Tradução publicada na "Revista da Semana", em sua edição de 22 de abril de 1945. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Achava-me, uma tarde, sentado no terraço do café da Paz, contemplando o luxo e as intimidades da vida parisiense.
Enquanto tomava um vermute
entretinha-me a estudar, com curiosidade, aquele estranho desfile do orgulho e
da miséria, quando ouvi que me chamavam por meu nome.
Voltei-me e deparei com lord
Murchison.
Não nos tínhamos tornado a ver
desde que estivemos juntos no colégio, e isto fazia dez anos.
Assim é que me encantou aquele
encontro.
Abraçamo-nos afetuosamente.
Em Oxford tínhamos sido muito
amigos.
Eu o estimava muitíssimo.
Era tão bom, tão comunicativo,
tão cavalheiresco! Dizíamos frequentemente, referindo-nos a ele, que seria o
melhor rapaz do mundo sem a sua mania de dizer sempre a verdade; mas,
realmente, creio que o admirávamos mais ainda pela sua franqueza.
Encontrei-o um pouco mudado.
Parecia inquieto, perturbado.
Adivinhei que aquele estado não provinha do moderno ceticismo, porque Murchison
era um dos conservadores mais intransigíveis, e acreditava no Pentateuco com a
mesma firmeza que na Câmara dos Pares.
Deduzi que andava rabo de saia
em tudo aquilo, e perguntei-lhe se tinha casado já.
— Ainda não compreendo bem as
mulheres — respondeu.
— Meu caro Geraldo — disse-lhe
eu — as mulheres foram feitas para ser amadas, e não para ser compreendidas.
— Eu não poderia amar sem ter
absoluta confiança — replicou.
— Parece-me que você tem um
mistério na vida, Geraldo. Conte-me, conte-me tudo.
— Vamos dar um passeio de carro
— me respondeu. — Aqui há muita gente... Não, esse carro amarelo, não; qualquer
um de outra cor. Olhe, esse, que é verde-escuro, nos convém.
E alguns minutos depois descíamos
a trote pelo boulevard em direção à Madalena.
— Aonde vamos? — perguntei.
— Oh! Aonde você quiser;
ao restaurante do parque. Cearemos lá e
você me contará coisas da sua vida.
— Primeiro quero ouvi-lo.
Conte-me seu mistério.
Tirou do bolso um porta-cartões
de tafilete com fecho de prata e o estendeu a mim.
— Abre-o.
Era alta e esbelta, de aspecto
singular, com seus grandes olhos misteriosos e sua cabeleira esvoaçante. Tinha
fisionomia magnetizada e estava envolta por luxuosas peles.
— Que diz você dessa cara? — me perguntou. — Acaso inspira confiança?
Examinei-a atentamente.
Deu-me a impressão duma
criatura que tem um segredo; porém o que não podia dizer era se aquele segredo
era bom ou mau.
Aquela beleza parecia feita de
muitos mistérios reunidos; era realmente uma beleza psicológica, mais que
plástica, e ademais o velado sorriso que flutuava sobre seus lábios era
demasiado sutil para possuir verdadeiro encanto.
— Quê? — exclamou impaciente. —
Que diz você?
— Que é a Gioconda de
negro — respondi. — Conte-me tudo o que
a ela se refira.
— Agora não; depois da ceia.
E pusemos-nos a falar de outra
coisa. Quando o garçom trouxe o café e os cigarros, lembrei a Geraldo sua
promessa.
Levantou-se de sua cadeira e
passeou durante alguns instantes pela sala.
Depois se acomodou numa
poltrona e me contou a seguinte história:
— Uma tarde, aí pelas cinco
horas, descia eu por Road-Street.
Havia uma grande aglomeração de
carros e o trânsito estava completamente impedido.
Encostado à calçada estava um
" brougham" amarelo, que, não sei por que atraiu mil atenção.
Ao passar por ele vi assomar,
para espiar, a cara que há pouco mostrei a você.
Fascinou-me instantaneamente.
Durante toda a noite não pensei
em outra coisa, o mesmo acontecendo no dia seguinte.
Subi e desci várias vezes por
aquela rua, ao longo daquela maldita fila, lançando um olhar furtivo dentro de
todos os carros, esperando o " brougham" amarelo, mas não consegui
descobrir minha "bela desconhecida", de modo que acabei por me
convencer de que só a tinha visto em sonhos.
Uns oito dias depois ceei com
madame de Rastail.
A ceia estava marcada para as
oito, mas eram oito e meia e ainda estávamos no salão.
Súbito, o criado abriu a porta
e anunciou: Lady Alroy.
Era a mulher a quem eu
procurava.
Entrou andando muito devagar.
Parecia um raio de luar com seu vestido gris, e tive imensa vontade de que me
rogassem levá-la à mesa.
Quando nos sentamos, disse com
a maior inocência do mundo:
— Parece-me, lady Alroy, tê-la
visto ao passar por Road-Street há algum tempo.
Pôs-se muito pálida e disse-me
em voz baixa:
— Não fale tão alto,
suplico-lhe; poderiam ouvir-nos.
Senti-me infelicíssimo por ter
tido tão mau começo, e me envolvi cegamente numa dissertação sobre o teatro
francês.
Ela falava muito pouco, e sempre
com a mesma voz baixa e musical. Dir-se-ia que tinha medo de ser ouvida por
alguém.
Sentia-me apaixonadamente,
estupidamente enamorado, e a indefinível atmosfera de mistério que a envolvia
excitava minha curiosidade até mais não poder.
Quando se ia embora, o que fez
quase em seguida à refeição, perguntei-lhe se podia visitá-la.
Vacilou um momento, olhou em
redor de si para ver se havia alguém perto de nós, e depois me disse:
— Sim; amanhã, às cinco e
quinze.
Pedi a madame de Rastail que me
falasse dela, porém o único que pôde dizer-me foi que aquela senhora era viúva
e que possuía uma linda casa em Park Lane.
E como naquele momento um
palerma da classe dos cientistas iniciou uma dissertação acerca das viúvas,
para manter a tese da supervivência das mais inte-ligentes, despedi-me e
regressei, a minha casa.
No dia seguinte, à hora combinada
em ponto, dirigi-me a Park Lane, porém o criado me disse que lady Alroy acabava
de sair havia um instante.
Muito desiludido e
intrigadíssimo, fui até o clube, e depois de muitas reflexões lhe escrevi uma
carta, rogando me permitisse confiar em que outra vez seria mais afortunado.
A resposta demorou vários dias
a chegar, mas por fim recebi um cartãozinho anunciando-me que estaria em sua
casa no domingo, às quatro, cartão no qual havia esta extraordinária advertência:
"Não me escreva mais, par
favor; explicar-lhe-ei o motivo quando nos virmos."
No domingo esteve encantadora,
porém, ao despedir-me, disse-me que se alguma vez tornasse a escrever-lhe, o
fizesse com estas indicações: "Mr. Wittaker, editor, Green Street, para
entregar à senhora Knox".
— Razões particulares — ajuntou
— me impedem de receber qualquer carta em minha própria casa.
Durante toda a temporada vi-a
com frequência e sem que jamais deixasse de rodeá-la aquela, atmosfera de
mistério.
Algumas vezes pensei que estaria
em poder de algum homem, mas
parecia tão dificilmente atingível, que tive de
abandonar essa hipótese.
Realmente, era-me quase impossível
chegar a uma conclusão qualquer, pois aquela mulher se parecia a esses
estranhos cristais expostos nos museus e que são transparentes umas vezes e embaciados
outras.
Por fim, decidi-me a pedir sua
mão; atacavam-me os nervos e cansavam-me as incessantes precauções que me
impunha para tornar misteriosas minhas visitas e as poucas cartas que lhe
dirigia.
Escrevi-lhe para a livraria,
perguntando se podia receber-me na segunda-feira seguinte às seis horas.
Respondeu-me que sim, e aquilo
me transportou de prazer até ao sétimo céu.
Estava loucamente apaixonado
por ela, apesar do mistério, segundo acreditei então; porém, em realidade, eu
agora o reconheço, por aquele próprio mistério.
Não, eu não amava nela a
mulher.
O que me perturbava, o que me
fazia perder a cabeça, era aquele mistério.
Por que o acaso me fez encontrar
a pista?
— Então você tudo descobriu? —
exclamei.
— Receio-o muito. Avalie por si
mesmo. .
Chegada a segunda-feira, almocei
com meu tio, e por volta das quatro horas estava em Marylebore Road.
Meu tio, como você sabe, mora
em Regents Park.
Pretendia ir ao Piccadilly, e
tomei o caminho mais curto, passando por uma infinidade de vielas de aspecto
miserável.
Súbito vi frente a mim lady
Alroy, embuçada com um véu espesso e andando muito depressa.
Quando chegou à última casa da
rua subiu os degraus, tirou de seu bolso uma chave e entrou.
— Cá está o mistério — disse
comigo mesmo, avançando rapidamente para ver o número e o aspecto da casa.
No último degrau havia um lenço
que ela deixou cair; apanhei-o, guardando-o no bolso.
Então me pus a pensar o que
deveria fazer. Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la;
tomei um carro e fui para o clube.
Às seis apresentei-me em sua
casa.
Encontrei-a estendida num sofá,
em traje de chá, isto e, com vestido de fio de prata amarrado com uns broches
dessas estranhas pedras lunares que usava sempre.
Esteve muito afável comigo.
— Tenho imenso prazer em vê-lo
— disse-me. — Não saí em todo o dia.
Olhei-a estupefato, e tirando
de meu bolso o lenço, entreguei-lho.
— Caiu-lhe esta tarde em Cummor
Street, lady Alroy — disse-lhe com muita naturalidade.
Dirigiu-me um olhar de terror,
mas não fez o menor gesto para tomar o lenço.
__ Que ia fazer ali? — perguntei-lhe.
— Que direito tem o senhor de
me interrogar?
— O direito de um homem que a
ama — repliquei. — Vim para lhe pedir que seja minha esposa.
Escondeu o rosto entre as mãos,
desfeita em pranto.
— Tem que me responder —
insisti.
Levantou-se, e olhando-me
frente a frente respondeu:
— Lord Murchison, nada tenho a
dizer-lhe.
— Foi lá para se entrevistar
com algum homem — exclamei.
— Esse é seu segredo.
Empalideceu atrozmente e
contestou:
— Não fui ver pessoa alguma.
— Por que não me diz a verdade?
— exclamei.
— Mas se já lha disse! — replicou.
Eu estava louco, angustiado.
Não sei o que lhe disse, mas deve ter sido algo de terrível.
Por fim, precipitei-me fora de
sua casa. Escreveu-me no dia seguinte, mas devolvi-lhe a carta sem abrir. Parti
para a Noruega com Alan Colville.
Regressei ao cabo dum mês, e a
primeira coisa que vi no "Morning Post" foi a notícia da morte de
lady Alroy.
Apanhou um resfriado ao sair da
ópera, falecendo cinco dias após, de congestão pulmonar.
Fechei-me em casa e não quis
ver ninguém.
Amei-a tanto, amava-a ainda tão
perdidamente! Oh, Deus meu, como amei essa mulher!
— E você foi a essa rua, a essa
casa? — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu. — Um dia
dirigi-me a Cummor Street. Não pude deixar de fazê-lo. Estava atormentado pela
dúvida. Bati, e uma mulher de bom aspecto me abriu a porta.
Perguntei-lhe se tinha algum
quarto para alugar.
— Ah, cavalheiro! — respondeu.
— Creio que há um quarto para alugar, porém não vi mais a senhora que o tinha
alugado há três meses, e embora os recibos continuem se acumulando é-me
impossível alugá-lo.
— Refere-se a esta senhora? —
perguntei-lhe, mostrando a fotografia.
— Sim, é ela; estou bem certa —
exclamou. — Quando voltará?
— Esta senhora morreu —
respondi.
— Oxalá não seja verdade! —
disse a mulherzinha. — Era a melhor de minhas inquilinas. Pagava-me três
guinéus por semana só para vir aqui de vez em quando.
— Recebia alguém aqui? —
perguntei.
A mulher assegurou-me que não,
que ia sempre sozinha e que não era vista com ninguém.
— Então, que diabo vinha fazer
aqui? — exclamei.
— Pois, simplesmente para ficar
na sala, cavalheiro. Lia livros, e alguns dias tomava chá — respondeu-me a
mulher.
Eu não sabia que dizer. Dei-lhe
um "soberano" e afastei-me.
— E agora, diga-me você, que
significava tudo aquilo? Você não pensará que a mulher me disse a verdade.
— Pois eu creio que sim.
— Então, que ia lady Alroy
fazer naquela casa?
— Meu caro Geraldo — respondi-lhe
— lady Alroy era simplesmente uma mulher atacada da mania do mistério. Alugava
esse quarto pelo prazer de ir a ele de véu posto e imaginar que era uma
heroína. Sentia uma louca atração pelo mistério, embora fosse, simplesmente,
uma esfinge sem segredo.
— Assim opina sinceramente?
— Estou convencido disso —
respondi.
Lord Murchison tirou o
porta-cartões de tafilete, abriu-o e ficou observando a fotografia.
— Pois eu continuo indagando a
mim mesmo — disse finalmente.
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