Mostrando postagens com marcador Depoimento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Depoimento. Mostrar todas as postagens

3/04/2019

Um depoimento sobre Monteiro Lobato


Um depoimento sobre Monteiro Lobato 

Ao descer na estação Roosevelt de uma estafante viagem ao Rio, pela Central, segunda-feira, 5 de julho último (1948), às duas e meia da tarde, acelerava o meu passo à procura de um táxi quando, ao passar por uma banca de jornais, deparei com a notícia : "Faleceu Monteiro Lobato ".

Fiquei estarrecido com a nova, como se tivesse perdido mais um parente próximo. Chocou-me profundamente saber do desaparecimento do ilustre cultor das letras pátrias, não tanto pela figura consagrada do escritor emérito, nem pela sua atitude desassombrada ao examinar certos problemas do país, mas porque fora ele o meu primeiro chefe.

Conheci pela vez primeira o trabalho ao lado de Monteiro Lobato.

Volvamos ao passado. Era por volta de 1919. Perdera o meu pai na famigerada gripe de 18. A família desnorteada mudara-se para o interior, acompanhando uma irmã que havia sido nomeada professora em Pirassununga. Para não perder tempo, entrei para a Escola Normal. Não tinha pendores para mestre-escola. No ano seguinte, transferi-me novamente para São Paulo, Era preciso prosseguir os estudos. E de que forma? Os meios eram escassos. Queria empregar-me de dia, pelo menos para pagar a escola que cursava à noite. Alarico Caiuby, secretário da "Revista do Brasil", ofereceu-me um lugar de "boy" ou menino de recados. Aceitei.

Monteiro Lobato havia adquirido a Revista e começava suas primeiras edições. O homenzinho tornara-se célebre, pois havia sido lançado pelo grande Rui Barbosa e citado por este num dos seus memoráveis discursos da campanha presidencial, nos seguintes termos: "Conheceis, porventura, o Jeca Tatu dos "Urupês", de Monteiro Lobato, o admirável escritor paulista?" ...e por aí prosseguia.

Eu entrava na "Revista" ao meio dia. A hora era de almoço para os da redação. Eu ficava sozinho e me entretinha com a leitura das obras já editadas, na ocasião, poucas... Os volumes estavam dispostos em uma grande estante de pinho, à direita da entrada, na primeira sala, até o teto, na qual também eram colocados os exemplares da "Revista", publicação mensal, que contava na época a melhor colaboração das letras do país, inclusive a de Rui Barbosa.

Ocupávamos duas salas: a da redação, propriamente dita, e a contígua, que era a do escritor, onde se reuniam os "sapos", como eram chamados os intelectuais e simpatizantes, artistas e demais amigos de Lobato, entregues a tertúlias e a toda a sorte de discussões sobre política, arte, literatura, anedotas, xadrez etc.

Monteiro Lobato já colaborava no "O Estado" em 1916. A prova disso é que o nº 3 da "Revista" de março desse ano transcrevia, na resenha do mês, o seu artigo publicado nesse jornal, sob o título "Cidades Mortas", que mais tarde serviu de capítulo inicial ao livro de igual nome, em seguimento ao "Urupês".

Retratando fielmente as velhas cidades do vale do Paraíba, Lobato assim se expressa, quando se refere aos meios de comunicação: "Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postais à garupa, murchas como figos secos."

Falando das velhas fazendas senhoriais e das lavouras em abandono, assinala a sua decadência, notando o que vai pelo caminho: "Outras vezes o viajante lobriga ao longe, marginal à estrada, uma ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxima-se lentamente, ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida, permanece imóvel. Chega-se ainda mais, franze a testa, apura a vista: não é ave, é um objeto de louça... O progresso cigano esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telefônicos... E ele, imóvel, lá ficará, atestando mudamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que o relento consuma o rijo poste de "candeia", ao qual o amarraram um dia, no tempo feliz em que Ribeirão Preto era lá..."

Deixei a Revista em julho de 1920. Peguei uma gratificaçãozinha e saí correndo. Desci as escadas que davam para o corredor do simpático teatrinho, há pouco demolido, para galgar as de 7 de Abril nº 67 e penetrar, entre tímido e ofegante na sala do Tráfego (Estação Quatro e Interurbano). Foi aí que, ao iniciar-me, avistei-me pela vez primeira com o rapazola cheio de vida e otimismo, disposto à luta, hoje com justo valor elevado à alta função dirigente máximo da Companhia Telefônica Brasileira, no Estado de São Paulo.

Nunca mais me aproximei de Monteiro Lobato. Em 1924 precisei de um favor da Casa Editora, em pleno apogeu da produção em massa. Associara-se a Octalles Marcondes Ferreira, substituto do Caiuby na Revista, hoje, por capricho do destino, dono de uma das maiores editoras do país — a Nacional. Fui recebido cordialmente e sem demora. Deram-me o atestado de que precisava. Lobato perguntou-me se estava satisfeito na Telefônica e indagou quanto ganhava. Informei. Não lhe quis tomar mais tempo. Despedimo-nos. De passagem abracei Antônio Oliveira, outro menino, companheiro de ida às gráficas e de "viagens" ao Correio, sobraçando enormes pencas de livros e revistas, para esparramar pelo Brasil afora a semente da boa leitura, num país onde os leitores se contavam a dedo.

No ano seguinte, viera a "débacle". Monteiro Lobato falira espetacularmente, levando de roldão creio que milhares de encalhes da autoria de ilustres desconhecidos que conseguiram ilaquear a boa fé do editor, imbuído da fertilidade inexaurível do vasto campo que ele visara, fácil de encontrar apreciadores para todo o gênero de literatura.

A maior parte da sementeira se perdera em terreno sáfaro. Mas boa porçãozinha caíra em chão ubérrimo. E germinara...

Operou-se o milagre. Hoje o Brasil já lê. E tem público para os seus livros. Deve-o a Lobato, que difundiu o gosto da leitura, não importa tenha sido este galardão de pertinácia a sua ruína, a sua primeira desilusão séria. A experiência custara-lhe demasiado caro.

O escritor que Rui Barbosa pôs em evidência transformara-se em editor comercialmente falido.

Por mercê de Deus, recuperamos novamente o escritor.

Nem pude, infelizmente, prestar-lhe a minha derradeira homenagem de homem anônimo da rua, acompanhando o féretro, como tantos outros o fizeram. Pelo adiantado da hora, naquela tarde de 5 de julho para mim nebulosa, não tive o consolo de estar presente com as minhas meninas, que tanto o admiravam, pois sabiam o carinho que devotava às crianças, mormente conhecendo que ele fora o "patrãozinho" do papai.

Nestas desataviadas linhas fica porém o meu preito de gratidão e de respeito ao escritor insigne, ao boníssimo brasileiro.


---
TARCÍSIO GRELLET
Revista "Sino Azul", setembro/outubro de 1948.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

3/03/2019

Coragem de uma atitude (Augusto de Lima)


Coragem de uma atitude
O poeta Augusto de Lima apresenta-se espontaneamente à prisão

No tumulto da vida moderna o homem nada vale. Perde-se como uma partícula insignificante, no oceano humano das paixões desenfreadas. Há, porém, sempre gestos que ficam vibrando como notas de encantadora harmonia e de incomparável beleza através do burburinho do tempo, para exemplo e enlevação dos pósteros.

Foi uma dessas atitudes de nobreza espartana, que tivemos a felicidade de assistir, cheios de orgulho pela ventura de sermos contemporâneos de uma época que produz vultos de tamanha proteção moral. 

É o caso que, ontem, quando na Central de Polícia, mais acesso ia o corre-corre e o pega-pega atrás dos políticos mosorqueiros do regime decaído, se apresentou, ereto e varonil, ao delegado auxiliar, o inspirado poeta montanhês Sr. Augusto de Lima... O bardo, que trajava calças curtas, trazia estampadas na face pergaminhada os vestígios de uma grande emoção.

A vos pausada e firme, o gesto seráfico de ave alcandorada, perante a autoridade constituída, disse: 

— Senhor delegado da zona do Rio de Janeiro. Acabo de saber de fonte fidedigna, que estão sendo presos e recolhidos à bordo de uma nave nacional, surta ao largo da plácida Guanabara, políticos carcomidos do regime que transmontou a 24 de outubro. 

Soube mais, que esses presos, no bojo do navio fantasma, estariam sendo tratados desumanamente a empadinhas de camarão, coxinhas de galinhas e ovos recheados, confeccionados por uma das mais reputadas confeitarias da metrópole brasiliana. 

Solidário integralmente com esses miseráveis expostos à vindicta do vencedor insaciável, venho espontaneamente declarar a vossa senhoria que, desde este momento, me considero preso e incomunicável. Carcomido como eles, sobrevivente de um regime, onde fui caudatário de todos os governos, sinto-me hoje réu do mesmo crime e paciente das mesmas penas, impostas àqueles dignos patrícios, para quem a fortuna desandou. Requeiro, portanto, uma escolta que me acompanhe, sob custódia, à escada do portaló da nave civil, em que estão encarcerados, sofrendo violências inqualificáveis, homens que podem ser, de fato, da pior espécie, mas que, em todo o caso, são nossos patrícios! Por um alto dever de solidariedade humana, sinto-me compelido a exigir para mim as mesmas penas que padecem os aproveitadores do regime deposto: — as mesmas penas, os mesmos camarões, as mesmas maravilhas! 

Dizendo isto, o busto ereto, com passo marcial e cadenciado, o ilustre porta-lira, dirigindo-se de encontro à autoridade, arrematou, entregando os pulsos em cruz para as algemas:

— Prenda-me!

A cena, rápida e violenta, eletrizou os circunstantes. Pessoas idôneas e contínuos choravam de emoção, o Sr. delegado, ainda sob a forte impressão daquele episódio comovente, imobilizou-se num gesto de espanto, diante de tanta abnegação. 

— Não! — pôde apenas balbuciar por fim o mantenedor da ordem — homens dessa têmpera não podem sofrer coação! 

E pronunciando estas palavras, com a vibração dum hino cívico, chamou o "prontidão" e ordenou-lhe:

 — Jogue este paisano no olho da rua!...


---
A Manhã, 28 de maio de 1932.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)