O amigo fiel, de Oscar Wilde
Tradução publicada no jornal "A
Noite", em sua edição de 25 de fevereiro de 1941. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2017.
Era uma vez um jovem trabalhador e honesto... Chamava-se Hans. Vivia em uma pobre e pequena casa de campo e todos os dias trabalhava em seu jardim.
Em todo o
povoado não havia jardim tão bonito quanto o seu. Encontravam-se aí as mais
variadas espécies de flores que cresciam ao lado das mais lindas rosas.
O pequeno
Hans tinha muitos amigos, mas o seu maior amigo, o "amigo fiel" era
Hugo, o rico moleiro. Realmente, o rico moleiro era tão amigo de Hans que não
visitava nunca o seu jardim sem inclinar-se sobre os craveiros para admirá-los
de perto, ou sem colher um bom punhado de flores que levava para casa.
— Os
amigos verdadeiros repartem tudo entre si — costumava dizer o rico moleiro.
E o
pequeno Hans colhia aquelas palavras com um sorriso nos lábios, sentindo-se
orgulhoso e feliz por ter um amigo que pensava tão nobremente.
Às vezes,
porém, os vizinhos achavam estranho que o rico moleiro nunca concedesse coisa
alguma ao pequeno Hans. Conquanto possuísse cem sacos de farinha armazenados em
seu estabelecimento comercial, seis vacas leiteiras e uma boa criação de
galinha, jamais compensava o pequeno Hans pelas flores que colhia de seu lindo
jardim. O jovem, no entanto, jamais se preocupava com isso.
Nada o
encantava tanto como ouvir as belas coisas que o moleiro costumava dizer sobre
a solidariedade dos verdadeiros amigos.
Assim,
pois, o pequeno Hans cultivava o seu jardim. Na primavera, no verão e no
outono, sentia-se muito feliz; mas quando chegava o inverno e ele não tinha
flores para levar ao mercado, chegava a sofrer frio e fome, deitando-se, à noite,
muitas vezes, sem nada ter comido durante o dia.
Além
disso, no inverno, sentia-se muito só, porque o rico moleiro jamais o visitava
durante essa estação.
— Não convém
visitar o pequeno Hans enquanto dure o inverno — dizia, às vezes, o rico
Moleiro a sua mulher. — Quando uma pessoa está em apuros, não devemos
atormentá-la com visitas. Essa é a minha opinião, e estou certo de que tenho
razão. Por isso, esperarei a primavera e, então, tornarei a visitar o meu
amigo. Poderá dar-me um cesto de flores e o alegrará muito.
— És
realmente muito bom, querido — afirmava sua mulher, sentada em um cômodo divã
perto de um bom fogo de lenha. — Gosto imensamente de te ouvir falar sobre a
amizade. Estou certa de que o padre da comarca não diria sobre ela tão belas
coisas como tu.
— E não
poderia convidar o pequeno Hans a vir à nossa casa? — perguntava o filho do
moleiro. — Se o pobre homem está em dificuldade, dar-lhe-ei metade do que é
meu, e, assim, já não sofrerá fome:
— Como és
tolo! — exclamou o moleiro. — Na verdade, não sei para que serve mandar-te para
a escola. Parece que não aprendes nada. Se o pequeno Hans viesse cá, e visse o nosso
bom fogo, e comesse da nossa excelente comida, e tomasse do nosso ótimo vinho
tinto, poderia sentir inveja. E a inveja é uma coisa terrível que prejudica os
melhores caracteres. Realmente, eu não poderia consentir em que o caráter de
meu grande amigo se prejudicasse. Estarei sempre atento para que o pequeno Hans
não se desvie do bom caminho. Além disso, se ele viesse cá, poderia pedir-me um
pouco de farinha, e eu não a poderia dar. A farinha é uma coisa e a amizade é
outra; não devem confundir-se, portanto.
— Que
inteligente és, querido! Como falas bem! — disse a mulher do moleiro,
servindo-lhe um grande copo de cerveja. — Sinto-me tão bem quando falas como quando
estou na igreja.
— Muitos
sabem agir — replicou o moleiro. — Poucos, porém, sabem falar com elegância
e aprumo, o que prova que falar bem é não só mais difícil do que agir, como
mais bonito.
E fixou
tão severo olhar no filho que este sentiu vergonha de si mesmo, baixando a
cabeça e chorando baixinho.
Era tão
jovem, que bem podem vocês desculpá-lo!
Logo que
passou o rigor do inverno e os botões começaram a abrir-se em rosas, o moleiro
disse a sua mulher que já era tempo de visitar o pequeno Hans.
— Ah, que
bom coração tens! — exclamou a mulher. — Estás sempre pensando nos outros. Não
te esqueças de levar o cesto grande para trazeres as flores.
O
moleiro, então, desceu à colina com a cesta no braço.
— Bom
dia, Hans! — disse o moleiro.
— Bom dia! — respondeu Hans, todo sorridente e feliz.
— Como
passaste o Inverno?
— Bem,
bem — contestou, prontamente, o jardineiro. — Muito obrigado pelo seu interesse. Houve
alguns momentos duros, mas, agora, chegou a primavera e sinto-me quase feliz...
— Ademais, as flores estão muito bonitas.
— Em
casa, falamos muito a teu respeito, Hans — disse-lhe o moleiro. — Pensávamos no
que seria de ti, em pleno inverno.
— Quanta
amabilidade! — exclamou Hans. — Pensei que me tivessem esquecido.
— Hans!
Francamente... Como podes falar desta maneira?... — disse o moleiro. — Na
verdadeira amizade não há esquecimento. É isso que há de mais admirável; temo, porém,
que não compreendas a poesia da amizade... Mas, voltando às flores, que belas
estão!
— Sim,
estão muito bonitas — replicou Hans. — Vou levá-las ao mercado, onde as
venderei à filha do burgo-mestre e com esse dinheiro comprarei outra vez o meu
arado.
— Queres
dizer que o vendeste, então? Foi uma tolice.
—
Certamente. Mas o fato é que me vi obrigado a fazê-lo. O inverno foi muito
rigoroso... e eu fiquei sem dinheiro para comprar pão. Vendi, primeiramente, os
botões de prata de meu trajo dos domingos; depois, me desfiz da corrente de
prata que recebi do vovô e, em seguida, vendi a minha flauta. Por último, vendi
o meu arado. Agora, porém, vou resgatar tudo.
— Hans —
disse o moleiro — dar-te-ei o meu arado. Não está em muito bom estado. Um dos
lados está precisando de reparo, mas, apesar disso, te darei. Sei que é muita
generosidade de minha parte e que a muita gente isso parecerá uma loucura, mas
não sou como os outros. Estou em que a generosidade é a essência da amizade e, além
disso, comprei um arado novo. Portanto, podes ficar tranquilo... dar-te-ei o
meu arado.
—
Obrigado, você é muito generoso — disse o pequeno Hans. — Posso consertá-lo
muito bem porque tenho aqui uma tábua.
— Uma tábua!
— exclamou o moleiro. — Muito bem! Isso é juntamente o que necessito para o
teto do meu estábulo. Há uma brecha que é preciso tapar. Muito bem, eis uma
bela oportunidade de me prestares um serviço. Realmente, uma boa ação é sempre
bem recompensada. Dei-te o meu arado e, agora, dás-me a tua tábua. É claro que
o arado vale muito mais que a tábua, mas a amizade sincera não olha estas
coisas. Dá-me, pois, a tua tábua e hoje mesmo consertarei o teto do meu estábulo.
— Não é
muito grande — disse o moleiro, examinando-a; — creio que só dará para o reparo
do teto do estábulo; não sobrará madeira para consertares o arado, mas, é claro
que a culpa não é minha... E, agora, que te dei o meu arado, penso que me
poderás dar em troca umas flores. Aqui tens o cesto; procura enchê-lo quase por
completo.
— Quase
por completo?! — perguntou aflito, o pequeno, vendo que o cesto era muito
grande e, se o enchesse, não teria mais flores para levar ao mercado.
—
Francamente! — exclamou o moleiro. — Uma vez que te dou o meu arado, não
julguei que fosse muito pedir-te algumas flores. Talvez eu esteja equivocado,
mas acreditava que a amizade, a verdadeira amizade, estava isenta de toda
classe de egoísmo.
— Meu bom
amigo, meu maior amigo! — protestou o pequeno Hans — todas as flores do meu
jardim estão à tua disposição.
E correu
a colher os cravos perfumosos e encher a grande cesta do moleiro das mais
lindas flores de seu jardim.
— Adeus,
Hans! — disse o moleiro, subindo novamente a colina com a sua tábua ao ombro e a
costa cheia de flores ao braço.
— Adeus! —
respondeu o pequeno Hans.
E pôs-se
a cavar alegremente: estava tão contente de possuir um arado!
***
Na manhã
seguinte, quando novamente estava cultivando o seu jardim, ouviu a voz do
moleiro que o chamava da estrada. Trazia ao ombro um grande saco de farinha.
— Hans —
disse o moleiro — queres levar-me este saco de farinha ao mercado?
— Oh, é
pena! — disse Hans; — mas estou hoje muitíssimo ocupado. Tenho de regar ainda
todo o jardim, de podar muitas roseiras, enfim, de fazer ainda quase todo o
serviço.
—
Francamente! — exclamou o moleiro. — Acreditava que, em consideração a te haver
dado o meu arado, não te negarias a fazer-me um favor.
— Oh,
sim! não me nego! — protestou o pequeno Hans: — jamais deixarei de agir como
um verdadeiro amigo.
E correu
a buscar o seu gorro, partindo, em seguida, com o grande saco ao ombro.
Era um
dia de calor e a estrada estava muito poeirenta. Antes de alcançar o posto que
marcava a sexta milha, Hans já estava tão cansado que teve de sentar-se para
poder continuar depois. Chegou ao mercado, vendeu toda a farinha e voltou quase
contido à casa, porque temia encontrar-se com algum salteador, se se demorasse
pelo caminho.
— Que
trabalho árduo! — disse consigo mesmo ao deitar-se, à noite. — Mas estou
contente por não me haver negado, porque o moleiro é o meu melhor amigo e,
ademais, vai dar-me o seu arado.
Na manhã
seguinte, muito cedo, o moleiro chegou para receber o dinheiro do saco de farinha,
mas o pequeno Hans estava tão fatigado que ainda não havia deixado a cama.
— Palavra!
— exclamou o moleiro. — És muito preguiçoso. Quando me lembro de que te dei o
meu arado, acho que devias trabalhar com mais ardor.
— Sinto-o
muito — respondeu o pequeno Hans. — Eu estava tão fatigado que pensei que me
havia deitado há pouco. Agora, porém, já me sinto bem.
— Bravos!
— exclamou o moleiro, dando-lhe uma palmada no ombro. — Preciso que faças o
reparo no teto do estábulo.
O pequeno
Hans tinha grande necessidade de trabalhar no seu jardim, porque havia dois
dias que não regava as suas flores, mas não quis negar-se a fazer a vontade do
moleiro, que era o seu melhor amigo.
Vestiu-se,
apressadamente, e acompanhou o rico moleiro ao estábulo.
Trabalhou
o dia todo. Ao anoitecer, o moleiro veio verificar como iam as coisas.
—
Terminaste o serviço? — perguntou ele, alegremente.
— Está
quase pronto.
— Não há trabalho melhor do que o que se faz
por outro! — exclamou o moleiro. — E agora que reparaste o teto do estábulo, é
melhor que voltes para casa, a fim de descansares, pois amanhã necessito de que
leves os meus carneiros à montanha.
No dia
seguinte, quando o pequeno Hans voltou da montanha, estava tão cansado que
adormeceu em uma cadeira.
— Que
tempo bom para as minhas flores — pensou ele, ao acordar. E ia trabalhar quando
chegou o moleiro e lhe pediu que fosse trabalhar no seu cercado, que precisava
ser cultivado. O pobre jardineiro lembrou-se de suas flores; precisava tanto de
trabalhar no seu jardim... Mas acompanhou o moleiro, consolando-se em pensar
que ele era o seu melhor amigo.
— Além
disso — dizia consigo mesmo — vai dar-me o seu arado.
O pequeno
Hans continuou trabalhando para o moleiro, e este dizia muitas coisas belas
sobre a amizade, coisas que Hans copiava em seu livro verde e que relia à noite,
pois amava a leitura.
***
Certa
noite, estava o pequeno Hans sentado janto ao fogo, quando bateram à porta.
A noite era negríssima. O vento soprava forte.
Era intenso o frio.
— Será algum
pobre viajante? — disse consigo Hans, e correu a abrir a porta.
Era o
moleiro que estava com uma lanterna em uma mão e sustinha com a outra, as rédeas
de seu belo cavalo.
— Querido
Hans! — gritou ele. — Estou muito aflito. Meu filho caiu da escada. Está ferido.
Preciso do médico. Mas ele mora tão longe daqui e a noite está tão escura, que
me lembrei de que era melhor que você fosse em meu lugar.
— Certamente! — exclamou o pequeno Hans. — Alegra-me muito que se tenha lembrado de mim. Irei
imediatamente. Peço-lhe apenas a lanterna, pois está tão escuro que eu temo
cair em algum pântano.
— Sinto-o
muitíssimo! — respondeu o moleiro. — Mas é a minha lanterna nova e seria uma
grande perda se você voltasse sem ela.
— Bem,
não falemos mais nisso! Irei sem lanterna.
A noite
era tão negra que o pequeno Hans quase nada via. No entanto, depois de caminhar
durante cerca de três horas, chegou à casa do médico, batendo à porta.
— Quem
bate? — gritou o doutor.
— Sou eu,
doutor! Hans!
— E que
desejas, Hans?
— O filho do moleiro caiu de uma escada e machucou-se.
Por isso, é necessário que o doutor vá até lá.
— Muito
bem! — replicou o médico.
Montou o
seu cavalo e dirigiu-se à casa do moleiro, sendo seguido por Hans, que
caminhava a pé.
Começou a
chover, porém Hans já nada via. Finalmente, perdeu o caminho. Vagou pelo
terreno baldio. A chuva aumentava mais e mais. Havia muitos lugares, pantanosos
e, na escuridão, Hans caiu em um pântano, afogando-se.
Todo o
mundo assistiu ao enterramento de Hans porque ele era muito querido.
— Era eu
o seu melhor amigo — dizia o moleiro. — É justo, pois, que também assista a
tudo. A morte do pequeno Hans é, sem dúvida, uma grande perda para todos nós —
e acrescentava baixinho — sobretudo para mim. Na verdade, fui muito generoso ao
oferecer-lhe o meu arado velho e agora não sei o que fazer com ele. Está em tão
mal estado que de nada me serve. Também não encontrarei a quem vendê-lo. — E
voltando-se para os amigos, afirmou: — E eu que lhe havia prometido o meu
arado! Asseguro-vos que, para o futuro, jamais darei nada a alguém. Pagam-se
sempre as consequências de se ter sido generoso...
"AMIGO"COMO ESSE NÃO NÃO QUERO NEM DE GRAÇA,,,,,
ResponderExcluirHans era amigo mas o moleiro só intencional,existe muitos assim
ResponderExcluirAchando que além de TD está fazendo favor.
Muito injusto
Descreveu perfeitamente a "amizade" entre o rico e o pobre, no tempo em que o conto foi escrito era assim e continua sendo até hoje.
ResponderExcluir