4/20/2025

Uma aventura do Imperador (Conto histórico), de Paulo Setúbal


UMA AVENTURA DO IMPERADOR 

Contam-se de D. Pedro I as aventuras mais picarescas.

O fundador do Império avulta aos olhos dos pósteros como príncipe de novela, sempre enredado em amores, perdidamente fascinado por todas as mulheres bonitas do seu tempo. Tão derramada andava a sua fama de milhafre que, no dizer do cônsul Gestas, era para as senhoras casadas, e formosas, arriscadíssima temeridade o frequentarem o Paço.

D. Pedro cometia doidices sem conta. Não se contentava com as noitadas folionas ao lado da Ludovina, famosa atriz que enlouquecera a rapaziada guapa do tempo. Nem lhe bastavam os amores fáceis da Noemi ou da Saissait.

D. Pedro metia-se nas famílias. Teve o desplante de cortejar desabridamente a filha do armador João Ciríaco. Ia à casa do homem todos os dias. Enchia a moça de presentes. Transbordava-se num galantear afrontoso.

João Ciríaco era homem com quem não se brincava. Homem de grande brio. Muito cioso da reputação de sua casa. Certo dia, ao entrar o Imperador, convidou-o João Ciríaco para merendar. D. Pedro aceitou.

Foram-se para a sala de jantar. Na mesa, galantemente disposta, havia larga bandeja de frutas. Ao lado, cravado com acinte, um punhal. A arma rebriIhava, chocante. D. Pedro reparou naquilo:

Para que é esse punhal, João Ciríaco?

Para espetar nele, majestade, quem tentar desonrar a minha casa.

O olhar do homem fuzilava. A sua voz tinha estranha tonalidade. D. Pedro compreendeu o aviso. Nunca mais apareceu em casa do João Ciríaco.

Mas a lição não bastou. Outras, e sérias, recebeu o Imperador naqueles curiosos nove anos de reinado. Diziam até  muitos cronistas o apregoam que D. Pedro, pilhado numa aventura, levara tremendíssima roda-de-pau. Difícil acreditar-se que a coisa tenha chegado a extremo assim tão violento. Mas que fazer? É o que dizem os mexericos.

O caso deu-se com a Condessa de Belmonte. Não passa ele de tradição. Tradição que vem de longe, é verdade, mas sem nenhum documento digno em que se apóie.

Vou trasladá-lo para aqui, tal como o narram as más línguas.

* * *

D. Mariana Carlota Verna de Magalhães era a mulher daquele Verna de Magalhães, conde de Belmonte, que viera de Portugal com a fuga de D. João VI. Tiveram ambos, na corte do Rei bonacheirão, destaque brilhante. Verna de Magalhães pertencia àquela velha escola de cortesãos rigidamente protocolares. Não é de admirar, portanto, ter sido a etiqueta que o matasse.

Como? Muito simplesmente.

Rezava-se, certa vez, grande missa em ação de graças pelo restabelecimento de D. Pedro, já então Imperador. Verna de Magalhães ardia em febre. Mas o cortesão, ao saber da missa, não vacilou: ergueu-se, meteu a casaca de riço verde, espremeu o pescoço num colarinho de palmo, tocou-se para a igreja, pôs-se a assistir à missa. Estavam no momento mais grave. O Padre erguia o cálice. Todos ajoelhados. Todos numa severa compunção.

Eis que, de repente, estronda áspero baque. O povo alvoroça-se. Que foi? Isto: Verna de Magalhães desabara no lajedo. E desabara por quê? Fulminado por súbita apoplexia cerebral.

Está visto que D. Pedro, desde esse desastre, tomou sob a sua alta proteção a viúva do cortesão perfeito. 

A senhora Verna de Magalhães, condessa de Belmonte, passou a ter na corte de D. Pedro I o mesmo relevo fúlgido que tivera na corte de D. João VI. Ora...

* * *

Acontecia que a condessa era linda. Lindíssima! Todos os contemporâneos trombeteiam a boniteza dela. Diziam, sem discrepar, que era a mulher mais fascinante da corte. O retrato que dela existe prova-o com brados largos. D. Mariana Carlota, não há dúvida, deslumbrava.

Tinha, para enlouquecer os homens, mais do que o ser bela, a fama de ser absolutamente séria.

D. Pedro cobiçou-a. Para D. Pedro, quando cobiçava uma mulher, não havia estorvos. A história com ele era sumária: ver e realizar.

Assim, em certo beija-mão, no Paço, o Imperador disse num cochicho para a condessa:

Amanhã, pelas duas horas, Vossa Mercê trate de me esperar. Vou visitá-la. E vou só.

D. Mariana Carlota, muito surpresa:

Imensa honra, Majestade!

No outro dia, seriam duas horas, estacou a sege imperial em frente à casa de D. Mariana. D. Pedro saltou. A lindíssima condessa recebeu, na sala-de-fora, o imperial visitante.

D. Pedro não teve panos quentes. Foi explicando logo ao que vinha. Disse a coisa com todas as letras. D. Mariana franziu o cenho:

V. Majestade enganou-se! Eu não sou dessas...

A recusa era de somenos. D. Pedro não se perturbou. Ergueu-se. Avançou para a dama. E tentando enlaçá-la:

Meu amor!

A condessa de Belmonte afastou-se, rápida.

Majestade!

D. Pedro deu um passo. Ia agarrá-la. Nesse instante, escancarando a porta, surgem dois homens. Vêm armados de grossos porretes de caviúna. E...

Dizem que desandaram no Imperador uma sova de mestre!

Será certo? Não é de crer-se. O desfecho parece demasiadamente brutal. O verossímil é que a ousadia de D. Pedro arrefecesse com a entrada dos dois homens. Parou aí, por certo.

Fato é, porém, que D. Pedro desapontou. Pôde ele gabar-se de haver vencido todas as mulheres que quis. Mas não venceu uma: a condessa de Belmonte!

 * * *

Qual foi o resultado dessa recusa? D. Mariana Carlota retirou-se do Paço. Começou a viver na sua chácara, arredada. Vivia sem amigos, ferida de morte pela desvalia imperial. Todos a evitavam. Verdadeiro desterro.

A condessa, no entanto, suportou com alegria o desfavor. Teve até orgulho da sua solidão. Rejubilava-se do seu ermo.

Ninguém mais na corte ouviu falar dela. A beleza espantosa, a grande beleza do primeiro Império, morreu para as galas e para vida.

Mas o mundo dá volta. Certo dia, sacudindo a corte, reboou a notícia aterradora: morreu a Imperatriz! Deixava D. Leopoldina vários filhos pequeninos. E, sobretudo, deixava uma criancinha de apenas um ano. Era um bebê delicioso, rechonchudo. Era o príncipe herdeiro.

D. Pedro, na sua desolação, correu os olhos pelas senhoras da corte. Tinha necessidade de colocar no Paço alguém que servisse de mãe àquele pequerrucho. Alguém que formasse o coração do futuro Imperador. Quem haveria de ser? Quem, naquela corte de costumes fáceis, podia ter, pelas suas virtudes essa honra suprema?

D. Pedro não titubeou. Havia, capaz para posto tão dignificante, uma pessoa só: a condessa de Belmonte. O Imperador, em pessoa, foi buscá-la no seu exílio.

Instalou-a em São Cristóvão. Cobriu-a de honras. Entregou-lhe a formação do seu filho, o herdeiro do seu trono, o seu enlevo. D. Mariana Carlota tomou conta do príncipe. Foi a preceptora dele. Como educou o menino, como formou aquele coraçãozinho implume, aí está na história, para respondê-lo, o vulto soberanamente inconfundível de D. Pedro II. De tal preceptora, saiu tal pupilo. Não é preciso dizer mais.

* * *

Assim terminou a aventura do Imperador. E digam agora se D. Pedro I, mesmo nas estroinices, foi ou não um tipo simpático?


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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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