Quando o rei Cobé morreu, subiu ao
trono o príncipe Laci, seu filho, moço estimado em toda a nação, pelo seu
generoso coração e virtudes magnânimas.
Passado o ano de luta da etiqueta,
o primeiro ministro lembrou-lhe a lei pela qual o soberano era obrigado a
casar-se, tantas vezes quantas fossem necessárias, até ter um filho, que seria
o futuro reinante.
O jovem monarca não amava, não
sentia inclinação amorosa por mulher alguma. Debalde os conselheiros da coroa
enalteciam as belezas e qualidade das princesas dos países vizinhos,
mostrando-lhes os retratos.
Faltava pouco para expirar o tempo.
Laci passeava incógnito, pela sua capital, como costumava habitualmente para
examinar as necessidades de seu povo, quando ao passar pelas margens de um rio,
viu uma jovem de radiante formosura, sentada tristemente sobre uma pedra,
abrigada à sombra da frondosa árvore.
O rei sentiu-se apaixonado de súbito.
Dirigindo-lhe a palavra, disse quem era, e pediu-a em casamento. A mocinha, que
justamente andava melancólica, porque amava Laci, sem esperança, exultou com o
pedido, e aceitou-o. O moço soberano, louco de contentamento, fê-lo subir para
a árvore, recomendando-lhe que não falasse, nem desse sinal de vida, durante a
sua ausência, e partiu correndo para o palácio a fim de preparar o cortejo de
ministros, grandes do reino, oficiais, pajens camareiros e soldados, que deviam
conduzi-la triunfalmente.
A rapariga esperava quando viu se
aproximar da margem do rio, justamente no lugar em que ela estivera sentada,
uma escrava moura, velha e feia, com feições de mulata, corcunda, aleijada, e
de pernas tortas, trazendo à cabeça um pote de barro, para apanhar água.
A moura torta, antes de fazer o
serviço a que viera, sentou-se sobre a pedra, a cismar na sua sorte. Olhando
casualmente para o rio, na ocasião em que ia encher o pote, viu refletir-se
nitidamente na água serena como se fosse um espelho, a imagem da formosa moça,
que estava escondida na árvore, mas que ela não podia ver.
Julgando que era a própria imagem
exclamou indignada, quebrando o cântaro de barro em mil pedaços:
— Que desaforo! uma moça tão
bonita, como eu, carregando água!...
A mocinha conteve a vontade de rir
que lhe veio, assistindo àquela cena, enquanto a velha regressava para casa,
onde contou aos amos que escorregara, partindo o vaso.
Deram-lhe um barril de madeira e
pouco depois regressava ela ao rio. Novamente, ao chegar à margem, viu a imagem
da formosíssima futura rainha desenhar-se na superfície da água, e novamente,
acreditando que fosse a sua, exclamou enraivecida:
— Isso não pode ser! Uma jovem
deslumbrante, como eu, servindo de criada!
Quebrou o barril, batendo repetidas
vezes com ele na pedra, e regressou.
Pela segunda vez, a noiva do
soberano quis rir, mas abafou com um lenço a gargalhada que lhe estava prestes
a explodir.
Ainda não havia decorrido dez
minutos, e a moura torta voltava. Tendo dito aos patrões que o barriu também se
havia partido, deram-lhe dessa vez um caldeirão de ferro, que a velha carregava
a custo, arfando de cansaço.
Aproximou-se do rio, e, como
sempre, avistou o retrato da moça no espelho d'água. Como das duas vezes
antecedentes, falou:
— Não, decididamente sou bela
demais para fazer o papel de escrava!...
Atirou o caldeirão contra a pedra,
esforçando-se debalde para quebrá-lo, batendo com ele repetidamente, fazendo
mil carantonhas, mostrando as suas pernas tortas e a sua corcunda. A moça, de
cima da árvore, não pode mais e rompeu em gargalhadas argentinas. A moura torta
ouvindo-a, voltou-se para cima:
— Olé, sua sirigaita! pois é você
que está aí, fazendo com que quebre as minhas vasilhas!...
Subiu até onde estava a rapariga, e
começou a conversar com ela, que tremia, receando-a ao mesmo tempo em que se
recordava das recomendações do rei. A feiticeira, porém, que não lhe fazia mal
algum, ia-a afagando, e minando. Sem que a jovem visse apanhou um grande
alfinete, e espetou-a na cabeça da moça, que se transformou numa linda pombinha
branca.
Horas depois, chegou o rei com
numeroso e deslumbrante séquito de carruagens e soldados, bandas de música à
frente. A corte estava em festas com a notícia do casamento do seu amado
príncipe.
Quando Laci chegou, e viu a sua
noiva que julgou mudada naquela horrível velha, ficou desesperado. Ela lhe disse
que se tinha tornado assim, devido ao longo tempo de espera, exposta ao sol e
ao vento, aos quais não estava habituada, e o monarca não deu pela
substituição.
Como havia prometido esposá-la, e
já tinha comunicado o consórcio, aos grandes do reino, não quis voltar atrás.
Embora desgostoso, casou-se.
No dia seguinte, pela manhã, o
jardineiro-mor estava trabalhando, quando viu uma pombinha toda branca, pousar
no arbusto e cantar:
— Horteleiro,
hortelão, da real horta,
Como é que passa o rei com a moura torta?
O jardineiro respondeu:
— Come bem
e passa bem,
Passa vida regalada,
Tão serena e sossegada,
Como no mundo ninguém!...
A pombinha retorquiu:
— Ai!
triste de nós, pombinhas,
Que só comemos pedrinhas!...
Foi comunicar ao rei o que acabava
de ouvir, e Sua Majestade ordenou-lhe que envidasse todos os esforços para
agarrá-la.
O jardineiro preparou o laço, e no
dia imediato a linda avezinha voltou:
— Horteleiro,
hortelão, da real horta,
Como é que passa o rei com a moura torta?
O jardineiro respondeu:
— Como bem
e passa bem,
Passa a vida regalada,
Tão serena e sossegada,
Como no mundo ninguém!...
A pombinha retorquiu:
— Ai!
triste de nós, pombinhas,
Que só comemos pedrinhas!...
— Põe o teu pezinho, aqui linda
pombinha.
— Não, o meu pé não foi feito para
laços de barbante! — respondeu ela voando e desaparecendo.
Novamente o hortelão foi narrar ao
rei o ocorrido, e Laci mandou fazer um laço de prata.
Sucessivamente a pombinha branca
tornou no terceiro, quarto e quinto dia.
Ao laço de prata passou o hortelão
a usar um de ouro, e finalmente um de brilhantes e pérolas, deixando-se a
pombinha agarrar, finalmente.
O rei, tendo-a em seu poder, ficou
satisfeitíssimo e admirado de ouvi-la falar; começou a alisar-lhe as penas, e
depois a cabecinha, quando viu o alfinete na cabecinha de tão linda ave?!
— Que será isto? Quem seria o
malvado que espetou o alfinete na cabecinha de tão linda ave?! Não sei como não
morreu!
E segurando-a, delicada e
pacientemente, arrancou-o. No mesmo momento surgiu em sua frente a moça que
tinha visto nas margens do rio.
Ela narrou-lhe o episódio sucedido
com a moura torta, e Laci, cheio de satisfação, fez anular o seu casamento com
a velha feiticeira, desposando a formosa donzela.
A moura, torta, por castigo de suas
bruxarias e falsidade, foi metida dentro de uma barrica cheia de canivetes,
espetados com as lâminas pontiagudas do lado de dentro, e despenhada de cima de
elevado montanha, pela ladeira abaixo, chegando toda estraçalhada.
Laci viveu muitos anos feliz, com
sua esposa, sempre estimado por todos os seus súditos.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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