5/25/2017

A questão Shakespeare


A questão Shakespeare

Texto escrito em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)


"O que mais me impressiona na "questão" Shakespeare é que se tenha tido a ideia de inventá-la.”
Sim, confesso, isso me aborrece.
O leitor dirá que não tenho razão, e que meu descontentamento indica um espírito pouco objetivo. Dir-se-ia ainda que no dia em que a erudição tiver demonstrado que o autor das peças atribuídas a Shakespeare não é o personagem até então chamado Shakespeare, mas um outro senhor, serei obrigado a acreditar.
Sim. Inclinar-me-ei diante desse fato brutal, mas com uma perfeita indiferença. O que me interessa aqui, e com toda certeza há de sempre me interessar, é a obra e não o homem, são as peças (que eu as admiro no palco ou simplesmente lendo-as), os dramas e não a identidade mundana de seu autor. Percebe-se alcance desta distinção. Respeito o autor, pois tenho-o por um dos gênios mais completos e harmoniosos da humanidade, tendo sido a fonte donde nasceu o rio imenso de tragédias, dramas, "feerias”, esse jorro infinito de lirismo. Mas ao estado civil desse autor, seu traje humano, se assim posso dizer, às aparências corporais em que o Destino encerrou esta alma prodigiosa, não presto nenhuma atenção, não dou nenhuma importância. Os eruditos, que, com uma paciência pasmosa, estão, desde muitos anos, a chicanar sobre os textos para estabelecer que Shakespeare não era Shakespeare, parecem-me desprovidos, num grão elevado, de senso literário. Evidentemente esse trabalho lhes é um divertimento, faz-lhes passar o tempo, esse tempo que têm de sobra, não tendo mais que fazer senão classificar fichas. Mas nós, o público, o que nos importa no fundo?
E, em primeiro lugar, nada há de menos provado de que essa não-identidade de Shakespeare. Eu bem sei; existe uma cópia formidável de argumentos. O seu conjunto, porém, impressiona sem convencer. Há algo de intencional em tudo isso, uma espécie de intimação. Querem nos envergonhar da nossa opinião, da nossa boa velha opinião, cândida e tradicional, como se fosse completamente idiota o fato de pensar que um simples ator pudesse ter um tamanho gênio poético.
Entretanto, não se chega a um acordo sobre a individualidade que convém substituir ao ilustre cômico. A tese Stanley, hábil e minuciosamente defendida, permanece plausível e nada mais. A tese Bacon, extraordinária de complicação como um romance-folhetim, conclui de modo tão absurdo que nos põe estupefatos.
Não é por preguiça de espírito que me inclino para a hipótese tradicional. Eu a rejeitaria de boa vontade se a reconhecesse falsa. Todavia, até hoje, é pelo menos tão provável quanto as outras.
Julgo que se proporciona grande prejuízo a Shakespeare ator, contestando-lhe a paternidade das suas peças, sob pretexto de que, socialmente, não era digno delas. O gênio sopra onde quer. Por que não teria visitado aquela cabeça?
É um mistério profundo nascer-se gênio, mistério análogo ao do primeiro frêmito da vida. Em Stanley ou em Bacon, ele é tão admirável, tão incompreensível como em Shakespeare; nem mais nem menos. Que papel representam no caso as considerações acerca da fortuna, da posição, das viagens diplomáticas? Tudo isso não passa de infantilidades. O gênio tudo adivinha, sem precisar ver coisa alguma.
Não temos ainda, quase sob os olhos, o exemplo empolgante de Balzac, a quem um trabalho esmagador e uma vida irrequieta não permitiam frequentar a décima parte dos personagens que criou, com tão flagrante realidade? Os homens de simples talento sim, são obrigados a verificar por eles mesmos aquilo que vão descrever... sob pena de fazerem obra incolor, incerta, artificial. Quanto aos homens de gênio, é nisso precisamente que reside a sua força. Sabem tudo desde o berço, e o mais furtivo relance lhes basta para abranger um fato em conjunto ou compreender um ser até as profundezas.
O erro fundamental dos exegetas da questão Shakespeare, consiste em tratar um gênio com os métodos ordinários com que se explica as manifestações dos simples talentos.
Não pretendo estar seguro de ter sido Shakespeare o autor do Teatro da Rosa, mas afirmo que ainda não se provou que o não tenha sido. E persisto em acreditar possui maiores probabilidades de conservar o nome ao mesmo tempo que a glória, porque o gênio escolhe mais raramente os palácios de que as choupanas para morada. Sabe-se o que era Francisco Bacon? um triste indivíduo, apesar (ou talvez por causa) do enigma real da sua origem, um triste indivíduo e um filósofo cuja fria doutrina está nos antípodos da concepção radiosa do mundo que nos revelam as peças de Shakespeare. Quanto a Stanley, é presumível que fosse um fidalgo encantador, culto, requintado – um europeu, se quiserem, um perfeito humanista. No entanto, entre tudo isso e o gênio há um abismo, que nada nos autoriza a considerar desapercebido. E, como no caso, tudo é probabilidade, que me seja permitido sugerir a minha. Sabe-se que, ao ponto de vista do lirismo e da psicologia, os viajantes extraem pouca coisa de sua experiência, por mais vasta que seja. Stanley não passou de um amador, e justamente por isso está condenado como criador.

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