5/03/2025

O anacoreta (Conto), de Figueiredo Pimentel


O ANACORETA

Um virtuoso frade, animado por santo fervor religioso, retirou-se da cidade, longe dos homens, numa gruta solitária da Tebaida, para se consagrar inteiramente à obra da sua salvação.

Jejuava, rezava, mortificava o corpo, e dirigia constantemente o pensamento a Deus.

Tendo passado assim longos anos, pensou que já tinha merecido um bom lugar no Paraíso, e podia colocar-se ao lado dos maiores santos.

Nessa noite o anjo Gabriel apareceu-lhe:

— Existe neste mundo um humilde menestrel, que vai de porta em porta tocando harpa e cantando, e que melhor do que tu mereceu as eternas recompensas.

O eremita, admirado destas palavras, levantou-se, tomou o seu bordão de viagem e foi à procura desse músico ambulante.

Encontrou-o finalmente e perguntou-lhe:

— Irmão, dize que boas obras fizeste e por quais orações e penitências se tornaste agradável a Deus?

— Não zombes de mim, santo homem! Jamais fiz boas obras, e, pobre pecador que sou, nem mesmo sei rezar. Vou somente de casa em casa, divertir as pessoas com a minha harpa.'

Entretanto o austero ermitão insistiu:

— Estou certo que, durante a tua existência vagabunda, fizeste algum ato de virtude.

— Não, em verdade digo que não poderia citar um único.

— Mas, como ficaste reduzido a esse estado de pobreza? Viveste extravagantemente, como as pessoas de tua profissão? Dissipaste em loucuras a herança de teus pais e os proventos do teu ofício?  

— Não. Um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão, para pagar uma dívida. Essa mulher era jovem e moça. Dei-lhe asilo em minha casa; protegi-a durante o perigo, vendi tudo quanto possuía, para amparar aquela família; e reconduzi-la à cidade, onde ela devia encontrar-se com o marido e os filhos. Mas... que homem não teria feito o mesmo?  

A essas palavras, o religioso da Tebaida chorou e exclamou:

— Nos meus setenta anos de solidão, nunca fiz uma obra tão boa, e no entanto chamo-me homem de Deus, e tu... tu não passas de um pobre menestrel!...



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
 

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