Viu o Rio de Janeiro, em 1816, a solenidade mais estrepitosa que já se fizera no Brasil: a coroação de D. João VI e de D. Carlota Joaquina. O famoso Rei bonacheirão, por famoso decreto, havia guindado a colônia às culminâncias de Reino. Nivelara o Brasil a Portugal. Por isso, ao se coroarem, D. João VI e D. Carlota Joaquina tomaram o título de "Reis de Portugal, DO BRASIL e dos Algarves".
D. Carlota Joaquina, a espanhola de renome tristíssimo, foi, de fato, a primeira rainha do Brasil. Ainda mais: a primeira rainha europeia que se coroou na América.
Ainda não se sentou em trono, nos tempos modernos, senhora tão desbragada de vida como a mulher de D. João VI. A reputação que ela deixou, largamente comprovada por depoimentos sérios, é mais do que comprometedora: é tremendamente negra. Como política, ferretoada por ambições desesperadoras, não fez outra coisa senão conspirar. Conspirou várias vezes, e, tenebrosamente, contra o marido. Conspirou, às escâncaras, com odienta tenacidade, contra o filho D. Pedro.
Foi-se-lhe o viver inteiro, sem descanso, trama de intrigas, sutil urdidura de revoltas, trevoso maquinar de perfídias.
Por curioso contraste, contraste sarcástico do destino, essa mulher masculinizada, que vivia da luta e para a luta, foi casada com o homem mais parado, o tipo mais molengo, o mais água morna do seu tempo.
Debalde o Sr. Oliveira Lima, com esforços ciclópicos, tentou fazer do pobre Rei fujão uma personalidade alta, de visão rasgada na coisa pública. A gente, ao estudar-lhe a figura, essa figura estagnada de burguês comilão, traz dos documentos a certeza de que ele foi, na vida, o que o povo chistosamente, coloridamente denomina: um banana. Não há, por isso, pincelada mais certa para fixar a pasmaceira daquele gordo bragança do que a trova das peixeiras de Lisboa:
Nós temos um Rei
Chamado João;
Faz o que lhe mandam,
Come o que lhe dão.
Que fazes, oh João?
"Faço o que me mandam,
Como o que me dão...”
D. Carlota Joaquina não se entendeu jamais com D. João VI. Foram desencontrados em tudo. Dois temperamentos que uivavam de estarem juntos. Nem sequer, para atrair o Rei, tinha a espanhola feitiços de mulher.
D. Carlota era horrenda! Todos os que a viram, sem exceção, deixaram dela um retrato amedrontador. A Duquesa de Abrantes, nos seus Souvenirs d'une ambassade et d'un séjour en Espagne et en Portugal, diz:
O RETRATO DA RAINHA
"Os olhos eram pequenos, desiguaes, duma expressão má e zombeteira. O nariz quasi sempre inchado e vermelho. A bocca, guarnecida de maus dentes, uns ennegrecidos, outros amarellos, dispostos obliquamente. A pelle, aspera e curtida. Para cumullo de feiura, tinha sempre espinhas em supuração. Os braços, que usava nús, eram chatos, ossudos e, acima de tudo, muito cabelludos...”
Esta
mulher, assim feia, tinha quenturas eróticas no sangue. Febre de amar
incendiou-a com labaredas furiosas. As suas aventuras andaram de boca em boca. Não
foi só o fidalgo e fascinante Marquês de Marialva, como afirma Alberto
Pimentel, o herói dos seus romances. As gulas amorosas da rainha desciam muitíssimo
mais abaixo. Não há quem não saiba das ternuras grotescas da rainha para com o
seu cocheiro, O SANTOS. Não há quem não saiba das suas estroinices com o
caseiro da QUINTA DO RAMALHÃO.
Afirmam graves cronistas que o próprio D. Miguel não era filho de D. João VI. O Sr. Faustino da Fonseca, no seu livro, EL-REI D. MIGUEL, recolheu as modas trocistas do tempo:
Miguel não é filho
Del Rei D. João!
E filho do João dos Santos
Da quinta do Ramalhão.
D. CARLOTA E D. JOÃO VI
Nunca os reis sequer mascararam as suas antipatias recíprocas. Basta dizer que, em 1816, quando as tropas vindas de Portugal aquartelaram na Praia Grande, em Niterói, o casal foi passar uma temporada na cidadela.
D. João instalou-se na casa de Tomaz Soares; D. Carlota, na casa da esquina, junto ao Largo de S. Domingos.
A estação tornou-se de alta elegância. Os tafuis do Rio entupiram a Praia Grande. Havia toda a noite bailes de estrondo. Os oficiais portugueses eram freneticamente amados por donas e raparigas.
Todo o mundo, como se compreende, tinha os olhos cravados na corte. Os reis, porém, bem pouco se importavam com o público. Ostentavam eles, com acinte, abertamente, as suas incompatibilidades. O cronista brasileiro narra aquela vida de praia assim:
"D. Carlota ia á casa do marido pela manhan, com as filhas. Á tarde ia assistir aos exercicios da tropa. D. João tambem. Mas D. João ia numa carruagem; D. Carlota ia em outra. O Rei assistia aos exercicios sentado na sua sege; D. Carlota assistia-os de uma barraca. Ninguem nunca os via juntos".
Bem se imagina o que de cochichos não arrancava esse viver estranho! Ferviam as murmurações. Mas os dois mantinham inalteráveis essas friezas mútuas.
Em público, era assim. E na vida privada, então? Não se toleraram nunca. Eis o que diz a crônica:
VIDA INTIMA
"D. Carlota, quando o marido estava de saude, não passava da ante camara, porque elle não a admittia ao pé de si. Porem, quando o Rei estava enfermo, entrava no quarto com as filhas. Mas isto na presença de todas as pessoas que lá se achavam. Nunca ninguem os viu a sós. Elle a aborrecia. Só jantaram juntos quando se casou o filho D. Pedro e quando houve as festas reaes do casamento da filha Maria Thereza. Em carruagem, tambem só andaram juntos no dia do casamento do filho e no dia das festas reaes, porque o protocollo os obrigava a ir juntos no coche real".
"Si D. Carlota adoecia, D. João não a visitava. Quando estiveram em Santa Cruz por occasião da molléstia do Rei, ella foi para a fazenda. Mas, ahi, dormia em um quarto separado, com as filhas. Viviam assim sem se ver, de quarto absollutamente separado, tanto na fazenda como na cidade".
D. CARLOTA E O BRASIL
Não teve ainda esta nossa pobre, inofensiva terra de papagaios detratora tão azeda e tão feroz como D. Carlota Joaquina.
Não deu ela um passo a favor do Brasil. Ao contrário! Opôs-se a tudo que fosse melhoramento "à terra dos mosquitos e dos carrapatos". Combateu, com cerradas intrigas, a elevação do Brasil a Reino.
Fez tudo quanto pôde para conservar a colônia sempre colônia. Desesperava de morar aqui. Doía-lhe fundamente o ter de suportar o desterro na América.
Quando a corte voltou para Lisboa, D. Carlota exultou. Foi fragorosa a alegria da rainha. Há frases suas que chegaram até nós. Marcam elas, bem frisante, o ódio da espanhola ingrata contra o país acolhedor que a recebeu no instante da desgraça. Do país que a agasalhou com ternuras e regozijos altos. Lá conta o velho Mello Moraes:
"D. Carlota Joaquina, no dia da partida, parecia andar endiabrada. Gritava no Paço: gritava em toda a parte. Dizia sem cessar:
— "Vou ficar cega quando chegar em Lisboa! Pudera! Vivi treze annos no escuro, só vendo negros..."
Ao chegar a Lisboa, afirmam todos, arremessou ao Tejo os sapatos que levava do Rio; e isto porque "não queria pisar em terra de brancos com sapatos que vinham de terra de negros!"
Espanhola de má língua! Esquecia-se que foi aqui, na terra dos negros, que ela se livrou da fúria de Bonaparte. Esquecia-se que, por se ter asilado aqui, foi que o marido conservou aquela trepidante coroa que lhe resvalava da cabeça. Isso mesmo apregoava o próprio Bonaparte, lá de Sta. Helena, quando exclamava:
— Aquele tratante, fugindo para o Brasil, foi o único que me escapou!
NA TERRA DOS NEGROS
Aqui, no entanto, na terra dos negros, a desregrada rainha viveu uma das suas mais escandalosas aventuras de amor. Não há memória do tempo que não relate a maluquice.
Foi o caso que D. Carlota se enamorou fortemente de certo rapagão, sólido e guapo, trinta anos, desempenado e galhardo como poucos.
Era Fernando Carneiro Leão.
Aquele mesmo que, com D. Pedro I, foi moço-de-câmara e conde S. José.
A rainha fez loucuras pelo moço. Mas Fernando Carneiro Leão era casado e tinha mulher ciumenta. A mulher, D. Gertrudes Pedra, enfureceu-se. Disse coisas tremendas contra D. Carlota. Não houve impropérios, por mais nus, que o ciúme não fizesse espumejar na boca da enganada. A rainha soube daquelas iras. O seu orgulho, evidentemente, não sofreu o ser assim violentamente ultrajada por uma lherinha.
UM DIA...
Um dia, era a festa dos Ourives. D. Gertrudes vinha de carruagem para a sua câmara. Chegou. Apeou-se. Despediu o cocheiro. Ia subindo as escadas quando, das árvores, estrondou súbito disparo de trabuco. D. Gertrudes desabou no chão: o tiro varara-a de lado a lado.
Que foi? Que não foi? D. João ordenou ao desembargador Albano Fragoso uma devassa enérgica. Os beleguins saíram a farejar. Deram logo na pista. Foi preso o famoso capoeira Joaquim Inácio da Costa Orelha. Ouviram-se testemunhas. Correu a coisa muitíssimo arrochada. Afinal, depois de tudo deslindado, o desembargador foi procurar o Rei.
ORDENO QUE FALE
D. João fê-lo entrar. E logo:
— Que apurou, desembargador?
—Senhor! Como juiz, sei quem mandou matar a D. Gertrudes, mulher de Fernando Carneiro Leão. As peças do processo não deixam dúvida.
— Muito bem. Então?
—Como homem, Majestade, eu não sei!
D. João intrigou-se. Determinou:
— Ordeno que fale!
— Vossa Majestade ordena-me. Não tenho que discutir. Cumpro as ordens de V. Majestade: foi a Rainha, minha senhora quem mandou o mulato Corta-Orelha assassinar a D. Gertrudes. Vossa Majestade poderá constatá-lo neste processo...
Lá remata o cronista:
"D. João, aturdido com o que ouviu da bocca do desembargador José Albano Fragoso, disse ao juiz: "Convem que desappareça, para sempre, mais este escandallo de minha mulher.
Tomou do processo, leu-o e mandou queimar a papellada. Nunca mais se fallou em juizo deste cirme".
* * *
Eis aí pequena amostra da rainha anormal. Foi esta, por acerba ironia da história, a nossa primeira rainha. Ninguém, de tão alto, deu ainda exemplos mais desbragados. Não admira, pois, que ao depois surgisse na corte o caso da Marquesa de Santos.
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Um projeto de:
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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