Esvoaça impertinente pelas cartas do velho Andrada. O político não perde vasa.
"Bem feito que o Carneiro fallisse em dois milhões e o orangotango Simplicio extorquisse trinta contos... Que faz D. Pedro em tudo isto? Creio que está enfeitiçado pela mãe da Domitila que em S. Paulo sempre passou por bruxa".
Ou então:
"A morte da Imperatriz penalizou-o assaz. Pobre criatura! Mas estes successos devem trazer consequencias ponderosas á Domitila...”
Foi nessas cartas, tão íntimas, onde o velho Andrada se transbordava com encantadora simplicidade, onde vinham à luz as suas zangas de homem d'Estado, onde fervilhavam os seus velhos ódios, que perpassaram, num lampejo fugaz, secreto desafogo de alma, os dois nomes de mulher que talvez enfeitassem por um momento aquela existência de homem virtuoso.
Quem são elas? Uma francesa e uma brasileira. Bonitas? Não sei. Feias? Não sei. Sei apenas que uma foi Mademoiselle Fanchette; a outra Elisa, tutelada de Madame Delaunay.
Mademoiselle Fanchette... É o primeiro nome que extravasa naquelas intimidades. Parece ter sido amizade velha, coisa de mocidade. Vasconcelos Drummond topou a criatura em Paris. Estava infelicíssima. Quase na miséria. E ela, ao que se deduz, falou ainda com quentura do Andrada. Daí o enternecimento do velho, o desejo violento de querer amparar-lhe a desdita. Lá está o tópico:
"Passemos agora a coisas menos eventuaes e enigmaticas. Agradeço-lhe immenso o ter se avistado com a "minha antiga Fanchette". Está muito velha? Não o mostra a imaginação acalorada. Pobrezinha! Eu sou ainda muito sensivel ao amor que me conserva...”
E logo, em outro trecho, muito penalizado:
"Si Fanchette está na miseria, realmente, queira, meu amigo, dar-lhe cem francos e desculpar-me com as minhas acanhadas circumstancias. Verei com o tempo si poderei fazer mais. Dê-lhe mil saudades e deite agua fria na fervura, para que não faça alguma doidice que me inquiete. Seu, muito amigo, Andrada".
Bem se vê, por esses transbordamentos, a afeição que ligava o ermitão de Talance à sua Fanchette.
Há nele sincero desespero em não poder ajudá-la na desdita. Este desespero punge-o. E o Andrada exclama na carta seguinte:
"Passemos á tua carta de 18. A sorte da boa Fanchette que tanto interessou á sua sensibilidade tambem me tem melancolizado muytissimo. Pobre mulher! Porque o meu destino cruel não me ha de permitir mostrar-lhe toda a minha amizade? Socegue, meu amigo, a sua imaginação exaltada e diga-lhe que não creia vir a correspondencia della alterar a bôa harmonia domestica. Não sei qual será o meu futuro! Si poderei voltar ao Brasil ou ir para a outra parte da America; em todo caso, farei todos os esforços para a apertar ainda uma vez nos meus braços..."
Quem era essa Fanchette?
Que há de amoroso neste caso? A correspondência não o diz. Nem mesmo elucidam se José Bonifácio foi a Paris "apertá-la ainda uma vez nos seus braços". Apenas, na carta de 27 de agosto, põe ele a Vasconcelos Drummond uma pergunta ansiada:
"E Fanchette? Recebeu os cem francos?"
A história para aí. O nome da francesinha, naquelas páginas políticas, zune como uma abelha doirada. Zune e passa. E a gente fica imaginando apenas, com surpresa, que houve, na existência do homem carrancudo, uma afeição romanesca. Afeição tão doce, tão macia, que teve o milagroso condão de fazer vibrar, com os seus cabelos brancos, aquele coração de ministro duríssimo.
* * *
Elisa... Quem é? Uma pessoa vaga. Pessoa, no entanto, metida seriamente na vida íntima do Patriarca. Parece, contudo, que há nesta história coisas melindrosas. Uma aventura mais grave, de consequências mais comprometedoras. As referências ao caso são poucas.
Mas vêm com tanto mistério, são tão sibilinas, que embasbacam a gente. Assim, numa carta de 1837, lança José Bonifácio um "post-scriptum". Aí, dentro dum largo parêntesis, em letras grande, isto: "Reservado". Que será? Logo, com a imaginação esporeada, a gente corre a ver que diabo será esse "reservado". E dá com isto:
"Queira mandar esta a Madame Delaunay e procure ver com attenção a uma senhora que foi com ella visital-o cuja idade é de trinta e quatro annos e se chama Elisa. Veja se tem as feições que se pareçam com as minhas, ou com as de minha familia. Mas tudo isto deve ser feito com dissimulação e melindre". Offereça de minha parte a Madame Delaunay cem francos, que tudo será embolsado quando cá chegar".
Eis um reservado beliscante. José Bonifácio manda dar dinheiro a uma senhora e ao mesmo tempo manda analisar, com disfarce e melindre, as feições de uma tal Elisa moça que vive com essa senhora a fim de verificar se esta moça tem "as feições dele, José Bonifácio, ou as de sua família"... Que mistério é esse? Que significa isto? Será que o Patriarca tinha uma filha bastarda? Impossível dizer.
O próprio Vasconcelos Drummond não conseguiu, por carta, uma elucidação do mistério. O Patriarca só pôde responder-lhe:
"O negocio, meu amigo, é delicado; e o romance muitissimo complicado".
No entanto, a fim de bem estudar as feições de Elisa, insistia com o amigo:
"Traga-me o retrato de Elisa. Quero vel-o! £ um retrato que madame Delaunay prometteu enviar-me".
Eis que, nesse ínterim, chegam a Talance certas cartas, de que o Patriarca logo manda notícia a Vasconcelos Drummond:
"Recebi uma carta da Delaunay. Recebi, tambem, outra de Elisa. A de Elisa é muito bem escripta e com muita ternura e sizo. Diga-lhes que espero, apenas, pela chegada de V. Mercê para responder-lhes melhor".
As mulheres, porém, não esperaram a resposta. Meteram-se no comboio e tocaram para Talance. Aboletaram-se nos arredores da terreola. Deixaram-se ficar longo tempo ao lado do Patriarca. E ele escrevia a Drummond:
"Diga-me aqui: como vae de amores? E a proposito: cá veio ter madame Delaunay e aqui está ha perto de um mez. Porém eu tenho guardado silencio absoluto sobre o romance de Elisa"...
Eis tudo. Ninguém mais penetrou nas intimidades dessa aventura.
Vasconcelos Drummond não recebeu, por escrito, uma única linha esclarecedora. Talvez o amigo só viesse a saber dos detalhes dessa novela em Talance. E isto naquele dia em que o velho Andrada, muito bem humorado, mandou-lhe um convite para comerem juntos, em amorável tête-a-tête, o tutu de feijão dos nossos avós. O convite dizia graciosamente:
"Nhonhô Antonio:
Eu fico hoje sosinho. Si mecê, meu sinhozinho de França, prefere comer pirão e feijão com toicinho, aos quitutes do grandissimo senhor dom Luiz de las Panreas, cá o espero; sinão Deus ajude a Mecê.
Seu moleque, ANDRADA".
Nesse jantar, tão brasileiro, comido no exílio, num cantinho ignorado da França, de certo José Bonifácio narrou ao amigo o romance complicado da Delaunay. O Conselheiro Drummond, diante de tutu de feijão, de certo ter-se-ia inteirado das razões por que o Patriarca tanto ansiava saber se Elisa tinha parecença com ele ou parecença com gente de sua família. Mas Vasconcelos Drummond, se ouviu a confidência, foi a única pessoa que soube do romance. A posteridade não conseguiu desvendar o mistério. Ficou, apenas, conhecendo essa obscura página romântica da vida do Patriarca.
E quem diria que o Patriarca, na
sua vida, tivesse tido páginas românticas?
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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