Josué era um jovem negociante muito
considerado por todos pela sua probidade comercial e honradez nos negócios que
fazia.
Achando-se em condições de casar,
não tardou em encontrar uma rapariga de formosura deslumbrante, chamada Amina,
filha única de uma viúva. Travou relações, e foi bem aceito, casando-se alguns
meses depois.
No dia seguinte ao das bodas,
Josué, foi para a mesa com sua esposa, tendo mandado preparar um almoço, com os
melhores pratos que houvessem e finíssimos vinhos. Amina limitava-se a deitar
uma colher de arroz num prato, espetando grão por grão, com um alfinete de
ouro.
Ao jantar deu-se o mesmo fato, e a
cena repetiu-se durante uma semana, em todas as refeições. Debalde Josué a
exortava a que comesse; Amina recusava, parecendo alimentar-se exclusivamente
de ar.
Fora disso, nada podia dizer dela
como esposa e dona de casa.
***
Uma noite, achava-se o jovem
negociante deitado, sem ter ainda conciliado o sono, quando viu a mulher
levantar-se sorrateiramente, vestir-se e sair.
Ergueu-se devagarinho, e seguiu-lhe
os passos.
Viu-a abrir a porta e ganhar a rua.
Acompanhou-a sem que ela o pressentisse, até o cemitério.
Aí, o espetáculo que presenciou foi
horrível! Amina, em companhia de um Devorador
— demônio errante que se alimentava de cadáveres — comia uma criancinha
enterrada naquele dia.
Não quis ver mais. Voltou
horrorizado, metendo-se na cama antes do regresso da megera, e fingiu que dormia.
No dia seguinte, à hora do almoço,
Amina, como de costume, recusou-se a comer. O marido, então, não pode
conter-se, e disse-lhe.
— Por que não comes, querida Amina?
Acaso esses guisados são piores do que a carne dos cadáveres?
Assim que o moço pronunciou tais
palavras, a esposa transformou-se de súbito. Enfureceu-se de tal modo, que o
rosto se lhe inflamou: os olhos chamejantes pareciam saltar das órbitas e da
boca saía grossa espuma.
No auge da cólera, a bruxa, tendo
perto de si um copo cheio, molhou os dedos, murmurou algumas palavras
cabalísticas e, salpicando gotas d'água à cara do esposo, exclamou:
— Desgraçado! Para castigo da tua
curiosidade, serás transformado em cão!
Josué perdeu logo a sua forma de
homem, tomando a de um grande cão preto, pelado e magro. A surpresa de ver
assim, não lhe deu tempo para refletir, e deixou-se ficar na cadeira sentado,
dando tempo a Amina de procurar uma bengala, esbordoá-lo com força, até
deixá-lo em lastimoso estado.
Finalmente o cão conseguiu escapar
pela porta aberta, e vendo-se na rua, fugiu amedrontado.
Apesar de mudado em cachorro, Josué
não perdeu as suas faculdades. Enquanto corria, pensava na sua triste sorte,
desanimado inteiramente, sem saber que fazer naquela angustiosa situação.
Ao anoitecer, sentindo fome,
chegou-se humildemente para um açougueiro, que estava sentado à porta de casa,
tomando o fresco. O carniceiro gostava de cães, e recebeu aquele com carinho,
afagando-o, e dando-lhe um pedaço de carne.
Tendo encontrado no açougue
proteção e agasalho, o cão ali se conservou. O dono batizou-o por Pelado, que ficou sendo o guarda da
casa.
Pelado vivia satisfeito, tanto quanto podia estar um homem
transformado em animal, desenganado de volver à sua primitiva forma.
***
Um dia, tendo ido um freguês
comprar carne, o açougueiro observou que uma das moedas era falsa, e disse-o ao
comprador, que sustentou o contrário. Para resolver a dúvida, o negociante
espalhou o dinheiro sobre o balcão, e chamando Pelado, perguntou-lhe qual era a
moeda falsa.
O cachorro, que no tempo em que
fora negociante, estava habituado a lidar com toda a sorte de dinheiro, pôs a
pata em cima, com grande admiração do dono e do freguês, que o não julgavam
capaz de tamanha perspicácia.
Circulou rapidamente a notícia das
habilidades do cão, e de todas as partes afluíam curiosos.
Tudo quanto se lhe mandava fazer, Pelado executava prontamente por entre
aplausos. O negócio prosperava, e o açougueiro estava satisfeitíssimo com o seu
inteligente animal.
***
Tempos depois apareceu na loja uma
freguesa. Depois de examinar Pelado
atentamente, numa ocasião em que o dono a não via, fez-lhe com a cabeça um
sinal para acompanhá-la. O cachorro compreendeu, pelo olhar da velhinha, que se
tratava de alguma coisa importante, e seguiu-a.
Chegando à casa, a velha fê-lo
sentar-se sobre um sofá, e disse-lhe:
— Fizeste bem em me acompanhar. Se
és o que penso, nada terás a recear.
Dirigiu-se para dentro, e voltou
trazendo um vaso com água, que derramou sobre o cachorro, falando:
— Se nasceste cão, fica no estado
em que te achas, porém, se nasceste gente, torna-te ao que eras, pela virtude
desta água!
Sentindo as gotas sobre a pele o
cão estremeceu, e transformou-se outra vez em Josué, que agradeceu à boa
mulher, o tê-lo salvo, contando-lhe a sua história.
A velha era também mágica, e
conhecia Amina, de quem era rival; aquela só fazia maldades, e esta aplicava os
seus estudos de magia em praticar o bem.
Depois ofereceu-lhe uma outra água
preparada, e ensinou-lhe que, quando chegasse à casa, a lançasse sobre sua
esposa, e visse o que sucederia.
Ele assim o fez e encaminhou-se
para a sua residência. Ai chegando, encontrou os seus empregados e fâmulos
inquietos por aquela ausência de quase dois anos. Amina, dissera-lhe que havia
saído para tratar de negócios, mas que não soubera do que lhe acontecera,
fingindo-se desassossegada; naquela ocasião não se achava em casa.
O marido esperou-a, e poucas horas
após regressou ela, que ficou furiosa quando o viu Josué não lhe deu tempo de
fazer novos sortilégios, lançando-lhe a água encantada que a velhinha lhe dera.
Assim que as gotas lhe caíram no corpo a bruxa ficou transformada numa égua
preta.
O moço mandou selá-la, para dar um
passeio, pela cidade, dirigindo-se para uma casa de campo que tinha, a muitas
léguas de distância. Aí. passou quinze dias, montando todos os instantes na
égua, metendo-lhe o chicote, esporeando-a sem piedade.
Depois vendeu-a a um carroceiro,
que a fazia trabalhar todo o dia, puxando um grande e pesado carroção de
pedras, até que o animal morreu.
Assim foi castigada a bruxa.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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