Um virtuoso frade, animado por
santo fervor religioso, retirou-se da cidade, longe dos homens, numa gruta
solitária da Tebaida, para se consagrar inteiramente à obra da sua salvação.
Jejuava, rezava, mortificava o
corpo, e dirigia constantemente o pensamento a Deus.
Tendo passado assim longos anos,
pensou que já tinha merecido um bom lugar no Paraíso, e podia colocar-se ao
lado dos maiores santos.
Nessa noite o anjo Gabriel
apareceu-lhe:
— Existe neste mundo um humilde
menestrel, que vai de porta em porta tocando harpa e cantando, e que melhor do
que tu mereceu as eternas recompensas.
O eremita, admirado destas
palavras, levantou-se, tomou o seu bordão de viagem e foi à procura desse
músico ambulante.
Encontrou-o finalmente e
perguntou-lhe:
— Irmão, dize que boas obras
fizeste e por quais orações e penitências se tornaste agradável a Deus?
— Não zombes de mim, santo homem!
Jamais fiz boas obras, e, pobre pecador que sou, nem mesmo sei rezar. Vou
somente de casa em casa, divertir as pessoas com a minha harpa.'
Entretanto o austero ermitão
insistiu:
— Estou certo que, durante a tua
existência vagabunda, fizeste algum ato de virtude.
— Não, em verdade digo que não
poderia citar um único.
— Mas, como ficaste reduzido a esse
estado de pobreza? Viveste extravagantemente, como as pessoas de tua profissão?
Dissipaste em loucuras a herança de teus pais e os proventos do teu ofício?
— Não. Um dia encontrei uma pobre
mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão,
para pagar uma dívida. Essa mulher era jovem e moça. Dei-lhe asilo em minha
casa; protegi-a durante o perigo, vendi tudo quanto possuía, para amparar
aquela família; e reconduzi-la à cidade, onde ela devia encontrar-se com o
marido e os filhos. Mas... que homem não teria feito o mesmo?
A essas palavras, o religioso da
Tebaida chorou e exclamou:
— Nos meus setenta anos de solidão,
nunca fiz uma obra tão boa, e no entanto chamo-me homem de Deus, e tu... tu não
passas de um pobre menestrel!...
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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