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João exercia a profissão de
alfaiate Era estimado por todos, vigoroso e ativo. Quando estava sentado no seu
banquinho com a agulha na mão, trabalhava com ardor e rapidez incrível; depois
jantava com a mesma pressa e, acabando, ia brincar com os companheiros, saltando
e correndo.
Só tinha um único defeito — gostava
muito do seu violino.
Os milhares de pontos que dava
durante o dia não lhe fatigavam a mão; e, assim que acabava a tarefa, apanhava
o instrumento. Algumas vezes, mesmo, não resistia ao desejo de tocar, quando
seu pai saía. Salvo essa pequena infração aos deveres, o velho nenhuma censura
tinha a lhe fazer. Por isso, ao morrer, abençoou-o do fundo d'alma.
João, que há havia muito tempo,
tinha perdido sua mãe, achou-se sozinho na casinha com o seu violino e uma
pequena e insignificante mobília, que quase nada valia.
Continuou, entretanto, a trabalhar
como antigamente. Pouco tempo depois veio estabelecer-se em frente a ele outro
alfaiate também muito trabalhador e homem cheio de empreendimentos, que montou
uma bonita e vasta loja, onde necessariamente devia fazer negócio.
João, sem fazer caso disso,
prosseguiu sempre no seu serviço. Quando o terminava, ia executar algumas peças
no violino; depois deitava-se a adormecia.
Uma noite teve um sonho que o
impressionou fortemente. Sonhou que se conseguisse ajuntar cinquenta florins,
teria a sua fortuna segura; reduziria ao desespero o seu rival orgulhoso, e
tornar-se-ia um personagem tão importante, que os seus concidadãos o elegeriam
burgomestre da cidade.
O bom João tinha grande imaginação,
fazia muitos castelos no ar, e não duvidou um só instante que o seu sonho se
converteria em realidade.
Com esse agradável pensamento,
pôs-se a trabalhar com mais afinco.
***
Os fregueses de Rapps, na Boêmia,
que era a sua cidade natal, não pagavam caro o seu trabalho; e, cortando desde
o amanhecer até à noite, pouquíssimo conseguia fazer.
Mas como gastava uma
insignificância e era severamente econômico, conseguiu juntar, um a um, os cinquenta
florins com os quais sonhara.
Já via todos os seus sonhos de
ambição realizados e nomeado burgomestre quando uma noite, ao regressar da rua,
encontrou a sua casinha arrombada e o seu tesouro roubado.
Feriu-o profundamente aquele golpe
e talvez o atribuísse ao seu concorrente, que jamais cessava de espiá-lo em
todas as suas mínimas ações. Que fazer entretanto? Nenhum indício o auxiliava a
achar os vestígios do ladrão, e todas às quais contava a sua desgraça, em lugar de o consolarem,
censuravam-no pela avareza e imprudência:
— Eis aí, o que é viver miseravelmente
e querer entesourar. Você devia pelo menos acender uma luz no quarto, durante a
noite. Se os ladrões vissem luz, pensariam que você estava em casa, e não
ousariam entrar.
Tem razão — replicou João. — Aproveitarei
o conselho.
Desde esse dia, quer estivesse ou
não em casa, desde que anoitecia, uma lamparina brilhava perto da janela. As
pessoas que passavam, vendo-a diziam consigo mesmo:
— Como este alfaiate é trabalhador!
Há de fazer fortuna, pois deita-se muito tarde e levanta-se cedo.
***
Por novos esforços de trabalho e
economia chegou a reparar o desastre e a ajuntar pela segunda vez a quantia que
tinha visto em sonho, e novamente imaginou que seria burgomestre de Rapps.
Uma noite, porém, tendo ido visitar
um seu amigo, ao entrar viu a sua loja incendiada e destruída tudo quanto nela
havia inclusive o violino e a caixinha em que guardava o dinheiro.
Que medonha catástrofe! Ficou
fulminado.
— É o resultado natural da sua
imprudência! — disseram-se os vizinhos. — Como é que deixa a vela acesa quando
sai, e não tem pessoa alguma para vigiar a casa?
João agradeceu-lhe o conselho, e
protestou que se lembraria.
Como era de caráter enérgico, e
queria absolutamente ser burgomestre de Rapps, não se deixou abater por esse
novo desastre.
Conseguiu pedir emprestado algum
dinheiro, montou outra loja e tomou um aprendiz.
A situação, depois disso, não era
lisonjeira, porque devia pagar juros fabulosos pela quantia que tomara a um
judeu, e tinha ainda que sustentar o aprendiz.
Bem depressa, porém, conseguiu
juntar mais uma vez os cinquenta florins, e guardou-os em lugar seguro.
Mas o seu aprendiz, a quem havia
confiado o segredo, fugiu um dia, roubando-lhe o dinheiro.
Dessa vez o desgraçado João pareceu
abatido, e desanimou:
— Ora — disse um dos seus amigos, —
pois desanimas por tão pouco, e a perda de uma tão insignificante quantia
aflige-te tanto? Podes ganhar igual soma com o teu trabalho. Mas precisas ter a
teu lado alguém que se auxilie a ganhá-los, e não um tratante de um aprendiz.
Deves casar-te.
— Casar-me, eu?! Mas não é
brincadeira! A gente precisa ter dinheiro para comprar roupa nova e mobília, e
pagar as despesas todas que o casamento traz. Mais tarde virão os gastos com
filhos, e médico, a botica, a ama de leite e outras que nunca mais acabam. Numa
tal condição de vida, jamais conseguiria juntar os meus cinquenta florins. Não
quero mais seguir os conselhos dos meus amigos. Lembraram-se que devia ter uma
lamparina acesa e a casa pegou fogo. Acharam que devia tomar um aprendiz e o
aprendiz fugiu, roubando-me. Agora querem induzir-me a uma resolução mais
perigosa que as sete pragas do Egito. Não! não quero ouvir conselhos!
Assim pensando, João pegou na
agulha e na linha, e começou a trabalhar com atividade para acabar uma roupa
que o seu aprendiz prometera entregar naquele dia mesmo.
Enquanto trabalhava, a ideia do
casamento despertou-lhe no espírito, e pouco a pouco, pareceu-lhe menos a
recear. Começou a sonhar perspectivas risonhas: uma casinha alegre, governada
com ordem e economia, os filhinhos bem criados e limpos, e uma esposa carinhosa
que aliasse à ternura e ao afeto um regime de vida nova e salutar, e que, ao
invés de gastar sozinho, o auxiliasse a ganhar é poupar.
— Sim! — exclamou ele de repente,
levantando-se e batendo os mãos. — É uma feliz inspiração! Estou decidido!
Casar-me-ei!
Durante o tempo em que fizera a sua
viagem de aprendiz por diversas cidades da Boêmia, muitas vezes à tarde tomava
o seu violino e as mocinhas da aldeia reuniam-se em torno dele e dançavam
alegremente.
Havia sobretudo uma que ele gostava
de ver. Pois, ela executava as suas polcas com animação particular, e ela
também parecia gostar de o ver. Era a filha de um mineiro.
João conservou uma fiel recordação
da formosa Clarinda, e disse de si para si:
— Se ainda estiver solteira e
quiser casar comigo, serei feliz.
Partiu.
Dirigiu humildemente o seu pedido,
e teve a satisfação de se ver graciosamente acolhido.
Os pais de Clarinda, tinham, porém,
vistas mais largas, porque eram aparentados com as famílias mais importantes do
país, e possuíam um filho engenheiro que dirigia uma exploração de minas
opulentíssimas, nos montes Carpatos. Eles mesmos eram ricos.
Haviam sonhado um casamento
vantajoso para sua filha, e não podiam conformar-se com a ideia de que ela
quisesse unir-se a um pobre alfaiatezinho, de uma aldeia obscura.
Clarinda, entretanto, disse-lhe que
amava João, e o casamento realizou-se, indo o casal para Rapps.
A moça era gentil, amorosa,
modesta, trabalhadeira e econômica. João não podia fazer melhor escolha, mas
tinha aprendido na sua infância, umas tantas máximas errôneas, que achava dever
absolutamente por em prática. Uma delas era: Não confies segredo a mulher alguma.
Em virtude desse princípio, o
desconfiado alfaiate não revelou à mulher o seu sonho, nem o motivo das suas
economias tão severas.
Trabalhando com um novo ardor,
começou a guardar outra vez tudo quanto podia, e para se certificar de que o
dinheiro que ia ajuntando não podia ser roubado, trazia-o constantemente
consigo, no bolso das calças. Quando se achava a sós, o seu prazer era contá-lo
e recontá-lo.
Uma vez, achando-se em atraso,
pôs-se a correr, para chegar à loja quanto antes. Pouco depois, sem parar,
tendo metido a mão na algibeira, deu um grito de espanto. O bolso estava
furado: acabava de perder o dinheiro.
Mas não foi só isso. Desde esse dia
viu aumentar a freguesia e prosperidade da loja fronteira.
O rival de João pavoneava-se
orgulhosamente. Compraria dois cavalos e um carrinho, para correr a freguesia,
e comprava sem cessar novos fornecimentos.
— Ah! — exclamou João
desoladamente. — Ele é que será o burgomestre de Rapps! O meu sonho era
mentiroso!
Clarinda, que sofria vendo-o
prostrado, tentou consolá-lo.
Numa ocasião, disse-lhe:
— O que faz a fortuna do nosso
vizinho é a sua carruagem. Fatigas-te muito e perdes muito tempo em ir a pé à
casa dos fregueses, e porque muitas pessoas chegam justamente quando não estás
na loja, aborrecem-se esperando-te, e vão ao vizinho. Devias pedir emprestado o
burro do moleiro, e ir todos os dias a galope a qualquer ponto da cidade. Assim
pensar-se-ia que tens muitos negócios, que sabes poupar o tempo, além de que esses
exercícios fariam bem à tua saúde.
João achou excelente esse conselho,
e desde o dia seguinte viram-no atravessar à disparada as ruas de Rapps, em
diversas direções e em horas diversas.
Como a mulher previra, a freguesia
voltou com mais força.
As desgraças tinham-no tornado
prudente e não quis mais guardar as suas economias nem nos armários, nem nos
bolsos. Imaginara um novo meio que lhe pareceu esplêndido, de esconder o
dinheiro. Trocava o papel por moedas, e cozia-os uma a uma no forro do boné.
Fez mal, não confiando em sua
esposa. Um dia ao passar junto a um lago, o burro que montava, estacou e
começou a corcovear. João tinha pregado algumas agulhas e alfinetes nas suas
calças, sem se recordar. Assim, quanto mais apertava as pernas na barriga do
animal, mais ele pinoteava, até que o cuspiu fora da sela, atirando-o dentro do
lago.
João saiu da água, tendo perdido ali
seu precioso boné.
Apesar daquela nova contrariedade,
João obstinou-se em obedecer à máxima: Não
confies segredo a mulher alguma.
No pátio da casinha, Clarinda tinha
alguns vasos com flores.
Foi aí que ele se lembrou de
guardar o cobre.
Todas as semanas ia a um deles e
enterrava sorrateiramente uma moeda, sempre calmo, achando esplêndida a sua
invenção.
Mas, uma tarde, ao entrar em casa,
não viu um só dos vasos. Perguntou inquieto à sua esposa, que destino lhes
havia dado.
A moça respondeu que tendo observado
que as plantas em lugar de desenvolverem iam fenecendo aborreceu-se e lançou os
vasos ao rio.
— Ah! — exclamou o pobre rapaz. — Sem o saberes, lançando-os ao rio, fizeste
perder tudo quanto eu juntava havia muito tempo e que devia fazer a minha
fortuna, elevando-me à dignidade de burgomestre.
A mulher olhava-o espantada sem
poder compreender o que queria dizer.
O marido contou-lhe, então, o seu
sonho e todas as suas desgraças. Ela censurou-o por não depositar confiança
nela.
Aconselhou-o tão prudentemente, fez
tantos planos de futuro, que João ficou pasmado do tino de sua esposa, e jurava
que em toda a Boêmia não havia outra mulher como Clarinda.
Desde esse dia a vida do casal
entrou em nova fase. O alfaiate não dava mais um passo sequer, que não
consultasse primeiro a esposa.
Trabalhava com mais satisfação,
tendo-a junto de si, auxiliá-lo em todos os misteres da sua profissão, e as
encomendas não cessavam de afluir.
Bem depressa teve a felicidade de
ver novamente em caixa os famosos cinquenta florins. A rapariga lembrou-se que,
em vez de os aferrolhar inutilmente, devia empregá-los em alguma coisa útil e
proveitosa.
Justamente nessa ocasião teve o
ensejo de comprar uma grande peça de pano superior. Pagou-a de contado, e fez
excelente negócio, de que usufruiu grande lucro.
Este sucesso animou-o, e lembrou-se
de aumentar a loja, desenvolver o negócio em maior escala. Mas, não possuíam a
quantia precisa para esse fim.
Clarinda teve a sua ideia.
Os pais tinham morrido, legando
toda a fortuna ao filho, que já havia regressado da exploração das minas dos Carpatos.
A irmã foi vê-lo, embora soubesse
quanto era orgulhoso, e como tinha reprovado o seu casamento com o alfaiate.
A princípio o moço recebeu-a fria e
secamente. Ela, porém, teve a habilidade de lhe falar com tanta doçura, que o
comoveu, e desejou conhecer o cunhado.
Dirigiu-se a Rapps e viu que não
tinha sido enganado. João agradou-lhe pelo seu gênio afável, a sua natureza
honesta, pelo seu talento de músico.
— Palavra que queria ver-te tocando
na orquestra do imperador! — exclamou o engenheiro entusiasmado. — Estou certíssimo
de que farias sucesso!
Ao partir, entregou-lhe uma quantia
enorme, dizendo:
— É o dote de minha irmã e penso
que farás um bom emprego desse dinheiro.
Com aquele capital, João bem
depressa eclipsou o seu concorrente, que tantas vezes o havia humilhado.
Adquiriu um belo palacete, vastos
armazéns e grande sortimento.
Mais tarde tornou-se, como tinha
sonhado, burgomestre de Rapps.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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