5/05/2025

Os caiporismos do alfaiate João (Conto), de Figueiredo Pimentel



OS CAIPORISMOS DO ALFAIATE JOÃO

João exercia a profissão de alfaiate Era estimado por todos, vigoroso e ativo. Quando estava sentado no seu banquinho com a agulha na mão, trabalhava com ardor e rapidez incrível; depois jantava com a mesma pressa e, acabando, ia brincar com os companheiros, saltando e correndo.

Só tinha um único defeito — gostava muito do seu violino.

Os milhares de pontos que dava durante o dia não lhe fatigavam a mão; e, assim que acabava a tarefa, apanhava o instrumento. Algumas vezes, mesmo, não resistia ao desejo de tocar, quando seu pai saía. Salvo essa pequena infração aos deveres, o velho nenhuma censura tinha a lhe fazer. Por isso, ao morrer, abençoou-o do fundo d'alma.

João, que há havia muito tempo, tinha perdido sua mãe, achou-se sozinho na casinha com o seu violino e uma pequena e insignificante mobília, que quase nada valia.

Continuou, entretanto, a trabalhar como antigamente. Pouco tempo depois veio estabelecer-se em frente a ele outro alfaiate também muito trabalhador e homem cheio de empreendimentos, que montou uma bonita e vasta loja, onde necessariamente devia fazer negócio.

João, sem fazer caso disso, prosseguiu sempre no seu serviço. Quando o terminava, ia executar algumas peças no violino; depois deitava-se a adormecia.

Uma noite teve um sonho que o impressionou fortemente. Sonhou que se conseguisse ajuntar cinquenta florins, teria a sua fortuna segura; reduziria ao desespero o seu rival orgulhoso, e tornar-se-ia um personagem tão importante, que os seus concidadãos o elegeriam burgomestre da cidade.

O bom João tinha grande imaginação, fazia muitos castelos no ar, e não duvidou um só instante que o seu sonho se converteria em realidade.

Com esse agradável pensamento, pôs-se a trabalhar com mais afinco.

***

Os fregueses de Rapps, na Boêmia, que era a sua cidade natal, não pagavam caro o seu trabalho; e, cortando desde o amanhecer até à noite, pouquíssimo conseguia fazer.

Mas como gastava uma insignificância e era severamente econômico, conseguiu juntar, um a um, os cinquenta florins com os quais sonhara.

Já via todos os seus sonhos de ambição realizados e nomeado burgomestre quando uma noite, ao regressar da rua, encontrou a sua casinha arrombada e o seu tesouro roubado.

Feriu-o profundamente aquele golpe e talvez o atribuísse ao seu concorrente, que jamais cessava de espiá-lo em todas as suas mínimas ações. Que fazer entretanto? Nenhum indício o auxiliava a achar os vestígios do ladrão, e todas às quais contava  a sua desgraça, em lugar de o consolarem, censuravam-no pela avareza e imprudência:

— Eis aí, o que é viver miseravelmente e querer entesourar. Você devia pelo menos acender uma luz no quarto, durante a noite. Se os ladrões vissem luz, pensariam que você estava em casa, e não ousariam entrar.

Tem razão — replicou João. — Aproveitarei o conselho.

Desde esse dia, quer estivesse ou não em casa, desde que anoitecia, uma lamparina brilhava perto da janela. As pessoas que passavam, vendo-a diziam consigo mesmo:

— Como este alfaiate é trabalhador! Há de fazer fortuna, pois deita-se muito tarde e levanta-se cedo.

***

Por novos esforços de trabalho e economia chegou a reparar o desastre e a ajuntar pela segunda vez a quantia que tinha visto em sonho, e novamente imaginou que seria burgomestre de Rapps.

Uma noite, porém, tendo ido visitar um seu amigo, ao entrar viu a sua loja incendiada e destruída tudo quanto nela havia inclusive o violino e a caixinha em que guardava o dinheiro.

Que medonha catástrofe! Ficou fulminado.

— É o resultado natural da sua imprudência! — disseram-se os vizinhos. — Como é que deixa a vela acesa quando sai, e não tem pessoa alguma para vigiar a casa?  

João agradeceu-lhe o conselho, e protestou que se lembraria.

Como era de caráter enérgico, e queria absolutamente ser burgomestre de Rapps, não se deixou abater por esse novo desastre.

Conseguiu pedir emprestado algum dinheiro, montou outra loja e tomou um aprendiz.

A situação, depois disso, não era lisonjeira, porque devia pagar juros fabulosos pela quantia que tomara a um judeu, e tinha ainda que sustentar o aprendiz.

Bem depressa, porém, conseguiu juntar mais uma vez os cinquenta florins, e guardou-os em lugar seguro.

Mas o seu aprendiz, a quem havia confiado o segredo, fugiu um dia, roubando-lhe o dinheiro.

Dessa vez o desgraçado João pareceu abatido, e desanimou:

— Ora — disse um dos seus amigos, — pois desanimas por tão pouco, e a perda de uma tão insignificante quantia aflige-te tanto? Podes ganhar igual soma com o teu trabalho. Mas precisas ter a teu lado alguém que se auxilie a ganhá-los, e não um tratante de um aprendiz. Deves casar-te.

— Casar-me, eu?! Mas não é brincadeira! A gente precisa ter dinheiro para comprar roupa nova e mobília, e pagar as despesas todas que o casamento traz. Mais tarde virão os gastos com filhos, e médico, a botica, a ama de leite e outras que nunca mais acabam. Numa tal condição de vida, jamais conseguiria juntar os meus cinquenta florins. Não quero mais seguir os conselhos dos meus amigos. Lembraram-se que devia ter uma lamparina acesa e a casa pegou fogo. Acharam que devia tomar um aprendiz e o aprendiz fugiu, roubando-me. Agora querem induzir-me a uma resolução mais perigosa que as sete pragas do Egito. Não! não quero ouvir conselhos!

Assim pensando, João pegou na agulha e na linha, e começou a trabalhar com atividade para acabar uma roupa que o seu aprendiz prometera entregar naquele dia mesmo.

Enquanto trabalhava, a ideia do casamento despertou-lhe no espírito, e pouco a pouco, pareceu-lhe menos a recear. Começou a sonhar perspectivas risonhas: uma casinha alegre, governada com ordem e economia, os filhinhos bem criados e limpos, e uma esposa carinhosa que aliasse à ternura e ao afeto um regime de vida nova e salutar, e que, ao invés de gastar sozinho, o auxiliasse a ganhar é poupar.

— Sim! — exclamou ele de repente, levantando-se e batendo os mãos. — É uma feliz inspiração! Estou decidido! Casar-me-ei!

Durante o tempo em que fizera a sua viagem de aprendiz por diversas cidades da Boêmia, muitas vezes à tarde tomava o seu violino e as mocinhas da aldeia reuniam-se em torno dele e dançavam alegremente.

Havia sobretudo uma que ele gostava de ver. Pois, ela executava as suas polcas com animação particular, e ela também parecia gostar de o ver. Era a filha de um mineiro.

João conservou uma fiel recordação da formosa Clarinda, e disse de si para si:

— Se ainda estiver solteira e quiser casar comigo, serei feliz.

Partiu.

Dirigiu humildemente o seu pedido, e teve a satisfação de se ver graciosamente acolhido.

Os pais de Clarinda, tinham, porém, vistas mais largas, porque eram aparentados com as famílias mais importantes do país, e possuíam um filho engenheiro que dirigia uma exploração de minas opulentíssimas, nos montes Carpatos. Eles mesmos eram ricos.

Haviam sonhado um casamento vantajoso para sua filha, e não podiam conformar-se com a ideia de que ela quisesse unir-se a um pobre alfaiatezinho, de uma aldeia obscura.

Clarinda, entretanto, disse-lhe que amava João, e o casamento realizou-se, indo o casal para Rapps.

A moça era gentil, amorosa, modesta, trabalhadeira e econômica. João não podia fazer melhor escolha, mas tinha aprendido na sua infância, umas tantas máximas errôneas, que achava dever absolutamente por em prática. Uma delas era: Não confies segredo a mulher alguma.

Em virtude desse princípio, o desconfiado alfaiate não revelou à mulher o seu sonho, nem o motivo das suas economias tão severas.

Trabalhando com um novo ardor, começou a guardar outra vez tudo quanto podia, e para se certificar de que o dinheiro que ia ajuntando não podia ser roubado, trazia-o constantemente consigo, no bolso das calças. Quando se achava a sós, o seu prazer era contá-lo e recontá-lo.

Uma vez, achando-se em atraso, pôs-se a correr, para chegar à loja quanto antes. Pouco depois, sem parar, tendo metido a mão na algibeira, deu um grito de espanto. O bolso estava furado: acabava de perder o dinheiro.

Mas não foi só isso. Desde esse dia viu aumentar a freguesia e prosperidade da loja fronteira.

O rival de João pavoneava-se orgulhosamente. Compraria dois cavalos e um carrinho, para correr a freguesia, e comprava sem cessar novos fornecimentos.

— Ah! — exclamou João desoladamente. — Ele é que será o burgomestre de Rapps! O meu sonho era mentiroso!

Clarinda, que sofria vendo-o prostrado, tentou consolá-lo.

Numa ocasião, disse-lhe:

— O que faz a fortuna do nosso vizinho é a sua carruagem. Fatigas-te muito e perdes muito tempo em ir a pé à casa dos fregueses, e porque muitas pessoas chegam justamente quando não estás na loja, aborrecem-se esperando-te, e vão ao vizinho. Devias pedir emprestado o burro do moleiro, e ir todos os dias a galope a qualquer ponto da cidade. Assim pensar-se-ia que tens muitos negócios, que sabes poupar o tempo, além de que esses exercícios fariam bem à tua saúde.

João achou excelente esse conselho, e desde o dia seguinte viram-no atravessar à disparada as ruas de Rapps, em diversas direções e em horas diversas.

Como a mulher previra, a freguesia voltou com mais força.

As desgraças tinham-no tornado prudente e não quis mais guardar as suas economias nem nos armários, nem nos bolsos. Imaginara um novo meio que lhe pareceu esplêndido, de esconder o dinheiro. Trocava o papel por moedas, e cozia-os uma a uma no forro do boné.

Fez mal, não confiando em sua esposa. Um dia ao passar junto a um lago, o burro que montava, estacou e começou a corcovear. João tinha pregado algumas agulhas e alfinetes nas suas calças, sem se recordar. Assim, quanto mais apertava as pernas na barriga do animal, mais ele pinoteava, até que o cuspiu fora da sela, atirando-o dentro do lago.

João saiu da água, tendo perdido ali seu precioso boné.

Apesar daquela nova contrariedade, João obstinou-se em obedecer à máxima: Não confies segredo a mulher alguma.

No pátio da casinha, Clarinda tinha alguns vasos com flores.

Foi aí que ele se lembrou de guardar o cobre.

Todas as semanas ia a um deles e enterrava sorrateiramente uma moeda, sempre calmo, achando esplêndida a sua invenção.

Mas, uma tarde, ao entrar em casa, não viu um só dos vasos. Perguntou inquieto à sua esposa, que destino lhes havia dado.

A moça respondeu que tendo observado que as plantas em lugar de desenvolverem iam fenecendo aborreceu-se e lançou os vasos ao rio.

— Ah! —  exclamou o pobre rapaz. —  Sem o saberes, lançando-os ao rio, fizeste perder tudo quanto eu juntava havia muito tempo e que devia fazer a minha fortuna, elevando-me à dignidade de burgomestre.

A mulher olhava-o espantada sem poder compreender o que queria dizer.

O marido contou-lhe, então, o seu sonho e todas as suas desgraças. Ela censurou-o por não depositar confiança nela.

Aconselhou-o tão prudentemente, fez tantos planos de futuro, que João ficou pasmado do tino de sua esposa, e jurava que em toda a Boêmia não havia outra mulher como Clarinda.

Desde esse dia a vida do casal entrou em nova fase. O alfaiate não dava mais um passo sequer, que não consultasse primeiro a esposa.

Trabalhava com mais satisfação, tendo-a junto de si, auxiliá-lo em todos os misteres da sua profissão, e as encomendas não cessavam de afluir.

Bem depressa teve a felicidade de ver novamente em caixa os famosos cinquenta florins. A rapariga lembrou-se que, em vez de os aferrolhar inutilmente, devia empregá-los em alguma coisa útil e proveitosa.

Justamente nessa ocasião teve o ensejo de comprar uma grande peça de pano superior. Pagou-a de contado, e fez excelente negócio, de que usufruiu grande lucro.

Este sucesso animou-o, e lembrou-se de aumentar a loja, desenvolver o negócio em maior escala. Mas, não possuíam a quantia precisa para esse fim.

Clarinda teve a sua ideia.

Os pais tinham morrido, legando toda a fortuna ao filho, que já havia regressado da exploração das minas dos Carpatos.

A irmã foi vê-lo, embora soubesse quanto era orgulhoso, e como tinha reprovado o seu casamento com o alfaiate.

A princípio o moço recebeu-a fria e secamente. Ela, porém, teve a habilidade de lhe falar com tanta doçura, que o comoveu, e desejou conhecer o cunhado.

Dirigiu-se a Rapps e viu que não tinha sido enganado. João agradou-lhe pelo seu gênio afável, a sua natureza honesta, pelo seu talento de músico.

— Palavra que queria ver-te tocando na orquestra do imperador! — exclamou o engenheiro entusiasmado. — Estou certíssimo de que farias sucesso!

Ao partir, entregou-lhe uma quantia enorme, dizendo:

— É o dote de minha irmã e penso que farás um bom emprego desse dinheiro.

Com aquele capital, João bem depressa eclipsou o seu concorrente, que tantas vezes o havia humilhado.

Adquiriu um belo palacete, vastos armazéns e grande sortimento.

Mais tarde tornou-se, como tinha sonhado, burgomestre de Rapps.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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