5/05/2025

A Moura Torta (Conto), de Figueiredo Pimentel


A MOURA TORTA

Quando o rei Cobé morreu, subiu ao trono o príncipe Laci, seu filho, moço estimado em toda a nação, pelo seu generoso coração e virtudes magnânimas.

Passado o ano de luta da etiqueta, o primeiro ministro lembrou-lhe a lei pela qual o soberano era obrigado a casar-se, tantas vezes quantas fossem necessárias, até ter um filho, que seria o futuro reinante.

O jovem monarca não amava, não sentia inclinação amorosa por mulher alguma. Debalde os conselheiros da coroa enalteciam as belezas e qualidade das princesas dos países vizinhos, mostrando-lhes os retratos.

Faltava pouco para expirar o tempo. Laci passeava incógnito, pela sua capital, como costumava habitualmente para examinar as necessidades de seu povo, quando ao passar pelas margens de um rio, viu uma jovem de radiante formosura, sentada tristemente sobre uma pedra, abrigada à sombra da frondosa árvore.

O rei sentiu-se apaixonado de súbito. Dirigindo-lhe a palavra, disse quem era, e pediu-a em casamento. A mocinha, que justamente andava melancólica, porque amava Laci, sem esperança, exultou com o pedido, e aceitou-o. O moço soberano, louco de contentamento, fê-lo subir para a árvore, recomendando-lhe que não falasse, nem desse sinal de vida, durante a sua ausência, e partiu correndo para o palácio a fim de preparar o cortejo de ministros, grandes do reino, oficiais, pajens camareiros e soldados, que deviam conduzi-la triunfalmente.

A rapariga esperava quando viu se aproximar da margem do rio, justamente no lugar em que ela estivera sentada, uma escrava moura, velha e feia, com feições de mulata, corcunda, aleijada, e de pernas tortas, trazendo à cabeça um pote de barro, para apanhar água.

A moura torta, antes de fazer o serviço a que viera, sentou-se sobre a pedra, a cismar na sua sorte. Olhando casualmente para o rio, na ocasião em que ia encher o pote, viu refletir-se nitidamente na água serena como se fosse um espelho, a imagem da formosa moça, que estava escondida na árvore, mas que ela não podia ver.

Julgando que era a própria imagem exclamou indignada, quebrando o cântaro de barro em mil pedaços:

— Que desaforo! uma moça tão bonita, como eu, carregando água!...

A mocinha conteve a vontade de rir que lhe veio, assistindo àquela cena, enquanto a velha regressava para casa, onde contou aos amos que escorregara, partindo o vaso.

Deram-lhe um barril de madeira e pouco depois regressava ela ao rio. Novamente, ao chegar à margem, viu a imagem da formosíssima futura rainha desenhar-se na superfície da água, e novamente, acreditando que fosse a sua, exclamou enraivecida:

— Isso não pode ser! Uma jovem deslumbrante, como eu, servindo de criada!

Quebrou o barril, batendo repetidas vezes com ele na pedra, e regressou.

Pela segunda vez, a noiva do soberano quis rir, mas abafou com um lenço a gargalhada que lhe estava prestes a explodir.

Ainda não havia decorrido dez minutos, e a moura torta voltava. Tendo dito aos patrões que o barriu também se havia partido, deram-lhe dessa vez um caldeirão de ferro, que a velha carregava a custo, arfando de cansaço.

Aproximou-se do rio, e, como sempre, avistou o retrato da moça no espelho d'água. Como das duas vezes antecedentes, falou:

— Não, decididamente sou bela demais para fazer o papel de escrava!...

Atirou o caldeirão contra a pedra, esforçando-se debalde para quebrá-lo, batendo com ele repetidamente, fazendo mil carantonhas, mostrando as suas pernas tortas e a sua corcunda. A moça, de cima da árvore, não pode mais e rompeu em gargalhadas argentinas. A moura torta ouvindo-a, voltou-se para cima:

— Olé, sua sirigaita! pois é você que está aí, fazendo com que quebre as minhas vasilhas!...

Subiu até onde estava a rapariga, e começou a conversar com ela, que tremia, receando-a ao mesmo tempo em que se recordava das recomendações do rei. A feiticeira, porém, que não lhe fazia mal algum, ia-a afagando, e minando. Sem que a jovem visse apanhou um grande alfinete, e espetou-a na cabeça da moça, que se transformou numa linda pombinha branca.

Horas depois, chegou o rei com numeroso e deslumbrante séquito de carruagens e soldados, bandas de música à frente. A corte estava em festas com a notícia do casamento do seu amado príncipe.

Quando Laci chegou, e viu a sua noiva que julgou mudada naquela horrível velha, ficou desesperado. Ela lhe disse que se tinha tornado assim, devido ao longo tempo de espera, exposta ao sol e ao vento, aos quais não estava habituada, e o monarca não deu pela substituição.

Como havia prometido esposá-la, e já tinha comunicado o consórcio, aos grandes do reino, não quis voltar atrás. Embora desgostoso, casou-se.

No dia seguinte, pela manhã, o jardineiro-mor estava trabalhando, quando viu uma pombinha toda branca, pousar no arbusto e cantar:

— Horteleiro, hortelão, da real horta,
 Como é que passa o rei com a moura torta?

O jardineiro respondeu:

— Come bem e passa bem,
Passa vida regalada,
Tão serena e sossegada,
Como no mundo ninguém!...

A pombinha retorquiu:

— Ai! triste de nós, pombinhas,
Que só comemos pedrinhas!...

Foi comunicar ao rei o que acabava de ouvir, e Sua Majestade ordenou-lhe que envidasse todos os esforços para agarrá-la.

O jardineiro preparou o laço, e no dia imediato a linda avezinha voltou:

— Horteleiro, hortelão, da real horta,
Como é que passa o rei com a moura torta?

O jardineiro respondeu:

— Como bem e passa bem,
Passa a vida regalada,
Tão serena e sossegada,
Como no mundo ninguém!...

A pombinha retorquiu:

— Ai! triste de nós, pombinhas,
Que só comemos pedrinhas!...

— Põe o teu pezinho, aqui linda pombinha.

— Não, o meu pé não foi feito para laços de barbante! — respondeu ela voando e desaparecendo.

Novamente o hortelão foi narrar ao rei o ocorrido, e Laci mandou fazer um laço de prata.

Sucessivamente a pombinha branca tornou no terceiro, quarto e quinto dia.

Ao laço de prata passou o hortelão a usar um de ouro, e finalmente um de brilhantes e pérolas, deixando-se a pombinha agarrar, finalmente.

O rei, tendo-a em seu poder, ficou satisfeitíssimo e admirado de ouvi-la falar; começou a alisar-lhe as penas, e depois a cabecinha, quando viu o alfinete na cabecinha de tão linda ave?!

— Que será isto? Quem seria o malvado que espetou o alfinete na cabecinha de tão linda ave?! Não sei como não morreu!

E segurando-a, delicada e pacientemente, arrancou-o. No mesmo momento surgiu em sua frente a moça que tinha visto nas margens do rio.

Ela narrou-lhe o episódio sucedido com a moura torta, e Laci, cheio de satisfação, fez anular o seu casamento com a velha feiticeira, desposando a formosa donzela.

A moura, torta, por castigo de suas bruxarias e falsidade, foi metida dentro de uma barrica cheia de canivetes, espetados com as lâminas pontiagudas do lado de dentro, e despenhada de cima de elevado montanha, pela ladeira abaixo, chegando toda estraçalhada.

Laci viveu muitos anos feliz, com sua esposa, sempre estimado por todos os seus súditos.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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