5/05/2025

Os onze irmãos da princesa (Conto), de Figueiredo Pimentel


OS ONZE IRMÃOS DA PRINCESA

Existia, longe, muito longe das terras em que vivemos, lá nos sítios para onde fogem as andorinhas quando vem se aproximando o inverno, um soberano que tinha onze filhos e uma afilhada chamada Elisa.

As crianças eram amadas, quanto é possível. Mas aquele bem não podia durar muito. O rei, enviuvando, tornou a casar-se com uma rainha, de péssimo gênio, que tomou raiva aos enteados.

Dali a uma semana, mandou a princesinha para casa duns campônios, para lá a conservarem e tratarem dela. Quanto aos onze príncipes, tantas petas foi contar ao rei, a respeito, que o pai nunca mais quis saber das pobres crianças.

Então, a perversa rainha, que era bruxa, deitou um encanto aos rapazinhos. Depois de cerimônias mágicas, que sabia, disse-lhes:

— Voai, ligeiros, longe de nós,
Fazei-vos aves, aves sem voz!...

Os príncipes mudaram-se em lindos cisnes, e voaram pelos ares além...

De madrugada, passaram por cima da choupana onde vivia a irmãzinha. A princesa ainda estava a dormir. Por mais que batessem as asas, para acordá-la, nada conseguiram.

Quando Elisa fez quinze anos, levaram-na ao palácio. A madrasta, vendo-a tão deslumbrante teve tal fúria, que por pouco não morreu. O seu desejo foi logo mudá-la em cisne, mas o rei tinha dito que queria vê-la e a bruxa não se atreveu.

De manhã a rainha foi à sala de banhos, levando consigo três sapos medonhos.

Ao primeiro disse:

— Hás de te colocar na cabeça de Elisa, quando vier tomar banho, para a fazer tão estúpida como tu.

Ao segundo ordenou que saltasse à cara da pobre menina, para a tornar feia, tão feia, que o pai a não conhecesse.

— Hás de te pôr ao pé do coração dela — disse ao terceiro, — para que se faça perversa e pateta.

Atirou com os três bichos medonhos para dentro da água, límpida, que logo se fez verde, e foi buscar Elisa dando-lhe ordem que tomasse banho.

Os sapos fizeram tudo o que a rainha mandou: quando a princesa saiu da água deixou três papoulas vermelhas que sobrenadavam.

A rainha, vendo aquilo, esfregou-lhe o corpo com alcatrão, e untou-lhe a cara com uma pomada que fazia contrair as feições. A princesinha parecia um bicho de cozinha.

A madrasta depois de tê-la arranjado assim, levou-a ao pai, que teve medo dela, e declarou que semelhante criatura não podia ser sua filha.

A desgraçada Elisa fugiu, então, do palácio.

Depois de muito andar, por montes e vales, chegou à noite a um grande bosque e adormeceu.

De manhã, ao levantar-se, já havia mais ânimo. Foi andando, até que ao cabo de algumas horas encontrou enfim uma criatura humana. Era uma velha, com um cesto de frutas na mão, que lhe deu algumas com que ela matasse a fome. Elisa perguntou-lhe se teria acaso encontrado onze príncipes, tão bonitos como o sol.

— Não — respondeu a velha, — não vi onze príncipes, mas vi onze cisnes, com coroas de ouro na cabeça descerem a nado o rio que fica perto daqui.

E levou-a a uma clareira muito íngreme, no fim da qual se viam as águas duma ribeira.

A linda princesinha passou ali o dia e a tarde.

Começou a anoitecer. No instante em que os últimos raios do sol se apagavam, viu voando para terra onze cisnes. Pousaram em terra, muito perto dela.

Logo que o sol desapareceu de todo, as penas dos onze cisnes caíram por terra, e ela viu surgir os onze príncipes. Correu para eles de braços abertos. Os onze rapazes conheceram logo a sua irmãzinha adorada.

Que alegria! que contentamento! que abraços e que beijos! Choravam e riam ao mesmo tempo.

Depois, explicou-lhes o motivo por que tinha vindo para aquele sítio, e eles contaram os feitiços que lhes tinham sido lançados.

O mais velho falou:

— De dia temos a forma de cisnes. Logo que o sol se põe voltamos a ser homens. É por isso que havemos de ter sempre muito cuidado em chegar à terra firme, na ocasião em que vai fazer noite. Porque, se estivéssemos voando pelos ares, cairíamos de repente. Não é neste sítio que nós moramos, mas sim numa terra muito bonita, além dos mares. A viagem é muito longa: levamos nela dois dias inteiros, e havemos de voar muito depressa. No meio do caminho há um rochedo isolado que sai das ondas; e, tão pequeno é, que só temos espaço para ali ficarmos de pé, muito apertados uns com os outros. Quando o mar está bravo, cobre-nos de espuma da cabeça aos pés. Contudo, damos graças a Deus por termos aquele rochedozinho. Não nos é permitido vir, senão uma vez por ano, e só onze dias é que podemos nos demorar. Há dez chegamos, temos ainda um, e depois somos obrigados a voar. Como é que te havemos de levar conosco, se não temos sequer um pequeno barco?  

— E eu — disse Elisa, — como é que poderei quebrar o feitiço que vos deitaram.

Ainda levaram muito tempo na conversa. Por fim Elisa estava tão cansada que adormeceu.

Acordou ao sentir um forte bater de asas. Eram os irmãos que se tinham tornado em cisnes, e que voavam em torno dela, como a se despedirem. Depois levantaram o voo, e sumiram-se de todo. Só ficou um, que era o mais novo dos onze irmãos.

À tardinha voltaram e pouco tardou que tomassem a figura de homens.

— Amanhã temos que partir — disse o mais velho, — e antes de um ano não poderemos voltar, mas não queremos deixar aqui sozinha. Terás ânimo para vir conosco? Agora, que sou homem, era capaz de te levar ao colo pela floresta inteira: tu, coitadinha, és tão leve e tão mimosa. Portanto, nós onze tornando a ser cisnes, também com as nossas asas havemos de poder contigo e levar-te por esses mares afora.

— Que alegria — exclamou Elisa, — vou convosco por toda a parte!

Levaram a noite inteira a fazer uma rede de vime e de juncos. Elisa deitou-se dentro. Ao romper do sol, os onze cisnes levaram-na com os bicos até perto das nuvens.

Os cisnes voaram durante todo o dia. Ia escurecendo, e Elisa, muito assustada, não via sequer o rochedo solitário, onde haviam de passar a noite.

Pareceu-lhe que os cisnes voavam com redobrada ânsia.

— Eu é que sou a causa desta demora— pensava Elisa. — Se a noite descer antes de chegarem ao tal rochedo, caem no mar e morrem, desgraçadamente. Valha-nos Deus!

Nisso os cisnes começaram a descer para o mar; pairaram no espaço durante alguns instantes, e ela pode avistar o rochedo solitário.

***

Escureceu, e os onze cisnes tomaram a figura de homens. Estavam todos estreitamente unidos no rochedo, onde mal cabiam.

De manhã acalmou-se a tempestade.

Logo que o sol rompeu, os onze cisnes voaram, levando Elisa.

Daquela vez tocaram em terra antes do pôr do sol; puseram a irmã sobre um penhasco, em frente de uma grande caverna, muito bem arranjada; havia camas feitas de montões de musgos e folhas secas. Foi ali que entraram, muito contentes, logo que os onze príncipes tomaram a figura de homens.

— Sempre quero ver o que sonhas esta noite, depois de todas as comoções da viagem — disse à irmã o príncipe mais vivo.

— Deus queira que sonhe o modo de vos quebrar o encanto — respondeu Elisa.

Sonhou. Pareceu-lhe que ia outra vez pelos ares e chegara ao palácio de uma fada, que lhe falou deste modo:

— É possível quebrar o encanto dos teus irmãs. Mas, para isso, é preciso muita força e perseverança, é quem sabe se tu a terás? Vês esta urtiga, que tenho aqui na mão? Há muitas e muitas, assim, em roda da caverna onde moras. Só esta única espécie e uma outra que brota nos cemitérios, é que te pode servir! Precisas apanhar uma grande quantidade delas. Hás de encher as mãos de picadas e de empolas, que queimam como ferro em brasa. Se as pisares com muita força, farás uma espécie de estopa, com que hás de fiar e tecer onze túnicas compridas. Quando estiverem completas, atira com elas para cima dos onze cisnes, e quebra-se o encanto. Desde o primeiro momento em que começares esta obra, até aquele em que a acabares, não poderás pronunciar uma palavra, uma sílaba sequer. Se o não fizeres, o primeiro som que sair da tua boca, ferirá como se fossem onze punhais cravados no coração dos teus onze irmãs. A vida deles depende do teu silêncio. Pensa bem, primeiro, e depois faze o que quiseres.

Ao concluir essas palavras, acenou com a urtiga que tinha na mão, e que brilhou como se fossem uma estrela.

Elisa acordou deslumbrada por aquele clarão. Era dia claro, e ao pé dela crescia uma urtiga igual à que vira em sonho.

Caiu de joelhos, agradecendo a Deus ter atendido às suas orações.

Depois saiu da caverna, para dar princípio ao seu trabalho.

Pôs-se o sol, voltaram os irmãos, e perguntaram-lhe o que tinha visto. Nem uma palavra de resposta.

Os onze príncipes tiveram um grande susto.

— Isto é novo encanto da nossa madrasta, que a fez muda — disseram.

Mas, quando lhe viram as mãos feridas e o trabalho, compreenderam logo que era para lhes quebrar o encanto, que fazia tudo aquilo.

O mais moço pôs-se a chorar, beijando as mãozinhas inflamadas, e onde as lágrimas caíam, desapareciam as empolas e as chagas.

De repente ouviu uma trompa de caça soar por aquelas montanhas. Teve um grande susto. O som vinha cada vez mais perto, os cães latiam com furor. Trêmula de medo, fugiu para dentro da caverna, e sentou-se em cima do molho de urtigas que já haviam apanhado e pisado.

Dentro em pouco apareceu, um grande cão à entrada da gruta, depois outro e mais outro, e atrás deles apareceram todos os caçadores.

O mais gentil era o monarca daquele reino.

Ao ver Elisa, correu para ela, encantado. Nunca tinha visto uma menina mais bonita.

— Como vieste para esta solidão, minha beleza? — perguntou-lhe.

Depois saltou no cavalo, e levou-a roubada para o seu palácio.

As aias conduziram-na aos aposentos onde devia ficar, Havia um quarto de cama, um pouco escuro, todo guarnecido de tapetes verdes, para se parecer com a caverna da montanha. No chão estava o molho de urtigas pisadas, e num prego da parede a túnica já tecida.

Tudo aquilo tinha sido apanhado por um caçador, um pouco por curiosidade, um pouco para lisonjear a nova rainha.

Vendo esses objetos, os únicos que poderiam lhe dar uns rebates de alegria ao coração, Elisa teve um sorriso que animou o lindo rosto, e as faces pálidas fizeram-se cor duma romã.

Sua Majestade, vendo-a tão linda, marcou logo o dia para o noivado.

Casaram-se.

O rei fazia quanto podia para a distrair. Ela, que o compreendia, olhava-o com meiguice, mostrando-lhe nos olhos toda a sua infinita gratidão. Com que confiança lhe não contaria as suas penas e o seu martírio! Mas uma palavra só, que pronunciasse, perderia os queridos irmãos.

Pegou na mão do rei e beijou-a agradecida.

De noite levantava-se, e ia para o quarto verde parecido com a gruta, e ali continuava a sua obra.

Já tinha seis túnicas prontas, ia principiar a sétima quando viu que lhe faltava estopa.

Não podia voltar à montanha. A fada dissera-lhe em sonho, que as urtigas do cemitério também podiam servir, mas com a condição de que havia de ser ela quem as arrancasse. Que havia de fazer?

— Que são, pensava, — as chagas das minhas mãos, comparadas com a do que me aperta o coração! Não posso sossegar. Preciso acabar com a minha obra. Nosso Senhor não me há de desamparar!

Numa noite de luar, a pobre Elisa desceu devagarinho as escadas do palácio, saiu e chegou até cemitério da cidade, conseguindo apanhar um grande molho de urtiga e voltar furtivamente para o palácio.

Mas houve alguém que a viu sair e a seguiu. Era um camarista, que odiava a rainha, pois pretendia ver a filha no trono. Então, para se vingar foi contá-lo a Sua Majestade, insinuando que a rainha Elisa bem podia ser uma feiticeira.

O príncipe desatou a chorar, quando soube do caso: mas nada disse. Apenas resolveu espreitá-la.

Dias depois, faltando-lhe outra vez estopa, foi de novo ao cemitério. Mas, dessa vez, seguiram-na o rei e outras pessoas. Viram-na caminhar direito a um rancho de harpias medonhas que estavam sugando o sangue de um cadáver.

O rei não quis ver mais, supondo que a gentil menina que tanto estremecia era na verdade uma bruxa repugnante. Mandou chamar juízes para julgarem a feiticeira. A rainha foi condenada a morrer numa grande fogueira.

Atiraram-na para uma fria e úmida masmorra. Por escárnio, deram-lhe para cama o molho de urtiga, que apanhara no cemitério, e por cobertura as túnicas que tecera.

Elisa, continuou logo com o seu trabalho rezando.

À noite, ouviu um bater de asas contra a grade da masmorra. Era um cisne o mais moço de todos os seus irmãos. Tinha conseguido descobrir onde ela parava.

A moça, por um triz, ao vê-lo, não soltou um grito de alegria, mas pode conter-se a tempo. Que lhe importava morrer se os irmãos viriam junto dela, e quebrariam o encanto funesto, antes de deixar a terra?

Pela madrugada bateram à porta do palácio. Eram os onze príncipes que pediam para falar ao rei. Os guardas disseram-lhe que não podiam ir acordar Sua Majestade. Insistiram, pediram e ameaçaram, batendo à porta como uns desesperados, e tanto fizeram que apareceu a escolta. Nesse momento rompeu o primeiro raio do sol, e os onze príncipes sumiram-se por encanto, e viu-se uma nuvem de cisnes, pairando por cima das torres do palácio.

A multidão enchia a praça da cidade. Todos queriam ver queimar a feiticeira, que chegou numa carroça muito velha, puxada por um cavalo lazarento. Continuava a trabalhar com uma ânsia que não é possível exprimir, enquanto os dedos voavam no trabalho, a alma rezava, pedindo a Deus que a não abandonasse.

Trazia na carroça as dez túnicas que fizera. Quando lhas quiseram tirar, deitou-se de joelhos aos pés do carrasco, e olhou para ele com um ar tão suplicante, que o homem não pode recusar-lhe o último favor.

A multidão cobria-a de injúrias.

— Fora a bruxa infame! Não veem que está dizendo palavras mágicas! Vai fabricando algum feitiço horrível! Por que é que não lhe prendem as mãos? Talvez que por parte do demônio, ela fuja antes de chegar à fogueira! O melhor é darmos cabo dela!

E seguraram a carroça, para rasgarem as túnicas — quando chegaram, fazendo enorme bulha, onze cisnes lindíssimos, que rodearam a pobrezinha, dando para a direita e para a esquerda, vigorosas bicadas. O povo, assuntado, recuou.

— É um sinal do Céu! — murmuravam os melhores. — Talvez esteja inocente!

Mas não se atreviam a dizer alto o que pensavam. Elisa tinha descido da carroça, o carrasco já lhe pegara na mão para atirar com ela à fogueira.

Elisa tinha descido da carroça, o carrasco já lhe pegara na mão para atirar com ela à fogueira.

Nisso os cisnes cercaram-na de novo. Ela atirou-lhes as túnicas, e apareceram onze príncipes lindíssimos. O mais moço tinha num braço algumas penas, porque à última túnica faltavam malhas.

— Agora já posso falar! — disse Elisa. — Estou inocente.

Contou o que se havia passado.

Enquanto falava, espalhou-se no ar um perfume delicioso; todas as achas que haviam trazido para fazer a fogueira, enraizaram-se, verdejantes e cobriram-se de flores.

Houve inúmeras festas na cidade. De novo celebraram-se as bodas da rainha, e daquela vez assistiram-nas também os onze príncipes tão adorados pela irmã.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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