Riquíssimo e honrado mercador do
Oriente, chamado Abdenos, tinha três filhas formosíssimas. Infelizmente as duas
mais velhas não aliavam a bondade à beleza eram más,, astuciosas, dissimuladas
e invejosas.
Em compensação a mais nova tão
bonita que a chamavam Bela — era um anjinho e por isso mesmo as irmãs mais
velhas não podiam vê-la. Como o pai a estimava muito, limitavam-se apenas a
contrariá-la, no que podiam, e a mal interpretar todas as ações da pobre
menina.
Um dia o mercador teve necessidade
de fazer uma viagem, para tratar de negócios importantes. Na ocasião em que se
despedia das filhas, perguntou-lhes se tinha desejo que lhes trouxesse alguma
coisa.
As duas mais velhas, que já
esperavam a pergunta, fizeram-lhe mil pedidos, joias, rendas e outros objetos
da mesma natureza.
Como Bela nada pedisse, o mercador
perguntou-lhe se não tinha desejo algum.
— Eu, meu pai — respondeu a gentil
menina, — que hei de desejar?... Nada me falta.
Abdenos insistiu. Bela não sabia o
que havia de pedir, só para contentar o pai, porque na verdade, nada desejava.
Um flor que tinha na mão lembrou-lhe um meio de sair da dificuldade.
— Traga-me uma rosa, papá — disse
por fim.
O mercador fez a viagem sem
novidade, e depois de concluir os negócios, pôs-se a caminho para casa, montado
num magnífico cavalo.
Ao cair da noite do primeiro dia de
marcha, sobreveio terrível tempestade, que lhe fez com que se perdesse no
bosque.
Galopou, durante algum tempo, por
uma estrada que se estreitava cada vez mais, na qual os calhaus, que a
princípio tornavam o passo um pouco incômodo, eram substituídos por grandes
penedos, dificilmente transpostos pela alimária, constituindo sério perigo para
o cavaleiro, que podia ser cuspido da sela e esmigalhado.
As árvores descarnadas, que orlavam
a estrada, tomavam estranho aspecto, figurando seres fantásticos, cujos braços
pareciam querer dilacerar o temerário que se embrenhara na terrível estrada, e
obstar a que continuasse a avançar.
A estrada, que ia pouco a pouco
estreitando, por fim terminara.
Abdenos, aterrado, incitava o
cavalo, que galopava, transpondo com prodigiosos saltos os grandes penedos. A
estrada, que ia pouco a pouco estreitando, por fim terminara.
De repente, em um daqueles saltos o
terreno faltou-lhe subitamente debaixo dos pés, e o animal precipitou-se num
profundo abismo.
O mercador, vendo a morte ante seus
olhos, e lembrando-se das filhas, principalmente da mais nova, a mais querida,
soltou um grito angustioso, dizendo:
— Adeus Bela!
No momento em que pronunciava estas
palavras, um ramo susteve-o no ar, e o pobre velho, meio louco de terror,
viu-se salvo.
Achava-se quase no fundo dum
abismo, profundíssimo. Passado o primeiro momento de estupefação, começou a
trepar pela parede do abismo, onde as enormes rochas formavam uma espécie de
escada. Nunca poderia subir aqueles imensos degraus. Mil e mil vezes teria
caído, se os ramos das árvores o não ajudassem e amparassem.
Quando chegou à parte superior,
ficou deslumbrado com a formosa cena que tinha ante os olhos.
As sombras da noite tinham sido
substituídas por suave claridade; o caminho aparecia de novo liso, igual,
coberto de dourada areia que cintilava. As horrendas árvores cediam lugar a
formosos arbustos cobertos de mimosíssimas e variadas flores, que embalsamavam
o ar. No fim da extensa aleia de esfinges via-se um palácio cujas portas
estavam abertas de par em par. Entrou.
Na porta de uma das salas estava
escrito o seu nome. Abdenos, surpreendido, viu-se numa sala de banho. Fez as
suas abluções, mudou de roupa e passou à sala imediata, onde viu uma mesa
luxuosamente, posta, mas com um só talher.
O mercador sentou-se. Quando
acabava de se servir de um prato, este desaparecia, sendo instantaneamente
substituído por outro. Abdenos notou que lhe eram servidas as suas comidas e
vinhos prediletos. Terminando, foi visitar o palácio. Estava já fatigado,
quando se lhe deparou um quarto, onde havia uma cama feita. Deitou-se, e não
tardou em adormecer profundamente, prostrado pela fadiga e pelas emoções por
que passara.
Acordou no dia seguinte, ao romper
do dia. Depois de se vestir e de orar, passou à sala onde encontrou o almoço na
mesa.
Após o almoço, erguendo-se, disse
em voz alta:
— Quem quer que sejas, a quem devo tão generosa hospitalidade, recebe os meus sinceros agradecimentos. Bendito sejas.
E seguindo o caminho que na véspera percorrera, saiu do palácio.
À vista dos jardins, lembrou-se do
pedido de Bela. Andou em busca da mais formosa roseira e vendo uma que lhe
agradou, escolheu a mais bela.
Quando cortou a haste, que ficou a
gotejar sangue, ouviu um sentido gemido e uma voz que na espessura dizia:
— Ah! ingrato! Assim pagas a
hospitalidade que te dei!
O mercador, surpreendido, ergueu os
olhos, e ficou aterrado, deparando uma fera, parecida com um urso, que lhe mostrava
um dístico, no qual se liam estas palavras:
“Todo aquele que tocar nestas flores, será imediatamente morto.’
Abdenos balbuciou algumas palavras,
tentando justificar-se:
— Perdão! Perdão! Como poderia
adivinhar que, cortando uma rosa, para levar a minha filha, cometia uma ação
má, e que incorria em tão severa pena.
— É irrevogável esta sentença e
ninguém a ela se pode esquivar, a menos que outrem se sacrifique pelo
criminoso. Prepara-te, pois, para bem morrer.
— Como posso preparar-me para bem
morrer — gemeu o mísero, — sem ter deixado os meus negócios em ordem, e levando
para a outra vida o receio de não ter seguro o futuro de minhas filhas? Tenho
atualmente toda a fortuna empregada em negócios, que só eu posso deslindar. Com
mais três meses de vida, salvava-se; e assim, deixo-as na miséria! Como posso
bem morrer?
E soluçava.
— A Fera parecia sensibilizada.
— Não te poderia perdoar, ainda que
o quisesse. Posso porém, aceder ao teu último desejo. Concedo-te os meses.
Findo esse prazo, ou alguém que queira substituir-te, estará aqui, neste mesmo
local. Dás-me tua palavra que assim o farás?
— Dou — respondeu Abdenos.
Mal pronunciava essa palavra,
achou-se à porta de casa. Pareceu-lhe um sonho tudo quanto se passara, mas a
rosa que tinha na mão, não lhe deixava dúvida alguma sobre a triste realidade.
Abdenos subiu, sendo recebido pelas
filhas com grandes manifestações de alegria. As duas mais velhas
perguntaram-lhe logo pelas encomendas, ficando desesperadas quando viram que o
pai não lhas trazia, e mais ainda, ao darem com os olhos na rosa pedida por
Bela.
Esta, reparando só no gesto
demudado do velho, apenas tratou de inquirir o que tinha ele. O mercador
procurou disfarçar, dizendo que estava bom e que não sentia coisa alguma além
da natural fadiga da viagem. Bela não acreditou nas palavras do pai; mas, não
querendo ser importuna, fingiu que aceitava a explicação.
Os dias iam passando rapidamente
para Abdenos, que não saía do escritório, ocupado em pôr em ordem os seus
negócios, em liquidar a sua fortuna, e em chorar por ter de se separar para
todo o sempre das filhas, principalmente de Bela.
Bela, por sua parte, desconfiava,
espreitava-o. Numa noite ouviu-o dizer:
— Chegou o dia fatal. Amanhã tenho
que dar cumprimento à minha promessa. Ah! Bela, Bela, quem diria que aquela
rosa seria a causa da morte de teu pai!
Imagine-se como tais palavras
deixaram a pobre menina. Recolhendo-se, lavada em lágrimas, ao quarto,
ajoelhou-se ao pé do leito (pedindo ao Céu uma inspiração, que lhe permitisse
salvar o pai.
Depois de feita essa oração,
sentiu-se possuída de invencível sono, durante o qual lhe passaram ante os
olhos as cenas que se haviam passado durante a viagem do mercador. Depois ouviu
uma voz que lhe dizia:
— Se quiseres salvar teu pai, mete este
anel no dedo, e ele te transportará onde desejares.
Nisto, Bela acordou, e viu sobre o
travesseiro um anel. Então a excelente menina escreveu uma longa carta a
Abdenos, contando-lhe como soubera o que se passara, e dizendo-lhe que, tendo
sido a causa do perigo que o ameaçava, e que fazendo ele mais falta neste mundo
que ela, era de justiça substituí-lo.
Quando acabou de escrever, meteu o
anel no dedo, dizendo:
— Anelzinho de condão, pelo condão
que Deus te deu, transporta-me ao palácio da Fera.
De repente viu-se à porta do
palácio encantado.
Entrou, e percorrendo as salas,
cujas portas estavam abertas de par em par, foi dar a uma outra, onde estava
uma mesa posta para dois comensais. Na verga da porta da sala imediata lia-se o
seguinte dístico: Toucador de Bela.
Nesse momento batiam a uma das
portas da sala de jantar. Bela ficou perdida de medo, mas lembrando-se de que
estava ali para dar a sua vida em resgate da de seu pai, mandou entrar quem
batia. Era a Fera; com um ramo na mão, avançava lentamente.
— Nada receies, Bela; não sou capaz
de te fazer mal. Amo-te, e só peço que não tenhas medo de mim. Pode ser que,
conhecendo-me melhor, vejas que o hábito não faz o monge, e que este horrível
corpo esconde alguma coisa que vale muito.
E avançando com a mão sobre o
coração, ofereceu o ramo a Bela.
Esta ainda estava mais aterrada de
que se a morte a ameaçasse. Mas, erguendo os olhos, viu os da Fera tão meigos e
o gesto do pobre animal tão humilde, que cobrou ânimo. Os olhos da Fera
encheram-se de lágrimas e dando um suspiro, murmurou:
— Vejo que me temes e eu amo-te
tanto, tanto!...
Bela sossegou-a e compungida pelo
sofrimento em que a via, falou:
— Não tenho medo de ti, Fera, mas
tu és tão feia! Bem vês que é impossível ter-te amor, mas posso ser muito tua
amiga!
A Fera, um pouco mais consolada,
disse-lhe que, se tinha vontade de comer, tomasse aquela refeição, e que todos
os desejos que tivesse seriam cumpridos.
Bela sentou-se à mesa, e, vendo
mais um talher, perguntou para quem era.
— Era para mim, mas eu repugno-te
tanto! — respondeu o pobre animal com voz triste.
— Não me repugnas, não. Pareces-me
muito boa. És feia de corpo, mas vejo que és bonita de alma. Se o desejas,
senta-te aqui ao pé de mim.
A Fera, com os olhos brilhantes de
contentamento, sentou-se ao pé de Bela cercando-a de milhares de atenções, e
servindo-a com toda a delicadeza.
Depois de terminada a refeição,
ergueu-se, e agradecendo a Bela, a sua condescendência, disse-lhe:
— Ninguém entrará nestes aposentos
a não ser eu quando me quiseres dar esse prazer. Podes, pois estar tranquila.
E saiu.
***
A vida de Bela corria tão feliz
quanto podia ser, longe da família. Nada lhe faltava e a Fera era tão boa, tão
humilde, tão respeitosa, tão meiga que a gentil menina lhe tomara verdadeira
afeição, e nem já reparava que era um monstro horroroso.
No seu quarto havia um enorme espelho
em que via tudo o que se passava em casa do pai.
Um dia quando se levantou, viu o
velho mercador no leito, cercado de médicos. Deu um grito:
— Fera ó fera!
Esta apareceu logo, cheia de
cuidado.
— Vê, meu pai está doente, sem ter
ao pé de si a sua enfermeira. Deixa-me ir tratar dele.
A Fera chorava.
— Vai — disse. — Vai, mas não te
esqueças de mim, senão morro. Logo que teu pai esteja bom, volta. Não te
demores, senão já não me encontrarás. Este anel te transportará, e nunca o
deixes para não te esqueceres de mim. Adeus!
Bela, para não prolongar as dores
da despedida, disse, também a chorar:
— Anelzinho de condão, pelo condão
que Deus te deu, transporta-me à casa de meu pai.
E achou-se em casa do pai.
***
Abdenos, quando viu a filha, ficou
tão contente, que melhorou consideravelmente. O mercador tinha todas as noites,
em sonhos, notícias da filha, e sabia tudo quanto ocorria no palácio da Fera.
Mas a saudade ia-o minando lentamente, e adoecera.
Já o mesmo não sucedia às irmãs.
Ao verem-na, ficaram desesperadas.
Cheias de inveja, procuraram saber
o meio de que Bela dispunha para se transportar ao palácio encantado, meio que
a irmã, por prudência, lhes não revelara.
Bela, quando se lavava, tirava
sempre o anel; as irmãs desconfiaram que ele era de condão, e combinaram-se
para a chamarem de repente, quando o tivesse tirado do dedo, roubando-lho.
Assim fizeram, e conseguiram haver
à mão o desejado anel.
O mercador no fim de oito dias
estava restabelecido.
Bela sonhava todas as noites com a
Fera, que via triste e adoentada, sempre a chorar. Como, porém, lhe tinham
roubado o anel, de dia esquecia-se.
Uma noite sonhou que a Fera estava
a expirar. Acordou espavorida, e vendo que não tinha o anel no dedo, lembrou-se
que as irmãs eram capazes de lho terem tirado. E, para o reaver, foi ao quarto
delas, dizendo, como de si para si:
— Ora isto! Perdi o meu anel. Que
desgraça! Se alguém o tem, morre dentro de um mês.
As irmãs, acreditando nas palavras
de Bela, foram logo a correr buscar-lhe o anel, dizendo-lhe que o tinham
guardado por brincadeira.
Bela meteu-o imediatamente no dedo,
e proferindo as palavras sacramentais, achou-se no palácio, onde viu a Fera
agonizante.
Ajoelhou junto do pobre animal,
afagando-o, dispensando-lhe as palavras mais meigas, fazendo-o respirar sais.
Mas o animal não se movia.
Depois de muitos esforços, pareceu
a Bela que sentia palpitar-lhe o coração. Continuou, pois, a ministrar-lhe os
mesmos remédios, e por fim ela voltou a si.
A moça compusera o rosto,
disfarçando a sua afeição, a fim de não aterrar a doente. Tornando a Fera a si,
ela murmurou:
— Agora que te vi quase perdida, é
que conheci o que passava no meu coração. Não sejas injusta, amo-te.
Mal pronunciara esta última
palavra, espalhou-se pelo palácio uma deslumbrante luz, e em lugar de Fera,
apareceu aos seus olhos atônitos, um formosíssimo príncipe.
Esse príncipe fora encantado naquele
horrível animal, por uma fada má, e todos os seus súditos em plantas. As
árvores, que se opunham à marcha de Abdenos, eram aguerridos soldados. O
encanto só terminaria quando uma menina, boa e bonita, se apaixonasse pela
Fera.
Logo que se quebrou o encanto, uma
boa fada transportou para o palácio a família de Bela transformando as irmãs em
estátuas, para as castigar da sua maldade.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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