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1/19/2020

Luís Delfino - Livro "Atlante Esmagado"




A GRANDE LÁGRIMA

Ignari hominumque locorumque...

Virgílio — Eneida

Vem. Há uma ilha ignota
Para mim e para ti:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...

Multa alegria em teus olhos,
Muita testa em cada flor:
A vida um mar sem escolhos
À sombra de nosso amor.

Enchendo o espaço, cobrindo
De almo alvoroço e prazer
O sol do teu rosto lindo,
Que tudo faz esplender.

Minha alma as asas abertas,
Fremindo nas tuas mãos
Por essas praias desertas...
Os corações — dois irmãos...

A vida um hino eviterno
Em duas liras num som:
Dois numa barca ao galerno...
Ai! como isto tudo é bom!

Mas olha: deixa a cidade,
Fujamos, fujamos já:
Beba-se até à ebriedade
Os raios de ouro, que inda há

Dentro da taça da vida...
Que não o veja ninguém:
O gosto bom da bebida
Às últimas gotas vem.

Como duas borboletas
Brinquemos num vale a sós:
E o próprio vale, se isto aceitas,
Que inveja vai ter de nós!

Vamos. — No bosque vizinho
Arrulham as juritis...
Vou lá fazer nosso ninho:
Vem: olha, vais ser feliz.

Tu, lá chegando, adivinha...
Há conspiração geral:
Hão de aclamar-te rainha
Todo o bosque e todo o val.

Ouvirás as sinfonias
Das palmas e dos rosais:
Fauno a dar-te alto os bons dias,
E a dar-te baixinho os ais...

Prepara-te, foge, voa...
Não cismes, que então não vens:
Guarda-te a aurora uma coroa
De lírios, rosas, cecéns.

Um lago, em nesga do prado,
Dorme, líquido lençol,
E tem no seio engastado
Um grande diamante — o sol.

Descalça teus pés, desdobra
Nesse límpido cristal
Teu corpo, e o sol, — grande obra, —
Apanha e põe no sendal.

À noite, os dois alabastros
Dos teus pezinhos tu pões
Entre o barulho dos astros,
Saltando na água aos milhões,

Neles bulindo aos cardumes
Alegres, com tal rumor,
Que começo a ter ciúmes
De ver-te os pés na água pôr.

Onde o sonho me arrebata;
Onde o desejo me quis!
Estamos já dentro da mata;
Lavas já teus pés gentis...

Como é bela esta ilha ignota:
Vamos pois viver ali:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...

Vamos já, pois fica certa,
Que, se olhares para trás,
A ilha fica deserta,
Eu não vou e tu não vais.

Custa pouco o inconveniente
De não ires e eu ficar:
Uma lágrima somente
Grande... amarga... como o mar!...



A NOIVA DO CADÁVER

O, if thou teach me to believe this sorrow,
Teach thou this sorrow how to make me die,
And let belief and life encounter so
As doth the fury of two desperate men
Which in the very meeting fall and die!

Shakespeare — King John

Vinhas tocada de um bulcão violento,
Pobre folha duma árvore arrancada;
A palidez da morte debuxada
No rosto macilento:
Teus pés traziam tua formosura,
Como uma estátua em base mal segura,
Que oscila e varre o vento...

Com tuas mãos tão brancas como as penas
De alva pomba, que treme e sente frio,
E as leves asas róridas sacode,
De as ter molhado ao rio,
Abriste a porta trêmula e chorosa!...
Nunca a aurora molhou mais branca rosa
De esplêndido rocio.

E os dois astros seguiam do oriente
Par a par, em serena claridade,
Diante deles toda a imensidade,
Deus inda mais adiante...
Eis de repente um deles cai sem lume!...
Viu-se o golpe: ninguém ver pode o gume
Da espada fulminante!...

Tinhas a rosa dos vergéis dos sonhos
Colhido já e quase no teu seio:
Mas quem assim tão de repente veio
Roubar-ta, ó linda amada?
Quando uma voz te disse: — é morto o noivo: —
E ias pegar na rosa e viste o goivo...
Caíste fulminada!...

O raio que golpeia o monte, a rocha:
O furacão que os ápices procura,
Caiu sobre o teu sonho de ventura,
Como uma águia cobarde:
Ó fina flor de tão suave aroma,
Para salvar-te um Deus nem tarde assoma?
Não vem... nem mesmo tarde?

Como te palpitou o peito ardente,
Que mágoa ou que prazer encheu-te o seio,
Quando o teu lábio a sua fronte algente
Beijou em doce enleio?!...
Que fez teu coração dilacerado,
Quando sobre o seu corpo debruçado
Tinhas teu corpo a meio?

Quando o teu jovem sangue espadanando,
Enchia de calor teu corpo inteiro,
E fazias de ti seu leito brando,
Seu doce travesseiro?
E co'a boca colada à sua boca,
Querias dar-lhe, ó linda amante louca,
Teu sopro derradeiro?!...

Estava adiante a mocidade e a vida,
Tudo o que a alma procura, anseia, anela,
De primavera esplêndida cingida
De um noivo a fronte bela:
Era o doce mancebo que sonharas:
Ias com ele em breve às santas aras,
Ó cândida donzela.

Oh! como a dor te acentuava o rosto,
E cinzelava os teus mármores traços.
Eras a eterna estátua do desgosto,
Caídos os dois braços.
Derreado o cabelo, o gesto insano,
Como soluça, arqueja e chora o oceano,
E se rasga em pedaços...

Só com ele na alcova e tu coberta
Do teu dó, do teu luto e desvario,
Vinhas ver o espetáculo sombrio,
Mas não... mas nunca aquilo:
Ver-te e não levantar-se?! Oh! desgraçada!
E um momento ficaste mutilada,
Como a Vênus de Milo!...

Eu vi um quadro assim: era uma cópia
(Fiel a cri) de uma mulher de Guido:
Pelas dobras do colo e do vestido
Revolvida a melena,
Pálida a fronte bela, olhos vermelhos,
E abraçando um cadáver de joelhos:
— Jesus e Madalena. —

Tinhas dessa mulher santa a atitude
De estátua derrubada e a forma e o encanto:
E na aflição, no soluçar, no pranto,
Eras bela e sublime!...
Porém, com ela, em seu sofrer violento,
Só te não perturbava o sentimento
De uma culpa, ou de um crime.

Morto aí estava!... Ai!... morto!... e na primeira
Primavera da vida amena e doce!...
E a louca Ofélia se pusera à beira
Do berço em que dormia!...
Dormia ali o amante um sono infindo!
—Acorda... acorda... — E dela o braço lindo
Embalde sacudia!...

Ó pobre Ofélia, Ó mármore esculpido
Com tanta graça e esplêndido em brancura,
Que te dizia o teu amante ao ouvido
Na impassível postura?
Sentiste-lhe saltar alguma fibra?
Aquela carne não tremeu... não vibra
Sob a tua mão tão pura?...

Nada te disse, nada te dizia!...
Eras na dor, no prantear sozinha!
Ele que ontem a poeira beijaria
Dos teus pés de rainha,
Estava mudo na dor que te elevava,
Ele escravo que agora, como escrava,
Plangente aos pés te tinha.

Mas como te arrancaram desse leito
Em que dormia o teu porvir brilhante?
Ai! quem pôde soprar-te a vida ao peito,
Sem te animar o amante?
Viúva rola que não sais do ninho,
E esperas vê-lo à volta do caminho
Surgir a todo o instante!...

Oh! não virá! — Não acharás conforto
Na sua imagem límpida e querida:
Teu pobre amante a âncora da vida
Lançou no eterno porto;
Mas como eu bendissera igual instante,
Se foras tu a minha triste amante,
E eu fora aquele morto!...

Teus infantinos, delicados ombros
Vergam com tanto peso de amargura...
Em tua doce e pálida figura
Ri-se a morte tão calma!...
Oh! reparte comigo... — eu sou robusto —
Dor, tristeza, viuvez, lágrima, susto,
As sombras de tua alma.

Quero medir a dor que conter pode
Uma alma, que talhou a morte em duas:
Sobre o meu coração, mulher, sacode
Todas as dores tuas...
Oh! dor, eterna filha dos pesares,
De que profundidões rompem os mares
Do pranto em que flutuas?...

Mulher tão linda que em mistério eu amo,
Se a violência da dor faz que sucumba,
Lancem-me a morte e Deus à mesma tumba,
Que eu quero acompanhá-la:
Como dois corações entrechocados,
Caem do abalo mortos, e enterrados
Dormem na mesma vala.

Dormem? Quem sabe? Há grandes desgraçados,
Mais do que tu, Romeu! nem são chorados!
Ninguém na terra os vê; e olhos voltados
Deles tem mesmo Deus...
Mesmo Romeu os apunhala e mata!...
Eles nasceram sob estrela ingrata,
E eram também Romeus!...

Vê-se desta mulher na fronte o sulco,
Que a dor... a intensa dor golpeara nela,
Como do anjo caído à fronte bela
A cicatriz da lança,
Com que o irmão o esmagou, conserva ainda:
E no dedo gentil da mão tão linda
Guarda o anel da aliança.

Reflexo eterno desse amor tão puro,
Tem nele a triste história ou vivo emblema:
Há coração tão rijo que não gema
De ver assim quebrados
Esses fios de pérolas brilhantes,
Que iam ligar num só os dois amantes,
E em lágrimas tornados?

Se há Deus, se a cova dá para o infinito,
Certo cadáver deve sentir inda
O corpo quente duma amante linda,
Trêmula de ansiedade,
Que o envolve nos seus braços, nos seus beijos,
E prolonga os seus últimos desejos
Até a eternidade.

Rola viúva e virgem, que eu não possa
Levantar o teu véu de negra renda,
Que à luz do sol do céu teus olhos venda,
E os venda ao meu amor!...
Oh! que eu não possa... que eu não deva amar-te
Mas ao menos comigo a dor reparte:
Dá-me toda a tua dor...

Eu sou também pra ti o amante morto:
Tu és a Ofélia que eu perdi no lago:
Nem eu posso pedir-te o teu afago,
Nem tos posso oferecer...
Somos os tristes mortos da esperança!
E a mim, como ao teu noivo, que descansa,
Nem me resta morrer!...

Ai! não teria, não, como o cadáver
Do teu esposo em breve e noivo apenas
O perfume das brancas açucenas,
E o aperto dos teus braços,
E o achego do teu corpo a um corpo mudo:
Ali restam do teu amor em tudo
Eternamente os traços...

Vives hoje na margem solitária
De uma lagoa plácida e tranquila,
Como o guará, que pra morrer se exila
Na espessura do mato.
Bela palmeira de haste derrubada,
Revês a coma verde inda enrolada
Nos cristais do regato.

E eu amo-te sozinha assim na sombra
Do sítio, em que ninguém te sonha e pensa
Chorando a tua dor profunda e imensa,
Pobre rola viúva...
Já não te alegra mais o sol que passa:
Ris talvez, quando o céu se despedaça
Em lágrimas de chuva...

Quando e como me veio este amor grande?
Como a luz doce dum luar de outono,
À meia noite, quando a terra em sono
Na sombra se reclina:
— Quem a desoras bate na minha alma? —
Eu perguntei: — e vi-te, estrela calma
Iluminando a ruína...

Como te visse, pareceu-me... (engano
Da alma talvez) mas eu o cri decerto,
Que era um arneiro amplíssimo e deserto
A minha vida inteira:
Que ia dela os grilhões levando a rastro,
E que eu te conhecia, como um astro,
Seguindo a minha esteira...

Eu te vi sempre... eu te conheço muito!...
Sempre te amei... oh! sempre te amaria...
Mas que eras tu, mulher, eu não sabia...
Ai! de mim! ai! de mim!...
Tarde... ai! tarde acordei!... Era já crime,
Beijar-te os pés até, mulher sublime,
Joia perdida enfim...

Tesouro de uma pérola sem preço,
Que eu vi rolar às margens do ribeiro,
Que eu deixei apanhar ao companheiro,
Sem me lembrar de vê-la:
Quando ele a teve, eu vi o que eu não tinha!
A culpa não foi dele: ai! foi só minha
De te perder, estrela.

Então eu pus o coração ao cepo,
E disse: — ó dor, em pé: levanta o malho;
Foi pedra o coração, fá-lo cascalho,
Bate nele e o tortura:
Sofre? castiga-o, — é teu dever: que importa?
Mata-o, pois, mata-o, — já que enfim está morta
A esperança da ventura... —

Como se cava o chão e se levanta
Mármores, bustos, capitéis, colossos,
Grandes ruínas, rútilos destroços
De impérios sepultados,
E novos templos rojam-se aos espaços,
Da própria dor levanta os teus dois braços,
Redoira os sóis passados...

E disse mais: — esse murmúrio baixo,
É como a queixa inútil do regato:
Como um ruído vão dum insensato,
Que fala e que não pensa:
Duram mais os espinhos do que as flores:
Anjos, não conheceis humanas dores...
Nem minha dor imensa.

Para secar as asas da sua alma
Molhadas pelo inverno em que caminha,
Já não esperou sol, como a andorinha
Num galho solitário:
Ficou do sol que a vida lhe há dourado
A lembrança — esqueleto iluminado
À luz dum lampadário...

Resta-lhe agora a noite de tristeza,
Salpicada de lágrimas; a vida
Como estátua de mármore caída
Em charco do aguaceiro...
Só fica neste inverno rigoroso
Tarda andorinha a voejar sem pouso,
Sem sol, sem companheiro...

Desestrelada noite, és triste agora!...
Mas como te respeito a dor sublime!...
Todavia responde-me se é crime,
Vir ver-te à solidão?
Anjo de asas abertas sobre o vaso
Que encerra as coisas desse amor, acaso
Não te falta um irmão?

Um dentro do sepulcro, outro de fora,
Sem um Deus que se erguendo — unam-se — diga:
Mas a saudade ao céu inda te liga,
Anjo a meto isolado:
Dize-me: no palácio que te abriga,
Não darás tu a um pobre, que mendiga,
Um cantinho ao teu lado?...

Se me negares tudo, a parca esmola
Do mendigo que bate à tua porta
Vergado, pois que leva a esperança morta
Dos ombros através,
Dos teus olhos — joalheiros de diamantes —
Se tens deles alguns menos brilhantes,
Um... atira-lhe aos pés...

Um distraído olhar de condoimento
Ao irmão na dor; um gesto compassivo,
Que acaso fosse um tênue lenitivo
À mágoa que o golpeia!...
Forjou bem forte o anjo da saudade
Essa, que a alma te prende à eternidade,
Insondável cadeia!...

Tenho uma grande lágrima tão quente,
Que era bastante só, pra derretê-la;
Mas invisível vai de estrela a estrela
O grilhão, que ao granito
Do túmulo te prende; — ele atravessa
O céu, os astros, cai na treva espessa,
E se estende ao infinito!...



NOTA

Este pequeno poema de ocasião pede um reparo. Era eu estudante e passava umas férias na Tijuca, numa pequena casa, branca, tímida, escondida entre o mato e para as vertentes que olham a lagoa de Jacarepaguá. — Nos frequentes passeios que dava pelos sítios escolhidos, solitários, de uma selvagem grandeza, que os amadores conhecem e que todos não compreendem, encontrei-me por vezes com um moço de distintas maneiras, triste, simpático e que se aprazia sobretudo dos lugares em que aquela natureza chora e soluça mais rude, mais delirante, mais grandiosamente.

Pouco e pouco fizemo-nos conhecidos. Conhecermo-nos, foi amarmo-nos.

Um dia, aos últimos raios do sol da tarde, comovido contou-me ele este episódio de vida íntima: Era seu amigo um jovem que morrera de uma síncope na véspera do consórcio. A formosa e interessante senhora, sua noiva, enviuvara um dia antes de efetuar o casamento.

Ele mesmo a amava reconditamente, em silêncio, dentro dos limites de sua consciência e do seu coração.

Motivo insuperável tornava inútil qualquer tentativa junto àquela mulher, presa agora a um sepulcro pela saudade e cuja chorosa viuvez a levantara ainda mais aos olhos seus.

Impressionado ainda, salpicado de suas próprias lágrimas, ainda a ouvir-lhe os soluços profundos, como arrancos de um mar em convulsão, envenenado do contágio de sua imensa dor, apropriei-me ao assunto; foi esta elegia a obra de um momento, que li no dia seguinte com certa comoção, parando de quando em quando, para deixá-lo chorar livremente.

Parece que o melancólico trecho palpitava de verdade, porque, erguendo a cabeça e cravando os olhos úmidos, vermelhos, e espantados sobre mim, perguntou-me com uma cólera mal disfarçada: conheces e amas também essa mulher?...

Apertei-lhe as mãos e sorri-lhe tristemente.

Eu nunca a vira.

Meu companheiro de férias reside hoje na Europa. A Senhora, que vi depois algumas vezes e que, em verdade, era adorável, creio que é morta há muito tempo, após ter viajado pela Grécia e pela Itália, países de grandes recordações e de grandes ruínas, onde as almas que desaprenderam o rir encontram os prolongamentos das suas tristezas, das suas recordações e das suas ruínas, como um eco de vida inteira de lágrimas.

O inútil poema não produzirá nenhuma impressão em ninguém mais. Que importa? Tinha sido só para ele. Ela mesmo nunca teria conhecimento nem dessa paixão, nem deste poema.

***

Hoje que se pública o canto elegíaco, todos são mortos, exceto o seu autor. — O tempo faz desaparecer tudo.

Luís Delfino



ATLANTE ESMAGADO

Um dia ouvi... (abismo eterno, onde caído
Um século jaz, depois de ter ouvido
Essa música doce, etérea, inebriante...)
Nos meus cabelos o teu lábio palpitante,
Como as asas de uma ave a tiritar medrosa,
Depor um beijo... ouvi!... Tua boca cor de rosa,
Ninho de colibri, ninho do teu sorriso,
Que tem mais esplendor que a ave do paraíso,
Tua boca, mulher, pousou nos meus cabelos.
Um céu!... Era demais! Dobrei os meus joelhos,
Vacilei ao luzir dessas constelações,
Que me vinham buscar em loucos turbilhões!
E eu tinha ao mesmo tempo o severo semblante
De Anteu, que vai cair, ou de esmagado Atlante.
Em torno a mim havia as serpes. Laocoonte.
Era Tifeu descendo o céu, e monte e monte
Despenhados sobre ele, após o infando crime:
Sentia a enormidade incógnita, que oprime;
De um excesso de luz estava a fronte ferida;
Era um deslumbramento imenso a minha vida.
Rolava por cairéis de abismos sem escolhos,
Com abismos nos pés, escuridões nos olhos:
Esmagava-me o céu descido do seu beijo:
Nunca até ele houvera ensaiado um desejo,
Quando vi de repente aquela chuva toda
De astros, que vinham nele a iluminar-me em roda...
E foi ele tão leve, e trêmulo, e queixoso,
(Que infinito há num beijo, ai! num beijo e seu gozo!)
Como o doce ranger das estreladas portas
Na noite silenciosa, em fundas horas mortas,
Quando pela calada a alma absorta cisma,
E olhando o azul ao suave e diáfano prisma
De um sonho alado crê, que um anjo, que resume
Todo o amor, que há no céu, todo o esplendor da aurora,
Vem ver-nos, estendendo a áurea fronte de fora,
Fugindo após, lanceado o coração de ciúme.

Luís Delfino - Obra "Atlante Esmagado"



A DOMADORA DE FERAS

I
A tua mão pequenina,
Onde cabe um mundo, eu sei,
Bem sei a gente imagina
Um mundo na mão de um rei,

Foi ao lôbrego escondrilho,
Em que rugia um leão;
Cegou-o: tanto era o brilho,
Que te escorria da mão.

E lhos passaste nas crinas
Fulvas, coroando a cerviz,
Os dedos das mãos divinas,
Os lírios de hastes gentis.

Como talharam Ariana
Montada num tigre audaz,
Superior à força humana,
Sobre o rei dos animais,

Com tanta graça subiste,
Graça, que à fera se impôs,
Que o leão, que estava triste,
Julguei-o alegre depois.

Eu ia de lado, vendo
O teu gracejo infantil,
Que tornava o leão horrendo
Tão manso que era imbecil.

Depois deixaste-o e vieste
Sentar-te junto de nós:
Mas no teu rosto celeste
Rugia um gesto feroz.

Tinhas as langues brancuras,
E as vagas inquietações
Da estrela em noites escuras,
Do mar à voz dos tufões.

E de umas altas esferas
Tu dizias com desdém:
— Meu gosto é domar as feras:
Faz-te fera, e depois vem.

Cresce, enraiva-te, salteia,
Vem depois, te hei de mostrar
Como em ter um grão de areia
Cai despedaçado o mar.

Com o movimento mais brando
De um dedo da minha mão,
Se quero, vê, quando eu ando,
Levo após mim um leão. —

Eu disse, ouvindo-a: — Deveras?
Pois só a brutos quer bem?
É domadora de feras?
Pois vou ser fera também.—

II
(Leão domado)

Quando eu tiver nos meus olhos,
Tiver no meu coração,
O que o mar tem nos escolhos,
E tem no seio o vulcão:

O que tem a tempestade
Nos relâmpagos sutis,
E a audácia, a argúcia, a crueldade
Das águias contra os reptis:

Quando indomado percorra
Arneiro, espaço, areais,
Quem me dirá que não corra?
Quem diz ao vento: — onde vais?

Como aí vai longe o deserto!...
Oh! que infinita amplidão!...
Ruge? — É o furacão decerto.
Brame? — É decerto o leão.

0s seus rugidos atrozes,
As suas cóleras pois
Têm o horror das mesmas vozes,
Têm um só grito ambos dois.

Sacode as asas o vento,
As crinas ergue o leão,
Luxuoso, rubro, opulento,
Terrível, como eles são.

Que vulcão flamante lhe arde
Dentro da órbita audaz!...
Tornar um leão cobarde!...
Quem pois é disso capaz?

És tu, mulher? — E tu podes
Fazer aos teus pés cair
Esse colosso de Rodes,
Sem também nos fazer rir?

Levar a mão à cratera.
E dizer: — para, — ao vulcão:
E, domadora de fera,
Fazer o mesmo ao leão?...

Tu podes tudo decerto:
Tu tens um condão fatal:
Mas... o leão do deserto
Dono e rei de todo o areal,

Domá-lo? vencê-lo? é crível?
Não... não o acredito eu:
Antes julgo mais possível
Fazer, como Prometeu:

Subir de qualquer maneira
Ao céu, a que já tens jus,
Trazer pela cabeleira
Um astro, sangrando luz.

A mim, não. — Guardo os audazes
Gestos de um rei secular:
Tu és a fonte no oásis,
No oásis o meu palmar:

E sob a umbela das matas,
Que Deus só fez para nós,
Rio em que mergulho as patas,
Que tem reflexos de sóis:

Pela extensão do deserto
És raríssimo nopal,
A cuja sombra coberto
Repousa o fero animal;

És a viração macia,
Que nos suaviza o calor;
A flor, que o aroma irradia,
E a graça da amada flor.

Guardo a minha liberdade,
Minha opulência de rei:
Do que é meu, da imensidade
Nem os limites eu sei.

Jamais contei as estrelas,
Os meus tesouros reais,
Quando me agarro, e vou vê-las
Na juba dos vendavais.

E já sentia-me irado,
Raspava as unhas no chão;
Seu belo corpo rasgado
Era a presa do leão.

Que carne branca tremia
Nas minhas garras fatais;
Que áurea luz de sol lambia
Nessas feridas mortais,

Que eu riscava no alabastro
Do seu corpo encantador:
Eu cria comer um astro,
E unhas no próprio sol pôr...

Chupava as datas frementes,
Vendo a púrpura luzir:
Passava a língua entre os dentes,
Grunhia, que era o meu rir...

Ou ódio, ou amor profundo,
No meu banquete de rei,
Quisera dizer ao mundo:
— Que sol na garra apanhei!

E esta, e outras quimeras
Inchavam-me o coração!
A domadora de feras
Ria-se; — e a um gesto da mão,

Ligeiro, doce, invisível,
Prendia-me; e a sua voz
À multidão, impassível,
Mostrava o leão feroz.

III
(Montada sobre uma estrela)

Oh! não desdenhes do leão domado,
Que por teus pés dormita,
Que deixou seu deserto abandonado:
Porque viver, morrer, — sendo ao teu lado,
É-lhe suprema dita.

Como o africano furacão pudera
Levantar-me violento,
E livre e solto por mais alta esfera
Dizer: — quem há que dome a altiva fera,
Quem há que dome o vento:

Quem há que amolgue o mar, quando o golpeia
A raiva da procela,
E o raio fulvo as clinas lhe incendeia,
E a vaga cresce, e espuma, e cospe à areia
Tudo o que anda por ela?

Eu sou o mar indômito, dormindo,
Como o leão domado,
À luz que vem dos olhos teus sorrindo,
E ao sol do rosto teu, ao sol mais lindo,
Que em céus haja brilhado.

Eu sou, podes dizer, a horrenda fera...
E pudeste contê-la
Num dos olhares teus, que amor só gera:
Ariana montava uma pantera,
Montas tu uma estrela.

Porque tudo tua mão amolda, e imprime,
Ó domadora enorme,
O que há de grande, e belo, e de sublime;
E a fera, e a estrela, e a maldição, e o crime
Calcado aos teus pés, dorme.

Enches o céu de luz, como as auroras,
E, como as primaveras,
Tudo o que tocas com teu dedo enfloras,
E tens aos pés dois astros como esporas,
Domadora de feras.



SOL ACORRENTADO

Não é um leão indômito: imagina
Minha alma um sol no espaço,
Que se equilibra, gira, anda, ilumina,
Que de lá desce à tua mão divina,
E acompanha-te a passo:

A teus olhos, esplêndidas argolas,
Em fio, que a teu grado
Colhes agora, agora desenrolas,
Vai minha alma, que te ama, e não consolas,
Um astro acorrentado...


MONÓLITOS

Rolam sem luz, estrelas desmaiadas,
Pobres princesas no aflitivo exílio,
Já sem as sombras que projeta o cílio
Franjado e grande as faces desbotadas.

De larva imunda esquálidas falenas
Destoucadas de frescas primaveras,
Têm o morno desdém das bestas-feras,
Que nem já os grilhões mordem apenas.

Descem dos lábios, pelas gastas linhas
Do rosto, uns risos, que parecem antes
As sombras mortas dos sorrisos de antes,
Quando elas tinham corte e eram rainhas.

Passaram, como em violento atrito
Entre as rodas de ferro da desgraça,
Assim como desfeito em voltas passa
Entre o ferro, que talha, o monólito.

O que é cada falena impura agora,
Sem luz nos olhos, sem pudor na fronte?
Sol que passou a linha do horizonte,
Pobre cadáver de formosa aurora.

Não as desprezem, não. — Foram pedaços
De mármore gentil esperdiçados,
Podendo ser em deuses trabalhados,
Ou para catedrais, ou régios paços,

Mas que o capricho do escultor numa hora
Fez hidras, fez leões, e fez serpentes,
E soltou-os esplêndidos, frementes
Sobre o mundo, que as beija, e que as devora.

Tu, austero filósofo, o que queres?
Não vês que o mundo as faz e as repudia?
E o sol, que te acalenta, as alumia,
E Deus quer bem as crianças e as mulheres?

Nasceram dóceis, virginais e belas:
A miséria do berço as pôs em terra,
As asas no seu lodo aperta, encerra...
Ai! pudessem fugir... iriam nelas.

Lodo por lodo, o lodo mais brilhante,
Cheio de aroma embriagador e festas,
De noites mornas e amorosas sestas,
Longas ânsias de amor em breve instante;

Nas taças cheias de licor que embriaga,
E adormece a razão e o amor acorda,
Que em doidos sonhos de prazer transborda,
E com mãos de cetim nossa alma afaga:

Deixaram aí as asas penduradas,
De infindas bacanais na louca cena:
Aí foram perdendo pena e pena,
E o rico véu das ilusões douradas.

Morrei bem cedo, ó mortas formosuras:
Morrei... morrei bem cedo: — entre os destroços
De vosso corpo surgirão os ossos
Brancos, bem como os das Vestais mais puras.

Deus, que perdoa os hórridos delitos,
Talvez vos dê no céu novos altares,
Vós, que andais pela terra e ides milhares
Esmigalhadas, como monólitos...


DEAE IRRITABILIS MANUS

Não vês naquela mão a irritabilidade
De um pássaro gentil, nervoso e fugitivo?
Recua, e voa, e foge à possibilidade
De tocá-lo de leve um dedo convulsivo.

Como se encrespa um lago e as águas amarrota
A pontinha de uma asa ali passando acaso,
Fica a gente a cismar, e fundamente nota
Que crispações verá naquele humano vaso...

O que se passa em todo aquele ser convulso?
Que estrelas encherão o abismo de sua alma?
Quem poderá tomar-lhe o rebater do pulso?
Quem pode atravessar sua aparente calma?

Descer de todo o ser à profundeza imensa,
Ir do espírito ao fundo, — oceano que ressona, —
E ver o que ele sente, e sofre, e goza, e pensa:
Trazer do fundo mar qualquer coral à tona...

Qualquer coral, que mostre o que em si vive e sente,
Qualquer coral, que traga à luz o seu segredo,
E diga, quando quero a mão tocar somente,
Se acaso aquilo é ódio, ou amor, ou tédio, ou medo?!...



NOTURNO

That fools rush where angels fear to tread.

Pope

Per amica silentia lunae...

VIRGÍLIO — ENEIDA

I
Era à beira do mar um louco. — A vaga
Ia após vaga escabelada e a plaga
Desciam rindo ou rorejando em pranto
Glauco, em nudez, ao olhar da lua, enquanto
Num verde aflar, num sonolento esforço,
Cianótico o mar, rugoso o dorso,
O dorso azul de escamas prateadas,
Nelas metia as patas de elefante.
Ouvia-se, ao fugirem do gigante,
O rumor das pequenas gargalhadas,
Que iam a rir nas verdejantes bocas,
Quando umas a saltar sobre outras, loucas!
Como um bando de virgens tresmalhadas,
Esfuziavam de volta à branca areia,
Só para ter o delicioso gozo
De ver o velho, em cólera e espumante,
Vir de novo e de novo atrás voltar...
E estava à praia luminosa cheia
Desse vago rumor que anda ao luar.

II
E era à beira do mar, e só. — As ondas
Já muito quietas, tímidas, redondas,
De largos pingos de ouro salpicadas,
Como fímbrias sutis, arrendilhadas,
De um manto enorme, real, desenroladas
Na nua praia branca e solitária,
Que se arqueia na curva graciosa
De dois braços, que querem recebê-las,
De um deus qualquer, que molda a mente vária;
Cosia o manto azul milhão de estrelas,
Que no contínuo e tépido balanço
Vão como cisnes de ouro ali de manso...
Cobre o mar fina espuma de um tecido
Fabricado em teares holandeses;
E estava assim tão belo e bem vestido
Como costuma estar bem poucas vezes.

III
E era à beira do mar, e só!... Ao longe
Em cada teso ajoelhava um monge.
No palor baço e turvo que a envolvia,
Ao sul e ao norte, a crespa serrania
Recortava o seu dorso colossal.
Os rochedos desnus dos altos cimos,
Como pedaços de cristal polido,
Refletem ao luar as mil facetas,
Num véu de gaza fina amortecido.
Iam brincar os raios dos planetas
Nas arestas de um mísero palhal,
E as tornavam de longe, sobre os mares,
Como as brunidas torres seculares
De uma marmórea habitação real...
Névoa impalpável, úmida, ligeira
Acariciava a natureza inteira,
Hausto largo de um beijo virginal...

IV
E era à beira do mar, e só. — A lua
Em leito mole reclinada e nua,
Calma viúva, inerte e solitária,
Quase estagnada como a luz de um poço,
Morbe, como o rumor de uma plegária,
Parecia cismar num noivo moço.
A luz de um poço... um poço no deserto,
Que inda está longe e está-se a ver tão perto...
E um poço azul num céu azul cavado,
Céu, cuja curva doce lado a lado
Dessa abóbada imensa o espaço ampara:
E a luz fluida de um poço em todo o espaço
Devera envenenar e a quem provara
Dera ainda mais sede e mais cansaço...
Lua, filha da dor e da saudade,
Serás viúva em toda a eternidade...
Tu irás só por todo o teu caminho,
Nenhum beijo de amor, nenhum carinho;
Cheio de sonhos teu aflito peito,
Sem companheiro em teu divino leito!...
E o que é pior, sem mesmo uma esperança...
Dize, viúva do amor, a dor não cansa?...

V
E era à beira do mar, e só... — Findara
O mês de março: o outono, que começa,
Respirava uma límpida bafagem,
Raro incenso cercando a luz de uma ara;
E nessa hora da noite azul, e nessa
Exalação suave, que a envolvia,
Serena, calma, voluptuosa, e doce,
Enamorando a sua própria imagem,
Se desatava a esplêndida baía
Como se a própria Guanabara fosse
Que do fundo do mar ali surgia.
As brancas velas túmidas, inchadas
Pelas noturnas, frígidas rajadas,
Como lâminas de aço embaciado,
Iam cortando o ar a punhaladas,
Por um braço invisível manejadas.
Eis um drama da noite recitado
No palco azul da vaga luzidia.
Como um lago de forma circular,
Até aos pés dos Órgãos a baía
Se estende, como um céu que vai quebrar.
As ilhas que lhe dormem pelo seio,
Cheias de luz, pousando sem receio,
Parecem aves de ouro a ressonar.
Nas montanhas mais próximas, banhadas
De luz mais branca, e nessas afastadas,
Em fundo mais escuro e vaporoso,
Como um bando de pombas em repouso,
Ou também como grandes mariposas,
Aqui e ali, mais longe, abaixo e acima,
Encolhidas no flanco as largas asas,
No dormir a sonhar das grandes coisas,
Que um raio acorda e que uma voz anima,
Entre flocos de luz as níveas casas
Riem pra o céu profundo as telhas de ouro.
Era uma velha revestida em monge
O Pão de Açúcar, que se via ao longe,
Velha indiana de pedra, sem cocar,
Cuja cabeça nua ao luar brilha,
Glaucamente inclinada e olhando o mar:
Parece inda chorar a linda filha,
E sobre a prata líquida, que cobre
A cova sua, como lapa enorme,
Sentinela avançada, que não dorme,
Recurva o busto amorenado e nobre.
Além o oceano majestoso para:
Aquém, no manto escuro de granito,
Há séculos que chora a Guanabara,
Muda e inda soltando um mudo grito.
Os outeiros ao pé, seu leito outrora,
De veludos de relva estão cobertos,
Dos seus lençóis esplêndidos desertos;
E onde a fria nudeza alpestre mora
Foram tálamos régios e opulentos,
Cujas cobertas de esmeralda fina,
Sob as tendas do céu à chuva e aos ventos,
Uma e uma esfizeram-se em ruína.
E os criptogamos, epitáfios lentos
Que o tempo escreve, o tempo a ler ensina.

VI
E era à beira do mar, e só. — De tudo
Isso era parte um louco... um louco e mudo!
Ele estava no céu, no mar, na lua,
Nas encostas da serra, onde flutua
Dentro, no meio do matal maciço,
Sempre cheiroso, e em flor, e sempre em viço,
Um clarão lirial pelas abertas,
Como um bando de Dríades em dança,
Que numa volta espalma-se e descansa
Em posições fantásticas, incertas:
Aqui e ali na imagem vaporosa
Que a luz da noite vagamente aviva,
E que de roupas mal cosidas veste,
Como falange esplêndida e celeste,
Que os deuses deixam vir dos seus Olimpos,
Por caminhos do céu, de nuvens limpos,
Nas virações, nos barcos, nas ilhotas,
Junto, na praia, ao longe, nas remotas
Colinas e nos mil rumores vagos,
Nos vergéis, que andam rindo ao pé dos lagos,
E florem sempre, perfumando os ares,
Da natureza em rútilos altares,
Que sustentam o que grande e etéreo há na arte,
O louco estava em tudo e em toda parte,
Como de tudo um átomo esquecido.
Mas dentro em tudo, em tudo enfim metido.
Ele cria que tudo — céus e estrelas,
Quantas vê, quantas há, sem poder vê-las.
Ele e o vento, onda e mar, acesos lumes,
Vozes, rumores, músicas, perfumes,
A noite, e toda aquela claridade,
Num pasmo só, num único desejo.
Tudo esperava estranha divindade,
Obra feita de amor e luz de um beijo,
Que a vida remoldara num festejo
Tão longo como a mesma eternidade...
Velha história de amor, que é sempre nova,
Que anda sempre a oscilar do berço à cova.

VII
E era à beira do mar... Ela não vinha!
Espumava-lhe aos pés a alga marinha!
E o mar macio, lânguido, domado,
Dos clarões do luar incendiado,
Menos água, que os olhos seus, continha.
Ele sentia o vago inquietamento,
Que atinge a noite em todo o firmamento,
Que tem o mar, com que soluça o vento,
Com que para o seu fim tudo caminha;
Sobrava-lhe o infinito do desejo:
Cada rumor lhe parecia um beijo,
E essa sombra de um beijo inda o sustinha,
Fluida ambrosia enchendo uma cratera,
Em que ia, segurando as duas asas,
Beber o céu, os sóis e a primavera.
Talvez, porém, na palidez serena
Do seu rosto suave e doentio,
A sua alcova límpida e pequena
Iluminava, se escondendo ao frio.
Nas ondas loiras dos cabelos dela
Depor quisera todo o firmamento,
À branca fronte o olhar de uma gazela,
Astros em roda, em giro sonolento!
Sonho de amor, que se prateia à lua,
Que abre de noite como o cacto expande,
Que das Quimeras entre os sóis flutua,
E que é, como albatroz, em azuis só grande!...

VIII
Quando o dia voltar, trazendo aos ombros,
Como um rochedo de ouro o sol polido,
Nos cinábrios do esplêndido vestido,
Toda envolvendo-a um flavo pó de escombros,
Escondendo esta noite e o luar brando,
Onde estará o louco desnoitado?
Por onde ele andara peregrinando?
Em que deserto ele refaz seu sonho?
Em que vórtice novo irá levado,
Vórtice novo, feio, atro, medonho?
E esta noite tão lânguida e serena,
Pelo beijo de um deus qualquer sagrada,
Que entre frouxos de luz se morre, e é pena!
Quem a terá nos seios seus guardada?
Acres brisas da noite, ó doce alento,
Em que o ar do seu peito se mistura,
Ide mexer-lhe o branco cortinado,
E roçar, quase a medo, a fronte pura
Dessa angélica e suave criatura,
Já que o não pode o mísero e coitado!...
Em que musgo se aninha uma ventura!...
Noite... noite de amor, como hás passado?
Mas ficaria o teu reflexo puro,
Para lembrança eterna do futuro,
Nalgum canto do céu iluminado?
Quem saber pode a triste história a fundo
Dos loucos sonhadores deste mundo?!...