A questão Shakespeare
Texto escrito em 1923. Pesquisa, transcrição
e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
"O que mais me impressiona na "questão" Shakespeare é que se tenha tido a ideia de inventá-la.”
"O que mais me impressiona na "questão" Shakespeare é que se tenha tido a ideia de inventá-la.”
Sim,
confesso, isso me aborrece.
O leitor
dirá que não tenho razão, e que meu descontentamento indica um espírito pouco
objetivo. Dir-se-ia ainda que no dia em que a erudição tiver demonstrado que o
autor das peças atribuídas a Shakespeare não é o personagem até então chamado
Shakespeare, mas um outro senhor, serei obrigado a acreditar.
Sim.
Inclinar-me-ei diante desse fato brutal, mas com uma perfeita indiferença. O
que me interessa aqui, e com toda certeza há de sempre me interessar, é a obra
e não o homem, são as peças (que eu as admiro no palco ou simplesmente
lendo-as), os dramas e não a identidade mundana de seu autor. Percebe-se
alcance desta distinção. Respeito o autor, pois tenho-o por um dos gênios mais
completos e harmoniosos da humanidade, tendo sido a fonte donde nasceu o rio
imenso de tragédias, dramas, "feerias”, esse jorro infinito de lirismo.
Mas ao estado civil desse autor, seu traje humano, se assim posso dizer, às
aparências corporais em que o Destino encerrou esta alma prodigiosa, não presto
nenhuma atenção, não dou nenhuma importância. Os eruditos, que, com uma
paciência pasmosa, estão, desde muitos anos, a chicanar sobre os textos para
estabelecer que Shakespeare não era Shakespeare, parecem-me desprovidos, num
grão elevado, de senso literário. Evidentemente esse trabalho lhes é um
divertimento, faz-lhes passar o tempo, esse tempo que têm de sobra, não tendo
mais que fazer senão classificar fichas. Mas nós, o público, o que nos importa
no fundo?
E, em
primeiro lugar, nada há de menos provado de que essa não-identidade de
Shakespeare. Eu bem sei; existe uma cópia formidável de argumentos. O seu
conjunto, porém, impressiona sem convencer. Há algo de intencional em tudo
isso, uma espécie de intimação. Querem nos envergonhar da nossa opinião, da
nossa boa velha opinião, cândida e tradicional, como se fosse completamente
idiota o fato de pensar que um simples ator pudesse ter um tamanho gênio
poético.
Entretanto,
não se chega a um acordo sobre a individualidade que convém substituir ao
ilustre cômico. A tese Stanley, hábil e minuciosamente defendida, permanece
plausível e nada mais. A tese Bacon, extraordinária de complicação como um
romance-folhetim, conclui de modo tão absurdo que nos põe estupefatos.
Não é por
preguiça de espírito que me inclino para a hipótese tradicional. Eu a
rejeitaria de boa vontade se a reconhecesse falsa. Todavia, até hoje, é pelo
menos tão provável quanto as outras.
Julgo que se
proporciona grande prejuízo a Shakespeare ator, contestando-lhe a paternidade
das suas peças, sob pretexto de que, socialmente, não era digno delas. O gênio
sopra onde quer. Por que não teria visitado aquela cabeça?
É um
mistério profundo nascer-se gênio, mistério análogo ao do primeiro frêmito da
vida. Em Stanley ou em Bacon, ele é tão admirável, tão incompreensível como em
Shakespeare; nem mais nem menos. Que papel representam no caso as considerações
acerca da fortuna, da posição, das viagens diplomáticas? Tudo isso não passa de
infantilidades. O gênio tudo adivinha, sem precisar ver coisa alguma.
Não temos
ainda, quase sob os olhos, o exemplo empolgante de Balzac, a quem um trabalho
esmagador e uma vida irrequieta não permitiam frequentar a décima parte dos
personagens que criou, com tão flagrante realidade? Os homens de simples
talento sim, são obrigados a verificar por eles mesmos aquilo que vão
descrever... sob pena de fazerem obra incolor, incerta, artificial. Quanto aos
homens de gênio, é nisso precisamente que reside a sua força. Sabem tudo desde
o berço, e o mais furtivo relance lhes basta para abranger um fato em conjunto
ou compreender um ser até as profundezas.
O erro
fundamental dos exegetas da questão Shakespeare, consiste em tratar um gênio
com os métodos ordinários com que se explica as manifestações dos simples
talentos.
Não pretendo
estar seguro de ter sido Shakespeare o autor do Teatro da Rosa, mas afirmo que
ainda não se provou que o não tenha sido. E persisto em acreditar possui
maiores probabilidades de conservar o nome ao mesmo tempo que a glória, porque
o gênio escolhe mais raramente os palácios de que as choupanas para morada.
Sabe-se o que era Francisco Bacon? um triste indivíduo, apesar (ou talvez por
causa) do enigma real da sua origem, um triste indivíduo e um filósofo cuja
fria doutrina está nos antípodos da concepção radiosa do mundo que nos revelam
as peças de Shakespeare. Quanto a Stanley, é presumível que fosse um fidalgo
encantador, culto, requintado – um europeu, se quiserem, um perfeito humanista.
No entanto, entre tudo isso e o gênio há um abismo, que nada nos autoriza a
considerar desapercebido. E, como no caso, tudo é probabilidade, que me seja
permitido sugerir a minha. Sabe-se que, ao ponto de vista do lirismo e da
psicologia, os viajantes extraem pouca coisa de sua experiência, por mais vasta
que seja. Stanley não passou de um amador, e justamente por isso está condenado
como criador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...