5/05/2025

O veadinho encantado (Conto), de Figueiredo Pimentel



 O VEADINHO ENCANTADO

Estevão, chamando sua irmã, disse-lhe:

— Clara, depois que nossa mãe morreu, não temos tido um momento de felicidade. Nossa madrasta bate-nos sem cessar, e só nos dá para alimento os restos das suas refeições. Seu cão é melhor alimentado do que nós. Assim, abandonaremos esta casa, onde nada mais podemos esperar, e vamo-nos para longe.

As duas crianças partiram, e foram caminhando sempre em frente, através dos campos. À noite, abrigaram-se no tronco de uma árvore, e aí adormeceram.

No dia seguinte, pela manhã, o irmão disse:

— Estou com sede. Parece-me que ouço o murmúrio de um regato. Vamos ver.

Mas a madrasta, que era uma feiticeira, tinha-os precedido no caminho, e havia encantado todos os ribeiros e fontes que deviam encontrar. O irmão viu um ribeiro límpido e transparente, que corria murmurinhando, e abaixou-se para beber.

Ouviram uma voz que dizia:

— Todo aquele que beber dessa água será transformado em tigre!

— Oh! Estevão, meu querido Estevão — exclamou ela. — Não bebas, porque te tornarias um animal feroz e me devorarias!

— Estou com uma sede terrível — replicou o rapaz. — Mas vamos um pouco mais longe.

Além serpenteava outro regato. O menino aproximou-se com avidez, mas Clara ouviu uma voz, exclamando:

— Todo aquele que beber dessa água será transformado em lobo!

— Oh! Estevão! peço-te que não bebas, porque te tornarias um lobo e me devorarias!

— Vamos! — respondeu Estevão, esperarei ainda; mas, no primeiro regato que encontrarmos, beberei, porque estou morrendo de sede.

Perto do terceiro riacho, Clara ouviu uma voz, que dizia:

— Todo aquele que beber dessa água será transformado em veado!

— Oh! Estevão! toma sentido, peço-te. Se fores transformado em veado, começarás a correr e não poderei alcançar-te.

O irmão já se tinha abaixado, à beira do regato e logo que começou a beber, virou num veadinho branco.

Clara pôs-se a chorar, vendo seu irmão assim enfeitiçado. Estevão chorava também tristemente.

— Sossega — disse a irmãzinha, — não te abandonarei.

A menina colheu cipós e trançou uma corda com a qual amarrou o lindo veadinho.

Conduziu-o pela floresta adentro, e pararam em frente a uma casa desabitada.

— Entremos, é aqui que devemos residir.

Entrou e preparou para o veadinho um leito macio, feito com musgo e folhas. Foi colher erva fresca, para ele e nozes e frutas para si.

Todas as manhãs ia fazer as mesmas provisões, e era ela quem, com suas próprias mãos, dava de comer ao gentil veado. À noite dormiram juntos.

Achavam-se ali, havia algum tempo, quando o rei empreendeu realizar uma grande caçada na floresta.

Ouviu-se de longe o ressoar da trompa, os latidos dos cães e os gritos dos caçadores.

A esse ruído o veadinho estremeceu.

— Não posso conter-me. É preciso que vá à caça. Deixa-me ir, peço-te.

Insistiu com tanta força, que ela consentiu em deixá-lo partir.

— Se voltardes um pouco tarde, encontrarás a porta da casa fechada. É preciso que batas, dizendo: — Irmãzinha, deixa-me entrar. Do contrário, não abrirei.

— Muito bem! — replicou o animalzinho.

E correu para a floresta, satisfeito por se sentir em liberdade.

O rei e os caçadores repararam naquele formoso veadinho, e perseguiram-no, mas inutilmente.

Quando esperavam alcançá-lo, desapareceu.

À noite foi bater à porta da casinha, e disse:

— Irmãzinha, deixa-me entrar.

A porta abriu-se, e foi deitar-se na sua caminha.

Na manhã seguinte, novamente ouviu ressoar trompa, e novamente quis correr através da floresta. Clara recomendou-lhe:

— Não te esqueças de bater à porta e falar como ontem.

Quando o rei e os caçadores tornaram a ver o veadinho, puseram-se ao seu encalço, mas sem conseguirem apanhá-lo. Apenas um deles chegou a lançar-lhe uma seta na perna, o que o fez coxear um pouco.

Esse caçador viu-o dirigir-se para a casinha, bater e falar:

— Irmãzinha, deixa-me entrar.

A porta abriu-se, ele entrou, e o caçador foi contar ao rei o que tinha presenciado.

— Amanhã — disse o rei, — recomeçaremos a nossa caçada.

Clara ficou aflita, quando viu o irmão ferido. Enxugou-lhe o sangue, que escorria, fez-lhe umas compressas, e obrigou-o a repousar.

A ferida entretanto era ligeira.

No dia seguinte, ouvindo ainda o grito dos caçadores, exclamou:

— Não posso conter-me!... É preciso que vá!...

— Farte-ás matar, e eu ficarei sozinha, abandonada na floresta. Peço-te que não vás!

— Pois bem — replicou ele, — então morrerei de pesar, porque os sons das trompas de caça atraem-me. Não posso resistir.

Partiu.

Assim que o rei avistou, disse ao caçador que na véspera o tinha acompanhado:

— Segue-o de novo, mas não lhe faças mal algum.

Ao entardecer, o rei fez com que lhe indicassem a casinha, antes que o veadinho entrasse, e bateu à porta, dizendo:

— Irmãzinha, deixa-me entrar.

A porta abriu-se e Clara ficou espantada quando, em lugar do veadinho, viu diante de si um homem que, tomando-lhe a mão, perguntou:

Queres vir para o meu castelo e casar comigo?

— Quero — respondeu Clara, — mas com a condição de que o veadinho virá também conosco, pois não posso abandoná-lo.

— Tranquiliza-te — respondeu o rei, — ele ficará no palácio, até quando quiseres, e nada lhe faltará.

Nessa ocasião o veadinho entrou.

Clara amarrou-o, e levou-o para o castelo do rei.

Aí o casamento foi pomposamente celebrado. A mocinha ficou sendo rainha, muito respeitada e estimada, e o veadinho perfeitamente tratado.

***

Entretanto a malvada madrasta, que tão cruelmente maltratara os dois inocentes meninos, alegrava-se pensando que estavam perdidos para sempre.

Julgava que Clara houvesse sido devorada na floresta pelos animais selvagens, e que seu irmão, transformado em veado, tivesse sido morto pelos caçadores.

Ficou furiosa ao saber que viviam felizes no palácio do rei, e resolveu desmanchar-lhes a felicidade.

Sua filha caolha, dizia muitas vezes:

— Era eu quem devia ser rainha!

— Sossega — dizia infame feiticeira, — teu dia chegará.

A encantadora rainha Clara deu à luz um menino. Enquanto o rei se achava caçando, a feiticeira tomou a figura e as roupas da parteira, e aproximando-se da jovem parturiente disse:

— O banho de Vossa Majestade está pronto. É bom não deixar esfriar.

Então, com o auxílio de sua horrorosa filha tomou-a pelo meio do corpo, levou-a para a sala de banhos, pô-la dentro d'água e fechou a porta.

Sob a banheira havia ateado um grande fogo. A jovem rainha devia ficar asfixiada e queimada.

Não duvidando do bom êxito do seu crime, a bruxa conduziu a filha para o aposento e deitou-a no próprio leito de Clara.

Em virtude da sua feiticeira, conseguiu rejuvenescer-lhe o rosto, mas não pudera dar-lhe o olho que faltava. Para dissimular esse defeito, recomendou-lhe que se voltasse para a parede.

Voltando da caça, o rei soube, com alegria, que seu filho tinha nascido.

Quis ver e abraçar a rainha, mas a feiticeira impediu-o, dizendo:

— Tome Vossa Majestade sentido. Não abra o cortinado, porque a luz pode fazer-lhe mal.

O rei retirou-se, sem duvidar da traição.

À meia-noite, quando todos dormiam, menos a ama que velava perto do berço, a porta abriu-se e a verdadeira rainha entrou devagarinho.

Chegando perto do berço, tomou a criança nos braços e apertou-a de encontro ao coração; endireitou a caminha, envolveu o recém-nascido nos cueiros e deitou-0. Em seguida dirigiu-se para o veadinho, que estava deitado a um canto do aposento, pôs-lhe a mão pela cabeça, e desapareceu como tinha entrado.

A ama indagou dos criados se não tinham visto entrar alguém no palácio. Responderam-lhe que ninguém.

Na noite seguinte, e em muitas outras consecutivas, a jovem rainha executou a mesma cena da primeira noite.

Algum tempo depois, apareceu mais triste, e murmurou:

— Ah! meu caro filho! meu caro irmão! Voltarei ainda mais duas vezes, e depois nunca mais!

A ama, que até então nada havia relatado dessas aparições, foi contá-la ao rei, que respondeu:

— Eu mesmo irei ver de que se trata.

À meia-noite ela entrou no quarto da criancinha, onde o rei se achava escondido.

Abraçou o menino, e retirou-se, dizendo:

— Eu voltarei ainda uma vez, mas é a última.

Nessa noite o rei não se animou a lhe dirigir a palavra. 

Na noite seguinte, esperava-a. Ela voltou, repetiu as cenas de costume, e exclamou:

— Ah! meu caro filho, ah! meu caro irmão! nunca mais voltarei.

— Oh! — disse o rei, — és tu a minha querida mulher?!

— Sim! — respondeu ela.

No mesmo instante voltou à vida, e contou ao rei o crime da feiticeira e de sua filha, que foram presas e condenadas à morte.

Quando a feiticeira acabou de ser executada, Estevão, que ela havia transformado em veadinho, recuperou a sua forma primitiva.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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