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Estevão, chamando sua irmã, disse-lhe:
— Clara, depois que nossa mãe
morreu, não temos tido um momento de felicidade. Nossa madrasta bate-nos sem
cessar, e só nos dá para alimento os restos das suas refeições. Seu cão é
melhor alimentado do que nós. Assim, abandonaremos esta casa, onde nada mais
podemos esperar, e vamo-nos para longe.
As duas crianças partiram, e foram
caminhando sempre em frente, através dos campos. À noite, abrigaram-se no
tronco de uma árvore, e aí adormeceram.
No dia seguinte, pela manhã, o
irmão disse:
— Estou com sede. Parece-me que
ouço o murmúrio de um regato. Vamos ver.
Mas a madrasta, que era uma
feiticeira, tinha-os precedido no caminho, e havia encantado todos os ribeiros
e fontes que deviam encontrar. O irmão viu um ribeiro límpido e transparente,
que corria murmurinhando, e abaixou-se para beber.
Ouviram uma voz que dizia:
— Todo aquele que beber dessa água
será transformado em tigre!
— Oh! Estevão, meu querido Estevão
— exclamou ela. — Não bebas, porque te tornarias um animal feroz e me
devorarias!
— Estou com uma sede terrível — replicou
o rapaz. — Mas vamos um pouco mais longe.
Além serpenteava outro regato. O
menino aproximou-se com avidez, mas Clara ouviu uma voz, exclamando:
— Todo aquele que beber dessa água
será transformado em lobo!
— Oh! Estevão! peço-te que não
bebas, porque te tornarias um lobo e me devorarias!
— Vamos! — respondeu Estevão,
esperarei ainda; mas, no primeiro regato que encontrarmos, beberei, porque
estou morrendo de sede.
Perto do terceiro riacho, Clara
ouviu uma voz, que dizia:
— Todo aquele que beber dessa água
será transformado em veado!
— Oh! Estevão! toma sentido,
peço-te. Se fores transformado em veado, começarás a correr e não poderei
alcançar-te.
O irmão já se tinha abaixado, à
beira do regato e logo que começou a beber, virou num veadinho branco.
Clara pôs-se a chorar, vendo seu
irmão assim enfeitiçado. Estevão chorava também tristemente.
— Sossega — disse a irmãzinha, — não
te abandonarei.
A menina colheu cipós e trançou uma
corda com a qual amarrou o lindo veadinho.
Conduziu-o pela floresta adentro, e
pararam em frente a uma casa desabitada.
— Entremos, é aqui que devemos
residir.
Entrou e preparou para o veadinho
um leito macio, feito com musgo e folhas. Foi colher erva fresca, para ele e
nozes e frutas para si.
Todas as manhãs ia fazer as mesmas
provisões, e era ela quem, com suas próprias mãos, dava de comer ao gentil
veado. À noite dormiram juntos.
Achavam-se ali, havia algum tempo,
quando o rei empreendeu realizar uma grande caçada na floresta.
Ouviu-se de longe o ressoar da
trompa, os latidos dos cães e os gritos dos caçadores.
A esse ruído o veadinho estremeceu.
— Não posso conter-me. É preciso
que vá à caça. Deixa-me ir, peço-te.
Insistiu com tanta força, que ela
consentiu em deixá-lo partir.
— Se voltardes um pouco tarde,
encontrarás a porta da casa fechada. É preciso que batas, dizendo: — Irmãzinha,
deixa-me entrar. Do contrário, não abrirei.
— Muito bem! — replicou o
animalzinho.
E correu para a floresta,
satisfeito por se sentir em liberdade.
O rei e os caçadores repararam
naquele formoso veadinho, e perseguiram-no, mas inutilmente.
Quando esperavam alcançá-lo,
desapareceu.
À noite foi bater à porta da
casinha, e disse:
— Irmãzinha, deixa-me entrar.
A porta abriu-se, e foi deitar-se
na sua caminha.
Na manhã seguinte, novamente ouviu
ressoar trompa, e novamente quis correr através da floresta. Clara
recomendou-lhe:
— Não te esqueças de bater à porta
e falar como ontem.
Quando o rei e os caçadores
tornaram a ver o veadinho, puseram-se ao seu encalço, mas sem conseguirem
apanhá-lo. Apenas um deles chegou a lançar-lhe uma seta na perna, o que o fez
coxear um pouco.
Esse caçador viu-o dirigir-se para
a casinha, bater e falar:
— Irmãzinha, deixa-me entrar.
A porta abriu-se, ele entrou, e o
caçador foi contar ao rei o que tinha presenciado.
— Amanhã — disse o rei, — recomeçaremos
a nossa caçada.
Clara ficou aflita, quando viu o
irmão ferido. Enxugou-lhe o sangue, que escorria, fez-lhe umas compressas, e
obrigou-o a repousar.
A ferida entretanto era ligeira.
No dia seguinte, ouvindo ainda o
grito dos caçadores, exclamou:
— Não posso conter-me!... É preciso
que vá!...
— Farte-ás matar, e eu ficarei sozinha,
abandonada na floresta. Peço-te que não vás!
— Pois bem — replicou ele, — então
morrerei de pesar, porque os sons das trompas de caça atraem-me. Não posso
resistir.
Partiu.
Assim que o rei avistou, disse ao
caçador que na véspera o tinha acompanhado:
— Segue-o de novo, mas não lhe
faças mal algum.
Ao entardecer, o rei fez com que
lhe indicassem a casinha, antes que o veadinho entrasse, e bateu à porta,
dizendo:
— Irmãzinha, deixa-me entrar.
A porta abriu-se e Clara ficou
espantada quando, em lugar do veadinho, viu diante de si um homem que,
tomando-lhe a mão, perguntou:
Queres vir para o meu castelo e
casar comigo?
— Quero — respondeu Clara, — mas
com a condição de que o veadinho virá também conosco, pois não posso
abandoná-lo.
— Tranquiliza-te — respondeu o rei,
— ele ficará no palácio, até quando quiseres, e nada lhe faltará.
Nessa ocasião o veadinho entrou.
Clara amarrou-o, e levou-o para o
castelo do rei.
Aí o casamento foi pomposamente celebrado.
A mocinha ficou sendo rainha, muito respeitada e estimada, e o veadinho
perfeitamente tratado.
***
Entretanto a malvada madrasta, que
tão cruelmente maltratara os dois inocentes meninos, alegrava-se pensando que
estavam perdidos para sempre.
Julgava que Clara houvesse sido
devorada na floresta pelos animais selvagens, e que seu irmão, transformado em
veado, tivesse sido morto pelos caçadores.
Ficou furiosa ao saber que viviam
felizes no palácio do rei, e resolveu desmanchar-lhes a felicidade.
Sua filha caolha, dizia muitas
vezes:
— Era eu quem devia ser rainha!
— Sossega — dizia infame
feiticeira, — teu dia chegará.
A encantadora rainha Clara deu à
luz um menino. Enquanto o rei se achava caçando, a feiticeira tomou a figura e
as roupas da parteira, e aproximando-se da jovem parturiente disse:
— O banho de Vossa Majestade está
pronto. É bom não deixar esfriar.
Então, com o auxílio de sua
horrorosa filha tomou-a pelo meio do corpo, levou-a para a sala de banhos,
pô-la dentro d'água e fechou a porta.
Sob a banheira havia ateado um
grande fogo. A jovem rainha devia ficar asfixiada e queimada.
Não duvidando do bom êxito do seu
crime, a bruxa conduziu a filha para o aposento e deitou-a no próprio leito de
Clara.
Em virtude da sua feiticeira,
conseguiu rejuvenescer-lhe o rosto, mas não pudera dar-lhe o olho que faltava.
Para dissimular esse defeito, recomendou-lhe que se voltasse para a parede.
Voltando da caça, o rei soube, com
alegria, que seu filho tinha nascido.
Quis ver e abraçar a rainha, mas a
feiticeira impediu-o, dizendo:
— Tome Vossa Majestade sentido. Não
abra o cortinado, porque a luz pode fazer-lhe mal.
O rei retirou-se, sem duvidar da
traição.
À meia-noite, quando todos dormiam,
menos a ama que velava perto do berço, a porta abriu-se e a verdadeira rainha
entrou devagarinho.
Chegando perto do berço, tomou a
criança nos braços e apertou-a de encontro ao coração; endireitou a caminha,
envolveu o recém-nascido nos cueiros e deitou-0. Em seguida dirigiu-se para o
veadinho, que estava deitado a um canto do aposento, pôs-lhe a mão pela cabeça,
e desapareceu como tinha entrado.
A ama indagou dos criados se não
tinham visto entrar alguém no palácio. Responderam-lhe que ninguém.
Na noite seguinte, e em muitas
outras consecutivas, a jovem rainha executou a mesma cena da primeira noite.
Algum tempo depois, apareceu mais
triste, e murmurou:
— Ah! meu caro filho! meu caro
irmão! Voltarei ainda mais duas vezes, e depois nunca mais!
A ama, que até então nada havia
relatado dessas aparições, foi contá-la ao rei, que respondeu:
— Eu mesmo irei ver de que se trata.
À meia-noite ela entrou no quarto
da criancinha, onde o rei se achava escondido.
Abraçou o menino, e retirou-se,
dizendo:
— Eu voltarei ainda uma vez, mas é
a última.
Nessa noite o rei não se animou a lhe dirigir a palavra.
Na noite seguinte, esperava-a. Ela
voltou, repetiu as cenas de costume, e exclamou:
— Ah! meu caro filho, ah! meu caro
irmão! nunca mais voltarei.
— Oh! — disse o rei, — és tu a
minha querida mulher?!
— Sim! — respondeu ela.
No mesmo instante voltou à vida, e
contou ao rei o crime da feiticeira e de sua filha, que foram presas e
condenadas à morte.
Quando a feiticeira acabou de ser
executada, Estevão, que ela havia transformado em veadinho, recuperou a sua
forma primitiva.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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