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4/03/2018

Napoleão e a Monarquia Portuguesa (Ensaio), de Rocha Pombo


Napoleão e a Monarquia Portuguesa



1 - Havendo imposto a sua política à Rússia (tratado de Tilsit, 1807) cuida o Imperador de completar o isolamento da Inglaterra, fechando-lhe ao comércio os únicos portos que ainda lhe estavam abertos na Península Ibérica. Submetida a Espanha, intima o ministro francês ao governo de Lisboa: a declarar guerra aos ingleses no prazo de vinte dias; e fechar os portos do reino e das respectivas colônias ao comércio inglês; a pôr os seus navios de guerra sob o comando da esquadra francesa; e, finalmente, a sequestrar todas as propriedades de ingleses existentes em território português, e a prender os súditos do rei da Inglaterra residentes ou de estada em Portugal.

Compreende-se a extremidade em que se viu a corte de Lisboa, sob o peso de exigências e imposições tão descabidas e absurdas, e que tanto humilhavam a nação. A própria corte de Londres reconheceu que Portugal não tinha meios de conjurar tais embaraços, e foi a primeira a sugerir e facilitar-lhe expedientes com que, ao menos, evitasse os maiores males, e sobretudo, o naufrágio da própria monarquia, exposta aos furores daquela tormenta.

Havia muito mesmo que o ministro inglês em Lisboa, prevendo este transe, insinuava ao Príncipe Regente, a conveniência de transferir para o Brasil a sede do governo. Aliás, não era nova essa ideia, pois desde os primeiros tempos se havia pensado em transladar para a América a sede da monarquia. É de crer que no espírito do próprio Marquês de Pombal andava em gestação um grande plano neste sentido. E agora, na fase em que entrou Portugal com a política de Bonaparte, o estadista, que mais nitidamente fundamentou o projeto da mudança da corte para o Brasil, foi D.  Rodrigo de Sousa Coutinho.

No momento, porém, a que se chegara, contestando nota do residente em Londres, dizia logo Canning que a esquadra inglesa estava preparada para transportar a corte para o Brasil, "em vez de fazer ao reino a guerra aparente que se lhe propunha".

Está-se vendo tudo. O que se pretendia em Lisboa era ter o reino poupado por uns e por outros; e para isso, enquanto se obedecesse ao Imperador, precisava-se das boas graças da Inglaterra.

2 - Propunha-se, portanto, ao governo de Londres, que não fizesse caso da adesão que se ia fazer ao bloqueio continental; que fingisse mesmo hostilidade aos portugueses, de modo a que o senhor supremo se convencesse da sinceridade dessa adesão. Ora, a Inglaterra toleraria decerto essa dubiedade escandalosa, mas não se tornaria comparsa consciente na comédia.

É o que explicava lorde Canning ao governo português.

Via-se de todo indeciso, nas suas aflições, o espírito da pobre corte. Nem as premuras daquele instante lhe deixavam calma para refletir nos expedientes a tomar. Naquela extremidade, o que todos querem é evitar as maiores desgraças, impedir os desfechos mais tremendos.

Depois de se haver entendido com o governo inglês, publicou o Príncipe Regente o decreto de 22 de outubro de 1807, ordenando que se fechassem aos navios provenientes da Inglaterra, e aos que a ela se destinassem, todos os portos do reino, "visto como (explicava) o governo português havia por bem aceder à causa continental, unindo-se a Sua Majestade o Imperador dos Franceses, e a Sua Majestade Católica, com o fim de contribuir para a aceleração da paz marítima".

Com semelhantes recursos não fazia mais a corte portuguesa senão complicar a situação desesperadora em que se via.

O governo de Londres tomou esse decreto, ou simulou tomá-lo, como formal declaração de guerra. O ministro inglês retirou-se imediatamente de Lisboa (mas ficou a bordo de um dos navios da sua nação); a esquadra britânica foi logo hostilizando navios portugueses, de alguns dos quais se apoderou; e tomou conta, outra vez, da ilha da Madeira.

O curioso é que quando a Inglaterra assim recebia a adesão de Portugal ao sistema do Imperador, deliberava este em Paris, de conluio com a Espanha, sobre a sorte do reino e os destinos da monarquia.

Segundo o tratado secreto de Fontainebleau, de 27 de outubro de 1807 (entre Napoleão e a Espanha), era Portugal dividido em três porções — norte, centro e sul —. O Norte, sob o nome de Lusitânia Setentrional, compreendendo as províncias de Entre-Douro e do Minho, com uma população de cerca de 800.000 almas, teria como capital a cidade do Porto. O Sul, compreendendo as províncias de Alentejo e de Algarves, com 400.000 habitantes, formaria o principado dos Algarves. O Centro, que era a parte mais importante, era constituído pelas províncias da Beira, de Trás-os-Montes e de Extremadura, com 2.000.000 de almas.

3 - No mesmo tratado já se fazia a distribuição dos três quinhões. O reino da Lusitânia Setentrional seria dado à rainha Maria Luísa, em troca da Etrúria, que ficava incorporada à França. O principado dos Algarves pertenceria ao famoso Príncipe da Paz (Godoy). O centro, ou Lusitânia do Sul. ficaria sob o domínio e proteção direta do Imperador, podendo este dar-lhe o destino que mais conveniente lhe parecesse, e até restituí-lo à dinastia de Bragança, se assim viesse a entender.

Ao mesmo tempo, ordenava o governo imperial que se retirasse de Paris, dentro de dois dias, e do território francês, no espaço de quinze dias, o ministro português D. Lourenço de Lima. De Madrid era igualmente despedido o Conde da Ega.

Ao ser notificado de medidas tão excepcionais e tão estranhas (isto é, da despedida dos ministros, pois o tratado continuara em absoluta reserva), sentiu-se em Lisboa que a catástrofe se aproximava.

Julgou, no entanto, ainda o governo de D. João, que poderia conter a refrega acedendo afinal a todas as imposições do Imperador: a 8 de novembro decretava a prisão de todos os ingleses que se encontrassem no reino, de residência ou de passagem; bem como o sequestro de todas as propriedades de ingleses existentes em Portugal.

E, enquanto se fazia isto, tudo se ia explicando ao governo de Londres.

Não seriam decerto estes os processos mais próprios para recomendar, no juízo da Europa, e dos próprios povos entre os quais se via, a causa de Portugal. Os ingleses compreenderam o que tinha de doloroso aquele aperto; e não era tanto de indignação, mas de dó e piedade o sentimento que o Príncipe Regente inspirava em Londres.

Tanto assim que lá não se pensou agora em desforço ou represália: antes o que se quis e resolveu foi amparar na triste conjuntura o velho aliado, que publicamente rompia a aliança, mas que em reserva procurava conservá-la.

4 - As sugestões, que desde muito se faziam lá de Londres, da retirada para o Brasil, tornaram-se agora instantes, à vista do perigo, que só o Príncipe Regente parecia não ver claro, na ilusória esperança com que se obstinava na sua estúrdia política de ficar ao mesmo tempo com o Imperador e com os ingleses.

Lorde Strangford (o ministro inglês), que não tinha (proforma) residência oficial em Lisboa, mas que vivia sempre da esquadra para terra, e vice-versa, punha em ação todos os recursos da sua lógica no sentido de fazer vingar naquela corte apavorada o único alvitre que parecia sensato e o único possível em semelhantes apuros.

Vê-se, pois, D. João, entre os dois partidos que se haviam formado na corte, o dos ingleses e o do Imperador. Compreende que o caminho que lhe indicava Lorde Strangford é o mais seguro; mas também sente que é o mais estranho, arriscado e aventuroso. Com que coragem havia ele, que tanto amava a quietação dos retiros, a normalidade serena da sua vivenda afastada de arruídos e livre de perigos, com que coragem havia de sair da sua paz e afrontar o desconhecido?

Demais: no fundo daquela compleição moral subsiste uma força que os males da vida e do ofício não tinham conseguido reduzir, antes pareciam aumentar: o instinto da terra, a afeição pelo seu povo, tudo isso que o prendia ao velho Portugal, e de modo tão íntimo que nunca lhe teria passado pela mente a existência fora daqueles ares.

Torturava-lhe a alma aquela ideia de fugir da pátria, abandonando tudo à impiedade de estrangeiros.

A essa irredutível repugnância de D. João, pelo proposto alvitre, tem de atribuir-se o caráter de precipitação que teve a retirada, quando é certo que a transferência da corte para o Brasil era a única medida de salvação, a única mesmo capaz de robustecer a monarquia periclitante e renovar o espírito da nacionalidade.

5 - O Príncipe, no entanto, não era homem para entender essas coisas, nem para arrojar-se a tão temerárias amplitudes. Com a sua timidez e ânimo apoucado, resistiu obstinadamente, emperrou-se como uma criança até o derradeiro momento, quando o abismo esteve à vista.

Chegou a parecer que ele tivera, nas vésperas da catástrofe, uma como súbita vigília de consciência, ou heroísmo reacionário, de natureza galvanizada pela desgraça; e que então se levantara, intrépido e clamante, para afrontar o vendaval que rugia. Disseram mesmo que ele próprio é que teve, não se dirá a resolução, mas a veleidade, de não sair da pátria, e esperar de pé firme as injunções do destino. Pensou-se então em providências destinadas a acautelar a sorte da dinastia. Entre as medidas, em que se confiava para isso, esteve a de se mandar para o Brasil o Príncipe D. Pedro, herdeiro da coroa. Enquanto ele se pusesse assim em segurança, recolher-se-ia a corte a Peniche, onde ficaria sob a proteção da esquadra.

Aventou-se, pois, cora o mais vivo entusiasmo este plano de fazer seguir para a América o Príncipe da Beira. E cuidou-se mesmo de dar-lhe execução.

As condições em que se ia fazê-lo eram difíceis. Nem se pode imaginar a situação aflitiva em que se encontra o reino; e ainda menos o que se passa em Lisboa naqueles dias.

Começa o êxodo dos ingleses, em consequência do decreto de 22 de outubro. Com isso sofreu o comércio subitamente uma depressão medonha. Os ingleses levaram a maior parte da moeda metálica. Todas as coisas encareceram extraordinariamente, sobretudo os artigos do consumo geral. O papel-moeda emitido pelo governo, e que era o único meio circulante, depreciou-se quase na terça parte. Cessou o trabalho e todo o movimento industrial.

E no meio de tudo isso, o terror da invasão francesa! "A todo instante viam-se os inimigos nas fronteiras".

Como era possível, em tais apertos, organizar a expedição que devia conduzir ao Brasil o Príncipe D. Pedro?

6 - Isso tudo não era menos que uma vitória do partido que o Imperador já fizera em Lisboa. E para coroá-la, chega neste momento de Paris o embaixador D. Lourenço de Lima.

Era este homem agora, "um instrumento" de que a diplomacia imperial, de conluio com a astúcia de Godoy, se servia para preparar o golpe de força contra o reino.

Enquanto o Imperador, com o seu gesto olímpico o despedia, procurava-o Talleyrand para insinuar-lhe o que estava no interesse da França, isto é, a desnecessidade da retirada da corte portuguesa, segundo se espalhara já por toda a Europa. Fez-lhe ver como a aliança com o Imperador era mais vantajosa para Portugal do que a política dúbia que estava seguindo a corte portuguesa. Persuadiu-o de que nada havia de hostil no governo de Paris contra a família de Bragança; mostrou-lhe mesmo como as negociações para um ajuste de paz e amizade prosseguiram não obstante o rompimento dos dois governos, contentando-se Napoleão com um simples simulacro de sequestro de bens dos ingleses, sem nada exigir contra a soberania e integridade do reino.

Tudo isto bem se podia ver que não passava de manobra ardilosa com que se queria retardar a saída da corte para a América, até que as tropas francesas chegassem a transpor as fronteiras, a caminho de Lisboa.

E D. Lourenço de Lima, que, em Paris, andava sempre quase completamente alheio ao que se urdia pelo alto, deixou-se agora engodar de todo pelas manhas do famoso chanceler; e pode-se dizer que aparecia em Lisboa quase como um emissário do Imperador.

7 - Com muito afã foi D. Lourenço de Lima agindo sobre o espírito da corte; e nada lhe custou acentuar as disposições em que viera encontrá-la, sendo no seu esforço ainda secundado pelo Conde da Ega, embaixador em Madrid, e que o astuto Godoy igualmente sugestionara no sentido da política imperial.

Num instante, se não se viu inteiramente modificada aquela atmosfera de aflições em que estava a corte, atenuou-se pelo menos aquele terror que suspendia a vida geral.

As notícias trazidas pelos dois embaixadores (Lima e Ega) confirmavam, pois, as tendências do partido francês, e fixou-se no ânimo de toda a corte a esperança de que ainda era tempo de tudo salvar conciliando-se as boas graças do senhor supremo.

Acreditaram todos que, rompendo de verdade com os ingleses e dando cabal execução aos decretos do Imperador, estaria Portugal perfeitamente livre da procela, e nem mais necessário seria mandar D. Pedro para o Brasil.

Andava assim às tontas a corte dolorosa. Agora, o grande inimigo está do outro lado da Mancha. Remetem-se de uma vez os passaportes a Lorde Strangford. Põe-se em pé de guerra todo o exército. Removem-se para a guarda da costa as tropas que guarneciam as fronteiras.

Talvez não se contasse em França e na Espanha com tantos disparates assim tão depressa...

O entusiasmo em Lisboa foi ao ponto de fazer-se logo partir, apressadamente, com destino a Paris, o Marquês de Marialva, encarregado de dar contas ao Imperador do modo, como se cumpriam no reino as suas ordens; e até munido de plenos poderes para entender-se com ele no sentido de selar-se por uma aliança de família o pacto de perpétua amizade que se queria fazer com o império...

Mas, o Marquês de Marialva, mal transpusera os Pireneus, via-se obrigado a retroceder espavorido, e reentrara no reino sentindo atrás de si o tropel dos invasores!


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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital

História do Brasil: Portugal e a Revolução (Ensaio), de Rocha Pombo


Portugal e a Revolução



 Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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1 - Nas vésperas da Revolução, achava-se Portugal, sob o aspecto político, em condições análogas às em que se viam os outros povos do continente. Sobretudo fora dos maiores centros urbanos, resignavam-se ainda as populações a sofrer uma situação muito pouco distanciada do pleno regime feudal.

As condições econômicas, e o próprio estado civil, decorrentes de tal situação, eram mesmo talvez mais penosos do que em outros muitos países da Europa, devido, principalmente, à fase de decadência que se acentuava na velha monarquia.

Mesmo depois do desvalimento do Marquês de Pombal no entanto, não se pode dizer que tivesse morrido de todo o espírito de reforma. Nem era possível que ficasse o reino inteiramente estranho ao que se passava em outros países. E a prova disso vão dar-nos as condições em que os primeiros movimentos de Paris vêm encontrar o sentimento geral da sociedade portuguesa.

Como os liberais de toda a Europa, tem-se ali os olhos voltados para a grande metrópole do mundo latino, principalmente depois da independência das colônias inglesas da América.

A ansiedade de todos os povos, à espera de que da França venham os sinais, torna-se alvoroço e quase delírio no momento em que Luís XVI é forçado a convocar os Estados Gerais.

Em parte alguma houve a princípio, no ânimo das próprias classes vigentes, a mais leve suspeita contra o que ia ocorrendo em Paris. Dir-se-ia que a atitude das cortes era mais de curiosidade e de simpatia dissimulada, que propriamente de indiferença. E isso, enquanto o que havia de mais culto na Europa dava sanção expansiva à coragem com que o povo francês tomava a responsabilidade de lançar as grandes reformas por que todos anseiam. Homens, que permaneciam identificados com a iniquidade, de um momento para outro acordam de alma agitada para as procelárias que anunciam a tormenta. Crer-se-ia, ao meditar fenômeno aparentemente tão estranho, que há, profunda e imperiosa, na consciência das nações, como na dos indivíduos, uma força de que elas só se apercebem e que só revelam nos grandes momentos da sua vida.

2 - Mas, particularmente em Portugal, as primeiras impressões, causadas pelos sucessos de Paris, eram positivamente de esperança e alegria.

Quando se recebeu notícia da convocação dos Estados Gerais, todo mundo acreditou que realmente do longo trabalho e do esforço de toda a cultura do século nada se havia perdido.

E é preciso notar que não eram apenas os intelectuais que saudavam o que se ia fazendo na capital francesa: entre os próprios políticos militantes, mesmo nos círculos oficiais, ninguém disfarçava simpatias pelo heroísmo do grande povo, nem mesmo depois que se definiram os acontecimentos pela abolição do governo absoluto.

O ministro português em Paris, Vicente de Sousa Coutinho, em cartas dirigidas ao famoso Luís Pinto, ministro de estrangeiros, começou elogiando, em termos calorosos, a mudança do regime, e acabou fazendo francamente a apologia da Revolução.

"Nos anais do mundo não se faz menção de um movimento como este, a que deram lugar os pérfidos conselhos que dirigiram ao rei, e o pouco conhecimento do século" — escrevia o embaixador a 30 de julho, depois, portanto, da tomada da Bastilha, e quando a Revolução já se acentuava nos seus intuitos sociais.

Pela sua parte, o ministro de estrangeiros emulava em entusiasmo com o embaixador; e a "própria Gazeta de Lisboa, órgão oficial da corte e do governo, saudava (diz Latino Coelho), com festivas aclamações, a tomada da Bastilha, a que chamava instrumento da tirania; e encarecendo muito a memorável sessão de 4 de agosto, em que a Assembleia Nacional abolira as últimas relíquias da feudalidade, desoprimindo da servidão a terra e  o povo, e estatuindo solenemente a igualdade civil entre as classes, outrora em antagonismo".

3 - Vicente Coutinho chegava, em suas cartas, tratando do que se fazia em França, a arriscar alusões muito claras à situação de Portugal.

Em sua opinião, "o que a França proclamava como remédio e lenitivo aos seus males, podia-se também aplicar, não somente àquela monarquia, senão a todas as da Europa, que dos mesmos achaques haviam largamente adoecido".

Logo depois, era ainda mais franco e explícito tratando da abolição dos antigos privilégios. "Aplaudia vivamente, sobretudo, a nova legislação, segundo a qual a pena e a infâmia não podia mais passar da pessoa do delinquente e chegava a pedir com insistência, à rainha, que decretasse, de sua autoridade e moto próprio, sem nenhuma intervenção de voto popular, tão justa providência, e quantas outras pudessem corrigir a barbaria da lei penal".

Bem se vê de tudo isso que o espírito do tempo sentia sem reservas como a antiga ordem política e social já era mais sustentável.

O que é certo, no entanto, é que naqueles primeiros instantes ninguém tinha ideia das proporções que os sucessos de Paris iriam tomar. Os próprios fautores daquela obra andariam longe de alcançar a diretriz que a Revolução tomaria.

Tinha, pois, de vir logo a surpresa para os próprios corações que se agitavam.

Não demorou que a atitude da Europa fosse mudando diante de Paris, e que aqueles mesmos, que tinham visto como um romper d'alva aquelas estranhas ocorrências, começassem a espantar-se daquilo mesmo que tinham aplaudido.

E aos primeiros movimentos de espanto houve por toda parte uma tal desorientação do espírito dominante que não se saberia dizer se era medo, terror ou indignação o que em toda as cortes se sentia contra a França.

A princípio, apesar mesmo das tendências que se não dissimulavam, as apreensões, que as novas ideias inspiram a todos os governos fundados na tradição, iam aconselhando medidas que pudessem evitar o perigo do contágio.

Em Portugal, como na Espanha, chegou-se a recorrer aos serviços da Inquisição, dando-se ao ominoso tribunal novas forças! Ao mesmo tempo proibiu-se a entrada de livros e jornais no reino; decretou-se a expulsão de muitos estrangeiros, principalmente franceses.

Esses recursos, afinal, não faziam mais do que, pela atmosfera de pavor que assim se criava, tornar mais angustiosa a situação; mesmo porque, apesar das cautelas, entravam sempre livros e panfletos subversivos. O intendente Pina Manique tornou-se famoso pelo extremo rigor e intolerância com que perseguiu suspeitos.

4 - Em toda parte, uma vigilância de guerra procurava guardar o país em alarma, isolando-o do incêndio ateado em Paris.

Aquele mesmo Vicente Coutinho, que tão radioso havia comunicado para Lisboa os pródromos da Revolução, mudava de ânimo agora, e só ante o decreto que abolia a nobreza e os títulos honoríficos, qualificando-o de "vergonhoso e impolítico". Tanto pesa a tara dos tempos na consciência dos homens!

E a mutação se fez rapidamente em todas as esferas. A Gazeta de Lisboa não deu mais uma nota sequer sobre as coisas da França, a respeito das quais, um pouco antes, se mostrava tão interessada.

Não se pense, porém, que semelhante reserva exprimia mais que o estado de ânimo da corte: como se estava a enfrentar com o desconhecido, o mais prudente era nada aventurar deixando documentos...

Assim pudesse Portugal guardar sempre essa continência.

Mas, vem a coalizão geral contra a França. Esta, no entanto, não espera pela ofensiva. E enquanto os exércitos da Revolução transpõem as fronteiras e vão levar ao despotismo conjurado o protesto da nova soberania — o movimento que se opera em Paris, até ali vacilante quanto à forma de governo, afirma-se decisivo no sentido de romper-se de todo com as velhas instituições.

Alguns dias depois dos massacres de setembro, a Convenção proclama a República.

E então começam no interior as complicações que convulsionam a capital e as províncias.

Em 1792 vai caindo a França no espantoso cataclismo.

O Terror faz estremecer a Europa inteira horrorizada.

Todos os governos do continente rompem com a França; e a eles, junta-se agora a Inglaterra, até aquele momento hesitante.

A intervenção da Inglaterra vence de uma vez as vacilações da Espanha. Teve Portugal de ir seguindo maquinalmente os passos da Espanha. Dissimulando, perante a Convenção, o mais que era possível, uma atitude tão estranha, entrega o governo de Lisboa a sua esquadra aos ingleses, e manda uma divisão auxiliar incorporar-se ao exército espanhol que vai invadir a França.

A campanha do Roussillon, e em seguida a da Catalunha, foram grandes desastres para espanhóis e portugueses.

5 - Com a paz de Basileia (1795) entram os negócios internos da República Francesa a assumir um aspecto menos aflitivo. Dissolve-se a Convenção; e constitui-se o Diretório. Em Paris, a revolta das seções é dominada.

E começa Bonaparte a fazer a sua inverossímil fortuna. Restabelecida a ordem na capital, parte ele para a Itália. Impõe logo uma paz humilhante ao rei da Sardenha. Expele da Lombardia os austríacos, impondo-lhes a paz de Campo-Formio (1797).

A Espanha, de todo entregue à França, rompe com a Inglaterra. Era o mesmo que romper com Portugal. Os espanhóis invadem Trás-os-Montes, Algarve, Alentejo; e forçam a corte de Lisboa a assinar o tratado de Badajós, com a perda de Olivença (1801).

Ao cabo de um instante de desafogo, estava outra vez o velho reino apertado entre a Inglaterra e Bonaparte. Compra a este o direito a uma neutralidade só de nome, e à custa de uma contribuição iníqua e odiosíssima, que a muito esforço e arte conseguira reduzir a dezesseis milhões.

Em 1805 recomeçam as guerras da Europa contra a supremacia ameaçadora de Napoleão. Convence-se este de que é preciso, antes de tudo, domar o leão britânico; e forma definitivamente o plano de levar contra ele ura grande exército. Reúne em Bolonha forças colossais, e prepara, de aliança com a Espanha, uma poderosa esquadra.

Mas a Inglaterra consegue travar uma nova coalizão, em que entram a Rússia e a Áustria.

Ameaçam estas a França, e obrigam o Imperador a sair de Bolonha. De vitória em vitória, chega ele a Austerlitz.

O governo português toca ao auge da ansiedade. Ameaça-o, agora, a própria Espanha, entregue, como estava, aos caprichos da vontade imperial; conquanto, por se não privar do apoio da Inglaterra para qualquer emergência, pretendesse também, exatamente como Portugal, passar como potência neutra. Para isso, reuniu forças nas fronteiras ocidentais, ao mesmo tempo que concertava aliança clandestina em Paris.

Mas o destino é que não estava por aquelas contemporizações.

De repente, eis que se recebe em Madrid a notícia estupefaciente de que o suserano da Europa decretara a deposição do rei Fernando, das Duas Sicílias (irmão de Carlos IV de Espanha), nomeando-lhe por sucessor José Bonaparte, que já ia a caminho de Nápoles!

E a pobre Espanha estremece na sua angústia!

6 - Começa Napoleão a distribuir tronos: e de novo se alarmam as cortes da Europa. Levanta-se a Prússia. A Inglaterra desilude-se de conciliação com aquele homem temeroso, que se fazia senhor do mundo; e põe-se outra vez à frente do protesto geral.

As cortes de Lisboa e de Madrid entendem-se às ocultas com o governo de Londres. Havia, tanto numa como noutra, grande ânsia de reprimir os excessos daquela vontade onipotente; mas temiam as surpresas que pudessem vir contra os díscolos do culto imperial.

Com a entrada, porém, da Prússia na nova coalizão, assanham-se contra a França muitos governos que ainda guardavam uma discreta expectativa.

Entre esses inimigos disfarçados, estavam os dois reinos da península. A Espanha chegou a mover-se afoitamente, como para um grande cometimento militar; mas de modo tão ridículo, que não disse contra quem se ia fazer a guerra. O governo de Madrid deitou proclamação, concitando os povos, em tom heroico, a uma guerra santa, mas sem dizer qual era o inimigo contra quem se devia tomar armas...

Sabe-se o que foi a campanha da Prússia, a mais brilhante de todas as do Imperador. De vitória em vitória, cada qual mais estrondosa, dentro de um mês, entra Napoleão triunfante em Berlim, derribando de um golpe certeiro a monarquia prussiana.

Pode imaginar-se o espanto e o terror que produz em Madrid e em Lisboa a notícia de tais vitórias!

O expediente foi aplacar-se a cólera imperial; e para isso, a tudo se sujeitaram as duas cortes. Além de tributo, exigiu Napoleão que se aumentassem os contingentes de tropas que a Espanha lhe fornecia.

Por mais docilmente que a tudo se acedesse, o Imperador, preocupado com os seus grandes planos no continente, fingia acreditar nas demonstrações com que julgavam enganá-lo. Adiava, assim, o ajuste de contas.

Portugal, então, é que se viu num transe de que não é possível dar ideia: "pagava dez milhões ao Imperador (e fornecia-lhe tropas), e por outro lado tinha de abastecer muitas vezes, à própria custa, as esquadras da Inglaterra; e tudo isso para manter uma neutralidade que tanto a Inglaterra como a França andavam a cada passo violando".

7 - Não demoraria, no entanto, que os acontecimentos viessem criar na península uma situação que não se poderia mais resolver pelo dinheiro, nem pela astúcia.

Vitorioso contra os maiores inimigos do continente, sentia Napoleão que o destino lhe definia o papel no meio daquele mundo vencido e assombrado.

Aniquiladas as grandes potências que o afrontavam, volveu armas contra o inimigo que lhe opunha resistência formidável. Compreendeu que não subjugaria os ingleses senão organizando contra eles um sistema de hostilidade, do qual o ataque pelas armas não seria mais que o complemento. Isolar a Inglaterra seria a primeira condição da vitória.

Lançou, então, o incrível desígnio. Para que mais impressão causasse, foi o decreto publicado em Berlim, a 21 de novembro de 1806 – Segundo esse decreto, os navios, as mercadorias, até as propriedades imóveis, e as mesmas pessoas dos súditos ingleses que se encontrassem em qualquer país do continente, seriam boas presas de guerra.

A semelhante audácia, rebateu o governo inglês declarando por sua vez a todas as nações que, todos os portos, todas as praças e todas as colônias de França, dos seus aliados e dos demais povos que se sujeitassem à sua influência, considerar-se-iam como bloqueados da maneira mais rigorosa, sendo ilegal todo o comércio de artigos provenientes dos referidos Estados. Autorizava-se também o corso contra navios dos mesmos.

Eis aí em que terreno estava agora travada a luta de morte. Era o mundo convulsionado pelo crime. Era a humanidade separada em duas hostes que se revidam furores e arremessos de extermínio nos continentes e nos mares.

Não se descreve a angústia em que se sentiu Portugal entre o decreto de Berlim e a nota do ministro Canning.

Houve um momento de folga em pasmo, enquanto a Rússia se movia.

Mas é logo chamado à conciliação o imperador da Rússia, e o própria Báltico fechava-se aos ingleses.

Fica Portugal esperando pela sua hora.