5/04/2025

Quem Deus ajuda (Conto), de Figueiredo Pimentel


QUEM DEUS AJUDA

Wenceslau e Bonifácio, encontraram-se uma vez na estrada. Moradores ambos na mesma aldeia, conhecendo-se desde muitos anos, porque a fortuna não lhes sorria, iam em busca de sorte mais propícia. O primeiro guiava um burro carregado de fazendas, que ia vender de vila em vila, e Bonifácio, pobre, caminhava sozinho, arrastando grosso cacete.

Propuseram-se seguir viagem juntos, e começaram a jornadear, conversando sobre as dificuldades de vida com que lutavam, lastimando se o segundo, como sendo tão trabalhador, acordando sempre muito cedo, mourejando incansavelmente, nunca saía da miséria.

— Mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga... — disse sentenciosamente Venceslau.

— Qual! — retorquiu o outro. — Mais vale quem cedo madruga. Deus não se mete cá nos negócios da gente!

— Longo tempo discutiram, enquanto caminhavam.

Nenhum se convencia da opinião contrária, e para que aquilo se não prolongasse, apostaram. Colheriam a opinião da primeira meia dúzia de pessoas que encontrassem, perdendo Venceslau o burro e as mercadorias, se a maioria não fosse da sua opinião.

Um por um, foram consultados seis homens com quem sucessivamente toparam. Bonifácio era quem fazia a pergunta, e como indagava com a voz arrogante, manejando o grosso cacete, eram todos da sua opinião mais vale quem cedo madruga, do que quem Deus ajuda.

Em vista disso, Venceslau, perdendo a aposta, não teve remédio senão entregar o animal e as fazendas ao companheiro, que seguiu satisfeitíssimo, separando-se dele.

Mas nem por isso desanimou, embora se sentisse triste, lembrando-se que perdera o fruto de anos de trabalho e economia.

Ao anoitecer, morto de fadiga, deitou-se sobre uma grande pedra, que havia no meio do caminho, dentro de uma sorte de gruta natural. Achava-se dormindo tranquilamente, quando ouviu um grande barulho de passos e vozes que discutiam.

Receou que se tratasse de numerosa quadrilha de ladrões e deixou-se ficar imóvel, sustendo a respiração.

Prestando ouvidos, distinguiu o que se dizia. Era um conclave de demônios, que ali se reuniam todas as noites, em assembleia, para tratarem de negócios e discutirem.

— Por que razão será que a cidade de Santanópolis está flagelada por uma terrível seca? — indagou um deles. — Não há meio de aparecer água, em parte alguma, por mais que os engenheiros estudem e trabalhem.

— Fui eu quem encantou a cidade — respondeu o capaz dos diabos. — Para aparecer, basta que uma pessoa bata com um martelo na pedra que existe na montanha, e logo jorrará uma fonte abundantíssima. Ninguém sabe porém, o segredo, e Santanópolis continuará a ser vitimada.

— E porque é que a filha do rei está doente, quase a morrer? Todos os médicos têm sido chamados e nenhum deles atina com a moléstia. O soberano está desesperado...

— Ora! Os médicos são uns ignorantes de marca maior — retorquiu o príncipe das trevas. — A jovem princesa tem uma solitária. Se a mergulharem dentro de uma tina de leite, a bicha atraída pelo cheiro, sairá e ela ficará completamente restabelecida.

Venceslau ouviu tudo. Durante muito tempo os demônios continuaram a confabular, mas nada mais disseram de interessante.

Pela manhã, assim que rompeu a aurora, os diabos fugiram. Venceslau levantou-se, e dirigiu-se para Santanópolis.

Aí chegando, certificou-se da seca, e dirigindo-se aos engenheiros do governo, propôs-lhes abastecer a cidade, dentro de cinco minutos se lhe dessem grande quantia.

Aceita a proposta, fez retirar todos os operários, bateu com o martelo na pedra, e a água correu.

A cidade estava de luto. Reinava o desespero, porque a jovem princesa, amada por todos, boa, meiga, virtuosa e pura, agonizava. O soberano havia prometido todas as honras e grande fortuna, a quem a salvasse.

Venceslau apresentou-se, fingiu que examinava a enferma, e declarou que estava com solitária. Mandou vir leite, com que encheu uma banheira, e nela mergulhou a moça.

Atraída pelo cheiro, a solitária começou a sair — mais de vinte metros tinha a bicha. Desde logo a princesa voltou à vida, e sentiu-se bem disposta, jantando com devorador apetite.

O rei, agradecido, concedeu ao aldeão carta de nobreza, e deu-lhe imensos tesouros.

Voltava ele para a sua aldeia, rico e feliz, quando se encontrou com Bonifácio. O companheiro estava em estado deplorável, abatido, prostrado, na mais completa miséria.

Fora atacado por bandidos, que lhe roubaram tudo quanto possuía e não conseguiu achar trabalho em parte alguma. Mas não se achava curado ainda, e repetiu:

— Mais vale quem cedo madruga, do que quem Deus ajuda.

Venceslau contou-lhe as suas felicidades, e ele resolveu ir pernoitar na gruta de pedra, esperando ouvir a conversa dos demônios.

Achava-se instalado, quando chegaram os diabos. Antes de começarem a assembleia, disse o chefe:

— Acho bom examinarmos se haverá por acaso algum indiscreto, ouvindo-nos. Em Santanópolis já há água, e a filha do rei está curada. Com certeza foi alguém que ouviu a nossa conversa, na última reunião.

O desgraçado não pode fugir.

Os demônios, encontrando-o, moeram-no de pancadas; e o pobre aldeão, agonizando, exclamou, a expirar:

— Ah! Venceslau tinha razão! Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga!...



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

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