4/20/2025

D. Maria I, a Louca (Conto histórico), de Paulo Setúbal

D. MARIA I, A LOUCA

Não houve ainda, na história pitoresca de Portugal, página mais bufa, e, ao mesmo tempo, mais dolorosa do que a fuga de D. João VI para o Brasil. A corte e a fidalguia, em vinte e quatro horas, embarcaram atropeladas para a América. Foi, nessas escassas horas, um empacotar o cetro, um encaixotar a coroa, um entupir velhas arcas de ouros e pratas, um ajuntar as joias e os móveis, meter tudo isso em ombros de negros, mandar às correrias para o cais de Belém, onde balouçavam, impacientes, as fragatas inglesas.

Era noite. Chovia.

A multidão, sob o temporal, atulhava a praia. E vaiava garotamente os fujões. E gritava. E arremessava punhados negros de tijuco. D. Maria I, a louca, veio para o Brasil nessa hora pungente. Oliveira Martins, pintou, numa das suas páginas maiores, e mais candentes, o grotesco desse embarque. Lá remata:

"D. João e D. Pedro Carlos chegaram ao caes de carruagem, sós. Ninguem dava por elles. Cada qual cuidava de si e tratava de escapar. Dois soldados de pollicia levaram-n'os ao collo para o escaller. Depois, veiu noutro coche a princeza Carlota Joaquina, com os filhos. Por fim D. Maria I, a rainha, cuja loucura proferia com juizo brados de desespero, altos gritos de raiva, debatendo-se, os olhos vermelhos de sangue, a bocca cheia de espuma. O protesto da louca era o unico vislumbre de vida: pois o brio, a força, a dignidade portugueza acabavam alli nos labios ardentes de um rainha doida...”

Assim, no momento do pânico, ante o estrépito fragoroso das armas de Junot, partia para a América, aos berros, bracejando, aquela rainha louca, a primeira cabeça coroada que ia pisar terras brasileiras.


A LOUCURA

D. Maria I enlouquecera em 1792. Fora mulher altamente formosa. Mas que rainha inditosa! Despedaçaram--lhe a vida calamidades fulminantes. Duas, pela rudeza, desmoronaram-lhe a razão: a morte do marido, que ela amava com violência, e a morte do filho primogênito, D. José, o herdeiro do trono, que era a sua paixão, o comovido enternecimento da sua viuvez. Desde então, desde que se despregou, arrancada, do ataúde do filho, a rainha desgraçada não resistiu à dor. Endoideceu. E mesmo na loucura, dentro da desgraça arrasante, o destino não a poupou, escorraçou-a da pátria. Escorraçou-a sob vaias achincalhadoras!

A travessia exasperou-lhe ainda mais a demência. Durante a viagem, encarcerada no beliche, uivava coisas lúgubres. As mesmas coisas obsidentes:

Vou para o inferno! Levam-me para o inferno! Olhem o diabo! Olhem o diabo!

Confrangedor o uivar da louca! Aquilo, na vastidão desolante das águas atlânticas, era como um punhal no coração dos que fugiam...


A VIDA NO PAÇO

A vida de D. Maria, no Brasil, não teve incidentes maiores. Que pode haver de curioso na vida de uma doida? Nada! Mas o cronista deixou-nos, com saborosa ingenuidade, as etiquetas protocolares que circundavam o viver íntimo da Rainha. Elas têm o pitoresco de uma reportagem viva nos corredores de S. Cristóvão. Já que os hábitos dos reis e príncipes (com o príncipe Carol à frente) interessam tanto a curiosidade pública, certamente há de também interessar a existência dessa nossa Rainha, que tanto tempo viveu louca no Brasil. Eis um trecho perdido na Crônica Geral:

"A rainha D. Maria I acordava ás oito da manhan. As camareiras vestiam-na. Traziam-lhe o almoço. Depois do almoço, assentava-se no canapé. A maior parte das vezes deixava-se ahi ficar sem dizer uma unica palavra".

"Assim, sentada no canapé, esperava a visita de D. João e de D. Carlota Joaquina. (A rainha não gostava de D. Carlota). O filho ajoelhava-se para beijar-lhe a mão; mas a nora, muito orgulhosa, beijava-lhe a mão em pé. Perguntava-lhe simplesmente:

Como passa Vossa Majestade?

Ao que a Rainha respondia:

Mal.

"D. Carlota Joaquina assentava-se immediatamente. Não esperava que a rainha lh'o ordenasse, pois a sogra não o fazia nunca. Era costume de D. Maria I não mandar ninguem sentar-se em sua presença, nem mesmo as suas irmans".

"A conversação com a rainha era sobre chuva ou sol. Essa conversação não excedia de vinte minutos. D. Carlota, em seguida, retirava-se. Á noite lá não ia. E quando morava fora do Paço da cidade, só vinha cumprimentar a sogra nos dias de corte".

"As netas iam beijar as mãos da rainha pela manhan e á noite. Iam todas juntas. D. Maria I não dava uma só palavra ás netas. E só fallava:

Que vêm fazer aqui estes cupidinhos?

Ou então:

Para que trazem cá estas pequenas?

"Mas a rainha tinha inexplicáveis ternuras para com o príncipe D. Pedro. Quando este se ajoelhava para beijar-lhe as mãos, ella coçava-lhe a cabeça, esfregava-lhe os cabellos, e dizia muito doce:

Para este ha de ser a minha coroa!"


OS PASSEIOS DA LOUCA

D. Maria I tinha velho hábito, que jamais abandonou: saía todas as tardes passear de carruagem. Carregavam-na em cadeirinha até a sege. Vinha ela vestida de seda negra, "xale de cor honesta", cabelos sol tos nas costas. Ao sair, tapando o rosto com o leque, exclamava para a Joaninha, que ia ao lado:

Vou para o inferno! Estou no inferno! Não quero que o diabo me veja...

Andava sempre numa carruagem muito dourada, com ricas pinturas na portinhola. Levava dois moços de estribeira, vários lacaios, todos vestidos como os de D. João. Levava mais dois cadetes batedores e um homem montado na garupa de um burro. Este homem segurava, no arção da sela, um "degrau" coberto de pano encarnado. Era costume, então, ir um homem com o "degrau" para as senhoras entrarem na carruagem ou montarem a cavalo. Nenhuma saía de sege que não levasse o seu degrau. Seguia-se o moço que carregava a frasqueira de água. Depois o criado particular. Finalmente o capitão da guarda.

Vinha em seguida uma "sege de boleia". Nela, um camarista. Este camarista foi, no começo, o velho marquês de Anjeja. Depois, no seu impedimento, o marquês de Belas que a acompanhou até o falecimento.

O passeio da Rainha era até a rua de São Cristóvão. Aí parava tudo. E, sem dizer palavra, o extravagante séquito não se movia até as Ave-Marias. Conta o cronista:

"Toda a gente que passava na rua, a pé, curvava o joelho. Se passava a cavallo ou de sege, apeava-se e curvava o joelho. D. João e os filhos, quando encontravam a rainha, apeavam-se e iam fallar-lhe à portinholla. A rainha estendia a mão para elles beijarem; e ao filho murmurava:

Vou para o inferno"


AS CAMAREIRAS

Tarefa terrível o ser camareira da louca! D. Maria, às vezes, enfurecia-se. Então, no Paço, era um Deus nos acuda! A doida bracejava, urrava, arremessava os pratos, dizia nomes horrendos, dava bofetadas nas camareiras. Muitas damas retiraram-se do serviço sob pretexto de doença. Mas era só pretexto. Não queriam elas expor-se às pancadas da rainha. Conservou-se fiel a D. Maria uma única camareira: D. Joana Rita de Lacerda. Era esta que a demente chamava afetuosamente de "Joaninha". D. Joana fazia-lhe companhia o dia todo; mas a dona da câmara, oficialmente, fora sempre a sua irmã, D. Margarida Sofia de Castello Branco, mãe de D. Francisca de Castello Branco, Viscondessa de Itaguaí, a grande amiga e confidente de D. Leopoldina.

D. Joana Rita teve mercês altíssimas. D. João VI agraciou-a com o título de Baronesa e depois com o de Viscondessa do Real Agrado. Como D. Joana não tivesse fortuna própria, mimoseou-a com bela fazenda de gado no Rio Grande do Sul.

Deu-lhe mais gorda tença no erário público. Depois da morte da louca, D. João VI ajuntou-lhe aos títulos de fidalguia as honras de "grandeza". Galanteou-a, ainda mais, com carruagens do Paço para o seu serviço. D. Carlota Joaquina, por embasbacante gentileza, galardoou-a também com a ordem de Santa Isabel.


20 DE MARÇO DE 1816

A 20 de março de 1816 morreu enfim a louca. Tinha pouco mais de oitenta anos. Meteram-na numa túnica de seda branca, envolveram-na no manto real, adornaram-na com os fitões de todas as suas ordens. Assim, enfeitada, expuseram-na durante três dias na sala mortuária, para que todo o mundo a visse. Encerraram-na, ao fim dos três dias, nos três caixões do estilo. Empurraram, sobre rolos, até o coche real, o riquíssimo esquife. Seguia-o, conforme a etiqueta, "a dama mais nova do Paço, com uma palmatoria na mão e uma vella de cera amarella na outra".

D. Maria I foi sepultada no convento da Ajuda. D. João VI decretou luto oficial o mais rigoroso: "Seis mezes de vestimenta de lan e outros seis mezes de seda. Nem mesmo nos dias de galla se tirou o lutto; e isto foi caso novo, pois o lutto dos reis, em dia de galla não tem logar":

* * *

Enfim, as coisas públicas tomaram rumo inédito. A revolução portuguesa forçou D. João VI a abandonar o país amado, onde comera, durante anos, pacatamente, os seus três franguinhos no almoço e os seus três franguinhos no jantar. Mas o filho piedoso não quis deixar a mãe na terra longínqua. Mandou equipar bela nau, forrou-a de negro, armou na câmara de honra eça grandiosa. Aí, entre vastos tocheiros, depositou o cadáver embalsamado da Rainha. Círios arderam sem cessar. Grave bando de cortesãos velou aquele fúnebre retorno à pátria.

Lá estava, entre eles, muito solene, cabelos brancos, o velho Marquês de Belas, devotado camareiro, amigo certo da defunta. Lá estava, também, desolada e olheirosa, nos seus gorgorões pretos, a antiga "Joaninha", a senhora Viscondessa do Real Agrado. Eram, naquele enterro flutuante, as duas únicas dores vivas que seguiam o corpo da louca.

 
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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